Capítulo 4

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“Com certeza que não,” disse o Dr. Blythe, num tom que Jem
compreendeu.
O Jem sabia que não havia forma de mudar a opinião do pai, o que a mãe
fosse tentar mudá-la a seu favor. Era simples de ver que neste assunto
o pai e a mãe estavam de acordo. Os olhos cor de avelã do Jem
escureceram-se com zanga e a desilusão enquanto ele olhava para os
seus pais cruéis...encarava-os...e com tanto mais fervor quanto eles
pareciam indiferentes aos seus olhares e continuavam a comer o jantar
como se nada estivesse errado ou fora do lugar. Claro que a tia Mary
Maria reparava no seu olhar...nada escapava aos olhos azuis-claros e
tristes da tia Mary Maria...mas ela apenas parecia divertida com ele.
O Bertie Shakespeare Drew tinha brincado com o Jem toda a tarde…o
Walter tinha ido para a Casa de Sonho brincar com o Kenneth e a Persis
Ford...e o Bertie Shakespeare tinha dito ao Jem que todos os rapazes
do Glen iam ao porto ver o Capitão Bill Taylor tatuar uma cobra no
braço do sobrinho James Drew. Ele, Bertie Shakespeare, ia, e o Jem não
queria vir também? Ia ser tão divertido. Jem ficou logo doido de
vontade de ir; e agora fora-lhe dito que estava completamente fora de
questão.
“Por uma boa razão entre muitas,” disse-lhe o Pai, “É muito longe para
vocês irem com aqueles rapazes. Eles não vão voltar senão muito tarde
e tu deitas-te ás oito, filho.”
“Eu ia todos os dias para a cama ás sete quando era pequena,” disse a
tia Mary Maria.
“Tens que esperar até seres mais velho, Jem, antes de poderes sair
para tão longe à noite,” disse a mãe.
“Vocês disseram isso na semana passada,” exclamou Jem indignado,” e
agora sou mais velho. Vocês pensam que eu sou um bebé! O Bertie vai e
ele é da mesma idade que eu.”
“Anda por aí a papeira,” disse a tia Mary Maria de uma forma sombria.
“Podes apanhar papeira, James.”
Jem odiava que lhe chamassem James. E ela fazia-o sempre.
“Eu quero apanhar papeira,” resmungou rebelde. Então, vendo a
expressão do pai, sossegou. O pai não admitia que ninguém respondesse
à tia Mary Maria. Jem odiava a tia Mary Maria. A tia Diana e a tia
Marilla eram umas tias muito boas, mas a tia Mary Maria era uma
novidade na experiência de Jem.
“Está bem,” disse com ar de desafio, olhando para a Mãe de forma que
ninguém desconfiasse que ele estava a falar com a tia Mary Maria, “se
não querem gostar de mim não precisam de se esforçar. Mas agora
gostavam se eu me fosse embora matar tigres em África?”
“Não há tigres em África, querido,” disse a Mãe gentilmente.
“Leões, então!” gritou Jem. Estavam determinados a zangá-lo não era?
Queriam rir-se dele? Ele ia mostrar-lhes! “Não podem dizer que não há
leões em África. Há milhões de leões em África. A África está cheia de
leões!”
A Mãe e o Pai limitaram-se a sorrir novamente, com grande desaprovação
da tia Mary Maria. A impaciência era indesculpável numa criança.
“Entretanto,” disse a Susan, dividida entre o seu amor e empatia para
com o pequeno Jem e a sua convicção que o Dr. e a Senhora estavam
perfeitamente certos ao não o deixarem ir ao Porto com aquela tropa da
aldeia a casa do velho e bêbado Capitão Bill Taylor,”aqui está o teu
bolinho de gengibre com natas, Jem querido.”
O bolo de gengibre com natas era a sobremesa favorita de Jem. Mas
nesta noite não tinha qualquer encanto para acalmar a sua alma
tempestuosa.
“Eu não quero isso!” disse amuado. Levantou-se e foi-se embora da sala
de jantar, virando-se à porta para gritar um desafio final.
“Eu n’a vou para a cama senão ás nove horas. E quando eu crescer nunca
me vou deitar. Vou ficar levantado toda a noite...todas as noites...e
vou-me tatuar todo. Vou ser tão mau, tão mau. Vocês vão ver.”
“’Eu não vou’ soava tão melhor do que ‘n’a vou’, querido,” disse a
Mãe.
Mas será que nada os faria compreender?
“Parece-me que ninguém quer a minha opinião, Annie, mas se eu tivesse
falado assim aos meus pais quando eu era pequena tinha levado uma sova
de chicote,” disse a tia Mary Maria. “Eu acho uma pena que as varas
estejam tão fora de moda hoje em dia.”
“O pequeno Jem não tem culpa,” respondeu Susan, vendo que o Dr. e a
senhora não iam dizer nada. Mas se a Mary Maria Blythe pensava que
ficava com a última palavra, ela, Susan, ia saber porquê. “O Bertie
Shakespeare é que lhe encheu a cabeça com aquela conversa, de como
seria divertido ir ver o Joe Drew a ser tatuado. Ele esteve cá toda a
tarde e entrou para dentro da cozinha para levar a minha melhor
caçarola de alumínio para usar como capacete. Disse que estavam a
brincar aos soldados. E depois estiveram a fazer barcos com telhas e
molharam-se todos no riacho do vale. E depois disso andaram aos saltos
no jardim durante uma hora, a fazerem os barulhos mais estranhos, a
imitarem as rãs. Rãs! Não admira que o pequeno Jem esteja tão cansado
e fora de si. Ele é a criança mais bem comportada que já se viu,
quando não está estafado, e é bem verdade.”
A tia Mary Maria não disse nada de irritante. Ela nunca falava com a
Susan ás refeições, expressando desta fora a sua desaprovação em
relação ao facto de naquela casa se permitir que a criada comesse à
mesa com os patrões.
Anne e Susan tinham decidido isso antes de a tia ter chegado. A Susan,
que ‘sabia o seu lugar’, nunca se sentava à mesa com a família ou
esperava fazê-lo quando haviam visitas em Ingleside.
“Mas a tia Mary Maria não é uma visita,” disse Anne. “Ela é da
família...e você também, Susan.”
Por fim Susan acedeu, não sem uma satisfação secreta pelo facto da
Mary Maria Blythe ver que ela não era uma criada vulgar. A Susan nunca
tinha visto a Tia Mary Maria, mas uma sobrinha dela, a filha da sua
irmã Matilda, tinha trabalhado para ela em Charlottetown e tinha-lhe
contado umas coisas sobre ela
“Eu não vou fingir, Susan, que estou muito feliz com uma visita da tia
Mary Maria, especialmente nesta altura,” disse Anne com franqueza.
“Mas ela escreveu ao Gilbert a perguntar se podia vir por umas
semanas...e você sabe como o doutor é em relação a essas coisas...”
“E tem todo o direito de ser,” respondeu Susan. “O que mais pode ter
um homem a fazer, senão apoiar a sua família? Mas quanto a serem umas
semanas...bem minha querida senhora, eu não quero olhar só para o lado
mau das coisas...mas a cunhada da minha irmã Matilda veio visitá-la
durante umas semanas e acabou por ficar vinte anos.”
“Eu não acho que isso seja de recear, Susan,” sorriu Anne. “A Tia Mary
Maria tem uma casa muito boa em Charlottetown. Mas começa a achá-la
muito grande e solitária. A mãe dela morreu há dois anos, sabe…tinha
oitenta e cinco anos e a Tia Mary Maria foi muito boa para ela e tem
muitas saudades. Vamos tentar tornar a visita dela o mais agradável
possível, Susan.”
“Eu vou dar o meu melhor, minha querida senhora. Claro que tenho que
pôr outra tábua na mesa, mas sempre é melhor quando se alarga uma mesa
do que quando se tem que encolher.”
“Mas não podemos ter flores na mesa, Susan, porque parece-me que lhe
fazem asma. E a pimenta fá-la espirrar, por isso também não pudemos
usar. Ela também sofre bastante de dores de cabeça, por isso temos que
tentar não ser barulhentos.”
“Santo Deus! Bem, eu nunca reparei que a senhora e o doutor fossem
muito barulhentos. E se eu quiser gritar posso ir ao meio do bosque,
mas se as nossas pobres crianças tiverem que estar caladas o tempo
todo por causa das dores de cabeça da Mary Maria Blythe...vai-me perdoar por dizer isto, mas é ir um pouco longe demais, minha querida
senhora.”
“É só por umas semanas, Susan.”
“Esperemos que sim. Oh, bem, minha querida senhora, temos que comer a
gordura da vida da mesma maneira que comemos as febras,” foi a
declaração final da Susan.
E a Tia Mary Maria veio, perguntando assim que chegou se tinham
mandado limpar a chaminé recentemente. Ela tinha, ao que parecia, um
grande pavor do fogo. “E eu sempre disse que as chaminés desta casa
não tinham altura suficiente. Espero que a minha cama tenha sido bem
arejada, Annie. É horrível ter lençóis a cheirar a humidade.”
Ela tomou posse do quarto de hóspedes de Ingleside...e todos os outros
da casa à excepção do da Susan. Ninguém saudou a chegada dela com um
entusiasmo muito aberto. O Jem, depois de uma olhadela rápida,
esgueirou-se para a cozinha e segredou a Susan, “Podemos rir-nos
enquanto ela cá estiver?” Os olhos de Walter encheram-se de lágrimas
assim que a viu e teve que ser vergonhosamente retirado da sala. As
gémeas não esperaram que as retirassem e fugiram pelos seus próprias
meios. Até o Camarão, garantiu Susan, saiu e teve um ataque de nervos
no quintal. Apenas o Shirley lá permaneceu, olhando-a destemido com os
seus olhos castanhos muito redondos, do colo seguro de Susan. A tia
Mary Maria achou que as crianças de Ingleside não tinham muito boas
maneiras. Mas o que se poderia esperar se tinham uma mãe que escrevia
para jornais, um pai que achava que elas eram perfeitas só porque eram
suas, e uma empregada como a Susan Baker que não sabia o seu lugar?
Mas ela, Mary Maria Blythe iria dar o seu melhor pelos netos do seu
pobre primo John enquanto estivesse em Ingleside.
“As tuas graças são sempre tão curtas, Gilbert,” disse de forma
desaprovadora na primeira refeição que tomaram. “Gostavas que eu desse
as graças enquanto cá estou? Seria um exemplo melhor para a tua
família.”
E para horror de Susan Gilbert disse que sim, e a Tia Mary Maria disse
as graças ao jantar. “Pareceu-me mais um sermão que umas graças,”
resmungou Susan enquanto lavava a loiça. Susan concordava secretamente
com a descrição que a sua sobrinha dera de Mary Maria Blythe. “Ela
parece estar sempre a sentir um mau cheiro. Não é um odor
desagradável...é um mau cheiro.” A Gladys tinha a sua maneira de
definir as coisas, reflectiu Susan. Mas mesmo assim, para alguém menos
influenciado que Susan, Mary Maria Blythe não era uma mulher
desagradável de se ver para quem tinha já cinquenta e cinco anos. Ela
tinha o que acreditava serem “feições aristocráticas”, emolduradas por
lustrosos caracóis cinzentos que pareciam insultar o pequeno troço de
cabelo cinzento de Susan. Ela vestia-se muito bem, usava brincos
compridos e colarinhos altos de renda que estavam muito na moda.
“Pelo menos não nos envergonhamos do aspecto dela,” reflectiu Susan.
Mas o que a Tia Mary Maria teria pensado se soubesse que era esse o
consolo de Susan relativamente à sua pessoa é coisa que apenas podemos
imaginar.

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde histórias criam vida. Descubra agora