Capítulo dois

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MAITÊ

Por sorte consegui levantar da cama no horário em que sempre acordo às oito da manhã. Por alguma razão eu não consegui relaxar e dormir bem esta noite.

Após escovar os dentes e trocar de roupa, segui para a  cozinha e preparei o café da manhã. Alimentei Lara que sempre acordara cedo e comecei a preparar os aperitivos para levar para o bar. Eu estava desempregada, mas isso não significava que eu não trabalhava feito louca. 

Pedro sempre fora desconfiado em relação aos seus funcionários, por isso ele exigia que eu trabalhasse para ele para evitar o aumento de empregados em seu bar que pudessem roubá-lo. Por isso, eu limpava o bar pelo menos uma vez ao dia e preparava parte da comida que era vendida lá. Preparar tanta comida não é algo tranquilo, mas a pior tarefa do meu dia sempre fora limpar aquele lugar. 

Certa vez Pedro me ligou no meio da noite e exigiu que eu fosse para o bar limpar o banheiro. Chamei um táxi e levei Lara para a casa da minha irmã Sara e fui para o bar. O banheiro que precisava ser limpo era o masculino e ele estava completamente nojento. Havia vômito e urina em todos os cantos. Pouco tempo depois do término da limpeza, um homem me parou na porta e começou a me assediar. Ele dizia que eu poderia ganhar um pouco mais do que o que eu recebia "naquela espelunca"  se eu fosse para a cama com ele. Mas, mesmo eu negando, ele tentou diversas investidas. Fiquei absurdamente assustada e sem saber o que fazer quando ele me prensou contra a porta. No entanto, antes que ele fizesse mais alguma coisa, um rapaz apareceu e disse: "Essa é a mulher do Pedro, toma cuidado. O patrão não vai gostar nada disso." 

Naquele momento uma onda de alívio veio imediatamente com a fala daquele rapaz e, principalmente, com o afastamento repentino do homem que me prensava segundos antes. Ao descobrir que eu era "a mulher do Pedro", o homem se afastou e pediu desculpas. Mas não se engane. Ele não pediu desculpas para mim, ele pediu para Pedro que havia aparecido no mesmo instante. 

Quando todos saíram do banheiro e me deixaram sozinha, eu ri da ironia desse episódio e de como os homens são ridículos. Em nenhum momento um pedido de desculpas foi dito para mim, porém ao saber que eu era "mulher de alguém" a história mudou. Foi como se houvesse um acordo implícito, que não teve minha participação, afirmando que se eu fosse solteira, se eu não fosse “a mulher de fulano”, aquele cara poderia fazer qualquer coisa comigo.

Saí dos meus devaneios quando me dei conta de que eu havia realizado todos os meus afazeres no modo automático. Sequer notei quando comecei a preparar o almoço, mas, no momento em que um cheiro de queimado dominou o ambiente, logo desliguei o fogão. Abri todas as panelas exasperada, e descobri que o cheiro vinha do arroz. Chequei para ver se havia queimado muito, porém, ao constatar que era pouco, percebi que daria para aproveitá-lo. Preocupada por ter me perdido em pensamentos, olhei de relance para o relógio e me assustei ao ver que já se passava das onze horas da manhã. Rapidamente peguei um prato e comecei a servir a porção de Lara. 

Minha filha estava assistindo “Doutora Brinquedos”, seu desenho favorito, quando a chamei para desligar a televisão e se sentar na mesa para comer. Prontamente, ela fez tudo que eu tinha pedido para ela. Em virtude do tanto que trabalho, não tenho muito tempo com minha filha, por esse motivo, sempre procuro, nos horários das refeições, sentar junto a ela, conversar e aproveitar ao máximo esse nosso período juntas. Entretanto, devido à minha distração, não pude me dar ao luxo de acompanha-lá e continuei a preparar todos os aperitivos do bar. 

Pouco tempo depois, Lara abraçou minhas pernas pedindo atenção.

— Mamãe, já está na hora de tomar o suco, né? — Quando a encaro, sou recebida com seu sorriso banquela e seus grandes olhos pidões. — Já comi tudinho. Pode olhar. — Ela estendeu o prato sorrindo. Peguei o prato de sua mão e coloquei na pia.  

— Tá bem, filha. Sente na cadeira que mamãe já leva para você. — Deixei um beijo em sua testa e ela caminhou até a mesa balançando seu rabo de cavalo. Lara, assim como eu, tem o cabelo crespo e bem volumoso, por isso, por mais que ela ame seu cabelo solto, sempre tento convencê-la a prender para que não seja premiada com mais uma infestação de piolhos. 

Peguei a jarra de suco na geladeira e depositei o líquido em um copo de acrílico. Levei o copo até Lara que estava distraída traçando um desenho na mesa com seus dedinhos. Coloquei o copo na sua frente e sentei na cadeira ao seu lado. 

— Um beijinho por seus pensamentos. — Cutuquei seu bracinho e quando ela percebeu minha presença, sorriu e pegou o copo na sua frente. — Não vai me dizer o que passa nessa cabecinha?

— Não é nada demais, mamãe. — A encarei tentando mostrar que eu sabia que ela estava escondendo algo. Lara suspirou relutante e colocou o copo na mesa. — Ontem quando eu fui tirar meu caderno da mochila, eu vi que tinha um papelzinho dentro dela. Quando eu li estava escrito que sou muito feia e que pareço uma baleia de tão gorda. Eu fiquei muito triste, mamãe, e então levei o papelzinho até a professora. Ela perguntou para todo mundo da sala quem tinha feito aquilo, mas ninguém respondeu. Então ela fez uma roda com a gente e conversou sobre não podermos fazer isso com ninguém, porque é isso é… uma palavra com b… — Ela parou de falar tentando lembrar a palavra que a professora disse. 

Bullying. — Falei segurando as lágrimas.

É muito triste para mim saber que só fui comunicada sobre isso hoje, um tempo depois do acontecimento. Queria poder estar lá naquele momento para amparar minha filha. Meu desejo maior é poder passar por isso no lugar de Lara, para não vê-la triste. No entanto, senti orgulho ao saber que ela procurou ajuda de um adulto e fiquei muito feliz pelo fato da professora ter feito algo a respeito.

Sempre tento mostrar para Lara que são as diferenças que nos tornam únicos. Digo a ela que há pessoas que vão tentar dizer o contrário, contudo não podemos deixar que essas pessoas tenham o poder de nos impor seus padrões a respeito do que é bonito ou feio. Me esforço diariamente para mostrar à minha filha que o preconceito existe, mas não há motivos para abaixarmos a cabeça para ninguém. Pois, o verdadeiro valor de cada indivíduo está em seu caráter e em suas atitudes, não em aparências. 

Eu sei que não conseguirei proteger minha filha de gordofobia, visto que é algo extremamente enraizado na nossa sociedade por o determinado tipo de corpo não ser o padrão exposto pela mídia, mas eu farei tudo que estiver, ou não, ao meu alcance, até o momento em que eu morrer, para que ela não sofra. 

— Isso, bullying, mamãe. Então, no final da aula, um dos meninos disse a professora que ele tinha feito essa brincadeira sem querer. A professora chamou os pais dele e conversou com eles na escola. A diretora tentou te ligar, só que você não atendeu. Mas, a tia Sara conversou com a professora quando foi me buscar.

Tentei buscar na minha mente onde tinha deixado meu celular e lembrei que ontem eu cheguei tão cansada que desliguei o celular para que Pedro não me incomodasse. Acredito que minha mãe não sabia desse episódio do bullying com Lara, pois se ela soubesse teria mencionado quando a trouxe para casa. Acredito que Sara não lhe contou, pois sabe como mamãe fica extremamente triste quando acontece qualquer ato preconceituoso seja com quem for.  Ajeitei minha postura e segurei as mãozinhas da Lara. 

— Filha, você é linda! E eu não estou dizendo isso porque sou sua mãe, mas sim porque é verdade. O corpo de todas as pessoas são lindos e o seu não é mais bonito e nem mais feio do que o de ninguém. Lembra que a mamãe disse que as pessoas são diferentes uma das outras? — Ela fez que sim com a cabeça. — Então, por sermos diferentes uns dos outros, vão existir pessoas que não terão o conhecimento que você tem sobre o fato de que somos diferentes e que tudo em nós é lindo. — Sorri e deixei um beijo em suas mãos. — Estou muito orgulhosa de você ter falado com sua professora. Nunca deixe que ninguém lhe diga que você é feia, que tem o cabelo feio ou ruim ou qualquer outro comentário maldoso, pois você é perfeita. 

Lara saiu de sua cadeira e veio para os meus braços. Seus braços rodearam meu pescoço e eu a puxei para o meu colo com um dos braços em torno da sua cintura. A enchi de beijinhos enquanto ela sorria. Eu sempre irei fazer de tudo para vê-la feliz.   

Quando o Acaso Vira DestinoOnde histórias criam vida. Descubra agora