III - Intermédio

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E cá estamos de novo. Saudades dessa fic que nem será tão grande assim rrsrs

O mundo sempre foi silencioso para Eikichi e para ele estava tudo bem

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O mundo sempre foi silencioso para Eikichi e para ele estava tudo bem. A maioria dos sons aconteciam em uma frequência muito baixa para que seu sistema auditivo pudesse captar.

Quando olhava para o céu e via bandos de aves migrantes, todas batendo as asas em ritmo familiar, não ouvia os chilreios ou grasnares que produziam.

Observava a água cair da torneira e a sensação quando tocava sua pele, escorrendo por seus dedos, indiferente ao som do impacto que não escutava.

Assistia televisão e via os lábios de seus pais, amigos e avós, se moverem sem de fato escutar o som de suas vozes. E isso não lhe era incômodo algum.

Amava seu mundo silencioso, afeiçoado a paz que vivenciava. Nenhum som podia tirar sua concentração ou interromper seu sono. Era bom, seguro e perfeito. Para uma criança nascida surda não havia saudades do sentido que lhe faltava.

Todavia, havia o lado ruim. Ele não podia ouvir o som do tráfego dos carros, ou as irritantes buzinadas de aviso o que tornava o simples ato de atravessar ou desviar de possíveis perigos ou atentados mais complexo. Não conseguia brincar de pique com os colegas e precisava estar atento cem por cento nas lições para aprender, o que era outro problema, pois Eikichi também havia sido diagnosticado com TDAH, um transtorno de déficit de atenção e hiperatividade que o tornava desatento e muito agitado. Os remédios davam conta de acalmá-lo as vezes, mas ele não gostava do sono que vinha junto e as vezes simplesmente trapaceava, fingindo tomar.

Os pais sempre se certificavam de que ele estaria medicado, liberando-o apenas nas férias. Por isso Eikichi amava aquela temporada, quando podia ser livre para explorar junto aos primos e tinha o pai ômega em casa por mais tempo. Ele sentia falta do tempo que passavam juntos, das lições que ele ensinava pacientemente. Ninguém era melhor na linguagem de sinais do que ele, e fora o próprio que o ensinara.

Eikichi se lembrava de cada momento com muito carinho, dos aromas e gestos suaves, ainda que um tanto rígidos, assim como o toque de suas mãos nas suas, o ensinando a melhor maneira de executar um sinal. Era como se ele fosse o surdo, tamanha habilidade que tinha com a linguagem de libras.

Agora ele quase não fica em casa e quando está é como se não estivesse, sempre preocupado com as redes socais e outros afazeres. Eikichi não o perturba com seus anseios e tristezas, ele sabe bem que já dá trabalho demais por ser agitado e surdo, e que o sonho do pai foi simplesmente deixado de lado por muitos anos por sua culpa. Ser um herói reconhecido e alcançar o topo leva tempo, precisa de constante dedicação e ele já tinha feito muito por si.

Ao menos era assim que Eikichi pensava. O pai ômega nunca o culpou por conta do tempo que dedicou para a melhoria de sua vida, sempre esteve atento e o acompanhou nos momentos mais complexos, levando-o a especialistas e o ajudando a se situar, aprender e lidar com as próprias limitações. Esteve sempre com ele em todas as consultas, ajudou-o a compreender e usar a língua de sinais e se acostumar com o aparelho coclear que usava, mesmo Eikichi sendo agitado demais para usar um.

Mesmo assim ele sentia falta da interação que ambos tinham. Quase não havia momentos para conversarem e isso o deixava cabisbaixo. Eikichi simplesmente aceitou que agora era vez do pai pensar um pouco em si mesmo.

O pai alfa era um homem bom e até um pouco complacente demais. Não era severo como o outro, tendendo a acatar qualquer pedido do filho. Bastava um olhar doce com algumas lágrimas e ele cedia, sempre com o semblante de pena, ainda que sentisse um tanto culpado por estar sendo condescendente demais.

Não que Eikichi reclamasse, era legal poder dormir tarde e comer pizza quando as receitas do pai falhavam, mas ele sentia saudades da companhia do papai e até mesmo de suas regras e constantes instruções e organização. As vezes ele até se irritava com a falta de comprometimento do pai alfa em manter as atividades rotineiras e o ajudava, cobrando para que ele fosse um pouco mais atento.

Por meses ele conseguiu se comprometer, sem querer arranjar problemas aos pais, contudo, como toda criança, sua resiliência se rechaçou com facilidade. Queria ser maduro e dar ao pai ômega o tempo e paz que precisava, algo que sua natureza não lhe permitiu por mais que alguns meses.

Na escola ele ia de mal a pior, sem conseguir se concentrar em nada. Literalmente estava ignorando as medicações e sem elas sua mente voava livre, qualquer lufada de ar se tornando uma distração impossível de ser ignorada. Por isso voltou a ser visita constante na coordenação por não conseguir ficar parado, ainda que não seja uma criança bagunceira.

Já nem usava mais o aparelho auditivo, detestava aquela coisa. Sem o pai ômega para lhe cobrar ele o ignorava ou desligava, voltando ao mundo taciturno ao qual amava. Estava acostumado ao silêncio e, quando estressado, o som o incomoda e deixava irritado demais para ser um bom garoto. Sem contar que sem não há o risco de quebrá-lo por não conseguir ficar parado como acontecera tantas outras vezes antes.

Naquela tarde ele se arrependeu de não estar usando o aparelho externo, principalmente quando percebeu estar perdido. Estava explorando com os primos quando um pássaro um tanto diferente chamou sua atenção e o fez desviar e se afastar dos demais inconscientemente.

Quando deu por si estava sozinho e não fazia ideia de como voltar. Quase entrou em desespero, mas o medo escapou ao ver o mesmo pássaro de novo. Perdeu-se no vislumbre das asas batendo contra a luz do sol que escapava por entre as copas das árvores, a boca abrindo em um esgar de pura admiração. Nunca foi preciso muito para lhe tirar o foco de algo.

O pássaro era tão bonito que Eikichi não conseguia desviar o olhar, encantado com as penas multicoloridas. Ao vê-lo pousar em uma árvore alta, não pensou duas vezes e tratou de subir, escalando-a com a habilidade e agilidade que apenas uma criança peralta possui.

Um cálculo errado o fez confiar o peso e um galho falsamente forte que se rompeu sem ser capaz de suportar seu peso.

Caiu em cima do pé, sentindo o osso estalar sob seu corpo quando o virou de mal jeito. A dor o atingiu com tamanha intensidade que não pode conter a própria individualidade que se ativou, queimando e incendiando o tronco da árvore que acabara de cair.

Os olhos do pequeno Eikichi se abriram em pavor ao perceber as labaredas se espalhando rapidamente, consumindo a madeira com velocidade o suficiente para ela estalar e chiar, sons que não captava, mas podia sentir pela vibração na terra, ou talvez fosse apenas um breve resquício de memória que seu cérebro guardou quando estava se acostumando ao aparelho coclear.

Tentou se afastar, mas não conseguiu, parando de imediato ao sentir a dor rasgá-lo com ainda mais vigor ao tentar se mover. Ele sabia que precisava se afastar, mas não era capaz de suportar a dor toda vez que tentava se levantar. Os nervos gritavam em agonia, repuxando-se e o fizeram chorar de medo, dor, incapacidade enquanto se culpava por ter sido burro o suficiente para não tomar os remédios para concentração ou usar o aparelho externo. Havia criado uma armadilha mortal para si mesmo.

Como uma última tentativa, ele tocou a própria garganta, prestando atenção na vibração das cordas vocais enquanto tentava reproduzir o som. Era difícil, sem o aparelho ele não podia afirmar ao certo se estava produzindo o som adequado ou se a vibração era suficiente para ser escutada.

Mesmo assim ele tentou chamar a atenção, os lábios trêmulos pronunciando debilmente as palavras que ele não podia escutar, mas que desejava que fossem ouvidas por quem clamava.

— Me ajude... papai...

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Podem jogar as pedras eu mereço cada uma delas.

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