Eu estou bonita hoje.
Os meus cabelos castanhos estão presos em um coque com tranças no topo da cabeça, e eu estou usando um vestido azul bonito à beça, com carpas douradas e vermelhas espalhadas por sua extensão, até que se torne transparente no final. Não estou com sapatos verde-limão nos pés, e isso faz com que eu sinta que, de certo modo, estou cometendo um crime. A cor púrpura dos meus olhos parece mais brilhante hoje e, ironicamente é um dia de chuva.
Tem muito tempo que eu não choro. Digo isso porque dias de chuva são dias sem Taeyong, e tudo sem ele me deixa profundamente letárgica. Mas faz um bom tempo que não me sinto confortável o suficiente comigo mesma pra que possa perder o ar de tanto chorar. E isso me deixa apavorada.
Às vezes eu tenho uma certeza assustadora de tão descomunal que estou vivendo a vida de outro alguém, assistindo o meu corpo comprar frutas baratas na feirinha da esquina e devorar uma melancia inteira em menos de 10 minutos, e não consigo afirmar com exatidão o momento em que senti minha alma sair correndo pelos os olhos e todas as minhas palavras pertencendo a outra pessoa. Me perdi em um par de sapatos feios e cabelos vermelhos de bravura, me tornando, de repente, a extensão de algo muito maior. Extensões, entretanto, não conseguem sobreviver sem uma base sólida, e eu não durei por muito tempo depois que ele se foi, me afogando na saudade de um milagre e queimando a pele em dias escaldantes de sol em que eu desejo muito sentir qualquer coisa que me qualifique como algo além de nada.
Tentei me levantar religiosamente um minuto após as seis horas todas as manhãs, porque preciso contar até sessenta para começar mais um dia difícil. Tentei vestir os sapatos feios que ele usava para perambular pelos lados e me sentar no banco da praça em que nos conhecemos. Em dias onde o sol alcança os meus olhos e a avenida mais pavimentada do meu peito não consegue abafar a voz das multidões ao meu redor, eu tenho muito espaço para sentir falta de tudo. As minhas rupturas e permanências não são objetivas, e a nossa subjetividade parte de muitos planos disformes, Taeyong.
Quem diria que uma advogada meia-boca conheceria o seu propósito após uma uma noite doída de insônia? E quem acreditaria que alguns amores oceânicos como nosso, que preenchem os pulmões e arrancam oxigênio devagarinho até não poder falar mais nada sem ter flores crescendo ao redor dos lábios, não podem ser realizados?O que havia de errado com nós dois afinal?
Não faz muito sentido pra mim. Não gosto de pensar nisso, mas é só o que venho fazendo nos últimos três anos da minha vida, os olhos ardendo cada vez que me recordava da sua pele gelada nos meus braços, uma madrugada quente de 1997. Taeyong foi embora com sangue brotando do peito e uma bala cravada no corpo, as mãos agarradas à uma pistola que ele não conseguiria manter longe dos dedos mesmo que quisesse muito.
Mesmo que após a sua morte eu tenha chorado por uma semana seguida, e depois não tenha chorado mais, não consigo mais me expressar corporalmente. Eu não quero ser fraca. Não posso e não mereço nada. De certo modo, sinto como se isso concretizasse cada vez mais a minha ruína prematura, constituída de tijolos fracos demais para que consigam sustentar as coisas que eu crio na minha cabeça de merda.
Todas as balas e armas de fogo que Taeyong enfrentou como pistoleiro nunca o prepararam para o fim da luz de seus olhos. Eu esfreguei os seus sapatos por cinco horas seguidas com a esperança de extinguir o sangue seco grudado neles depois que tudo acabou. A sobrevivência de algo nosso se esgueira pelo meu apartamento, escondidos nas minhas roupas, no meu despertador idiota que toca todos os dias às 6:01 da manhã, e no gás que eu deixei aberto hoje novamente. E tudo bem.
Porque afinal de contas, eu sorri hoje como não fazia há tempos, abracei o meu guarda-chuva rosa com estampa de flamingos e enfrentei a chuva mais uma vez.
Tive coragem de descansar uma flor bonita e meio murcha em sua sepultura e de ler o seu epitáfio com a voz quebrada, sentindo como se estivesse prestes a me espatifar no chão, toda feita de porcelana; cheia de rachaduras irreparáveis & intocáveis. Fiquei parada na chuva por horas, repassando tudo na mente só para ter certeza de que não iria esquecer de nenhum detalhe.
Após as três primeiras horas, entretanto, eu já não conseguia distinguir se o que alagava o cemitério eram os meus olhos ou as gotas de chuva.
Ele se chamava Lee Taeyong, e tinha 24 anos quando respirou pela última vez. Gostava de verde-limão e de vestidos azuis. Dois de abril. 4:45 da madrugada. Na minha frente. Nos meus braços.
Ao fim de tudo, voltei para casa tomada por um silêncio brutal que nem eu mesma compreendia o significado, pois a compreensão de algo não alivia a sua culpa.
Mas ele costumava dizer que dias de chuva foram moldados para o silêncio, e talvez aquela fosse a espécie de resposta que eu precisava receber.
🐉
❝ quem diria que
a última vaidade de um homem
que amou
entre armas e botas
se resumiria a um epitáfio mal feito
de palavras e sonhos esparramados
em todos os seus sóis poentes
e constelações tortas
Lee Taeyong foi
a maior comprovação
de que um anjo
pode chorar sobre
seu próprio par de asas
e viver em algo
muito maior
que seu próprio ostracismo. ❞

VOCÊ ESTÁ LENDO
PISTOLEIRO
FanfictionSeulgi se apaixonou em uma manhã repleta de luz, os cabelos fervendo sobre os ombros e duas argolas prateadas encostando nas suas bochechas. Encontrou um par de olhos púrpura tão perdidos quanto os seus e nunca mais se esqueceu deles. Mais tarde, Se...