As cortinas brancas esvoaçavam. Mary sentiu um vento ameno circular pela sala, mas a cabeça estava pesada demais para focar nos detalhes. Sabia que tinha que se levantar uma hora ou outra, de preferência devagar, mas o susto lhe tirou tal luxo. A chave girando na fechadura é um som único, e a garota mal teve tempo de encontrar a porta que transmitia o som, mais adiante, ao lado de um robusto armário de madeira escura, quando se levantou depressa apoiando-se nos joelhos.A maçaneta girou e a porta se abriu hesitante. Dela uma mulher surgiu, pálida, com os olhos arregalados e as mãos cerradas. Ela usava um vestido antiquado e bem passado, preto, longo e volumoso de mangas compridas, a saia chegava a esconder por completo os pés.
A visão da jovem falhou por um momento e achou que fosse desmaiar, mas logo se recuperou e focou na figura antiquada a poucos metros. Mary a encarou incrédula, pensava que ela fosse a esposa do livreiro. A esposa incomum de um dono de livraria. Os leitores são, de certa maneira, singulares, não eram? A mulher estacou na entrada, sem ousar dar um passo e observava Mary como se observasse uma assombração.
O silêncio foi quebrado, a princípio, por um murmúrio. A menina pensou que a senhora iria começar a gritar e correr sala afora, mas não. Um sonzinho se fez ouvido, e se desenvolveu até a fala se tornar compreensível:
— Oh não, não, não, não.
Intermináveis “nãos”, abafados.— Pobrezinha! Sim, pobre garota. Onde estava com a cabeça? Sequer tem noção do que fez? — a senhora perguntou, horrorizada.
Mary sentiu mal-estar diante destas palavras, disparadas sem cessar e inconstante. Silêncio e a fala recomeçava. Depois da terceira repetição, a senhora deu alguns passos e fechou a porta atrás de si, e a menina não encontrava coisa alguma como resposta. Era infeliz, o pulso doía terrivelmente, como se alguém o batesse com um martelo de tempos em tempos.
— Diga-me, qual o seu nome? — a cabeça estava inclinada para o lado, parecia encará-la como se fosse uma aberração. Mary sentiu prestes a vomitar.
Mary, ela pensou. É claro que pensou, mas não conseguia dizer. Não conseguia dizer coisa alguma, o pulso sentia e a imagem a distraía. A luz a irritava. Mary queria achar Sophie.
— Onde estou? — perguntou depois de se sentir segura o suficiente que não vomitaria, mas a voz saiu fraca — Preciso voltar para o sebo, você sabe onde é?
A senhora manteve o rosto lívido, mas os lábios estavam cada vez mais comprimidos de preocupação. Fazia sentido, aconteceu de novo. O que diria para a garota, pálida como mármore e o pulso junto ao peito? Deu dois passos adianta, media as palavras, descartava as possibilidades. Apesar da idade, a senhora (vale ressaltar, se chamava Lucy) tinha a mente perspicaz.
— Por que não me diz seu nome para que eu possa ajudar?
— Mary. Meu nome é Mary e estou procurando minha amiga. A senhora a viu em algum lugar? Ela é loira de cabelo comprido, mais ou menos minha altura. Ela estava comigo no sebo...
Lucy a olhou por breves instantes, hesitante. A mulher tinha desses rostos difíceis de interpretar. Não chegava a ser completamente idosa, mas as rugas e as faixas de cabelo branco contrastavam os olhos vivos e azuis escuros. Havia de ter sido muito bela na juventude, e ainda conservava a elegância da postura e a polidez. Era um rosto agradável.
Lucy se adiantou e apontou para o pulso esquerdo da garota, que o moveu instintivamente para mais perto de si.— Está machucado?
— Sim, eu caí por cima dele.— Dói muito? — Mary confirmou com a cabeça — Consegue mexê-lo?
Mary tentou e um fio de dor subiu pelo braço, como se queimasse. Desistiu com um gemido entalado na garganta e negou com a cabeça.— Acho melhor cuidarmos dele antes, não acha? Pode ser que esteja quebrado, e você não ajudará ninguém machucada assim — exagerou, percebeu quando a menina a encarou confusa. No entanto os olhos de Mary pareciam ter se enchido de lágrimas.
— Tudo bem...
— Então venha — Lucy a segurou pelo outro braço e a conduziu para um corredor amplo e mal iluminado. Não havia janelas ali. Mary não notou as molduras nas paredes, nem as mobílias muito polidas e enfeitadas, nem notou o anacronismo da decoração. Tudo que vira era o chão de madeira coberto pelo interminável tapete azul com formas douradas. Estava zonza. Olhava para baixo pois tinha medo de perder o equilíbrio. Lucy a segurava com firmeza, mas Mary não gostaria de correr o risco de depender daquela desconhecida para apoiá-la. Precisava se sentar, seu corpo a puxava para baixo, o que fazia seus pés levantarem desengonçados.A casa estava silenciosa, mas em algum lugar distante era possível ouvir passos leves, que se moviam rapidamente e depois paravam.
Viraram em dois corredores, primeiro a direita e depois a esquerda, e entraram em um quarto. Estava escuro, a única luz vinha do corredor, mas Lucy conseguiu ajeitar a garota em uma imensa cama. Colocou a mão na testa de Mary, e apesar de não estar com febre, seu corpo tremia. Poderia ser o choque.
— Mary, vou sair para buscar um remédio e mandar buscar um médico, está bem? Não se mexa — a garota assentiu. Parecia incapaz de pensar. Não sabia o que estava acontecendo, nem quem era aquela mulher, mas algo no seu íntimo dizia que alguma coisa estava errada, terrivelmente errada. O ar parecia outro, mais leve?
Lucy saiu e a porta havia ficado entreaberta, um feixe de luz alcançava o lado esquerdo da cama, mas a garota não se importou, a cama era segura. Era seu barco. Seu corpo continuava a puxa-lá para baixo, como se estivesse amarrada a um saco de pedras. Sentia a pressão principalmente nos ombros e na cabeça. Fechou os olhos e se concentrou nas dores, que eram circulares. As dores eram circulares e Mary sentia seus aros se formarem e aumentarem: nas têmporas, na testa, na base da cabeça. Elas cresciam e cresciam. O martelo no pulso doía como nunca.A senhora não fez barulho algum ao entrar novamente no quarto. Mandou a menina levantar a cabeça e despejou um líquido doce em sua boca, mandando-a tomar tudo. Um fio escorreu pelo canto da boca, mas ela havia tomado o suficiente. Mais rápido do que Lucy esperava, a garota voltou a se deitar e sua respiração se regulou, adormecida.
Agora teria tempo para pensar o que fazer.
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Através do Espelho
Tiểu thuyết Lịch sửEspelhos são portais e nossos reflexos são a única coisa que nos impede de passar. Mary e Sophie nunca imaginaram viver uma aventura maior do que o caminho até a casa uma da outra, até que elas resolveram tentar viver além das paredes de seus quarto...