Capítulo 9

189 8 0
                                    

O Walter, sozinho no escuro, ainda achava impossível adormecer. Ele
nunca dormira sozinho na vida. Tinha sempre o Jem ou o Ken por perto
para o reconfortarem. O pequeno quarto tornou-se mais visível quando a
lua o começou a iluminar, mas era quase pior que a escuridão. Uma
imagem aos pés da cama parecia rir-se para ele...as imagens pareciam
sempre tão diferentes à luz da lua. Nessa altura via-se nelas coisas
de que nunca suspeitávamos durante o dia. As grandes cortinas de
croché pareciam mulheres altas e magras, a chorarem uma de cada lado
da janela. Haviam barulhos pela casa...estalos, suspiros, murmúrios. E
se os pássaros do papel de parede ganhassem vida e viessem mesmo picar-lhe os olhos? Um grande medo tomou posse de Walter...e depois o
medo maior de todos baniu-os a todos. A Mãe estava doente. Ele tinha
que acreditar, a Opal tinha dito que era verdade. Talvez a mãe
estivesse a morrer! Talvez a Mãe já estivesse morta! Não ia haver
nenhuma mãe em casa para ele voltar. O Walter já imaginava Ingleside
sem a Mãe!
Subitamente deixou de suportar. Ele tinha que voltar a casa. Naquela
altura, naquele instante. Ele tinha que ver a mãe antes que
ela...antes que ela...morresse. Era isto que a Tia Mary Maria queria
dizer. Ela sabia que a mãe ia morrer. Não valia a pena acordar toda a
gente e pedir para o levarem a casa. Eles não o iam levar...eles só se
iam rir dele. Era um caminho muito grande, mas ele ia andar toda a
noite.
Muito silenciosamente saiu da cama e vestiu-se. Levou os sapatos na
mão. Ele não sabia onde é que a senhora Parker tinha posto o boné
dele, mas não tinha importância. Ele não podia fazer barulho...tinha
que fingir para ir ter com a mãe. Tinha pena de não ter dito adeus à
Alice...ela teria compreendido. Atravessou o hall escuro...desceu as
escadas...degrau a degrau...respirando baixinho...não teriam fim
aqueles degraus?...a própria mobília estava à escuta...oh,oh!
O Walter tinha deixado cair um dos seus sapatos! E despenhou-se
escadas abaixo, saltando de um degrau para o outro e atravessou o hall
do rés-do-chão, indo bater numa porta com o que pareceu ao Walter um
barulho ensurdecedor.
O Walter encostou-se em desespero ao corrimão. Toda a gente tinha que
ter ouvido aquele barulho...iam aparecer...não o iam deixar voltar a
casa...um soluço de desespero morreu-lhe na garganta.
Pareceu-lhe que tinha passado horas até que se atreveu a acreditar que
ninguém tinha acordado...antes que conseguisse retomar a sua passagem
cautelosa pelas escadas. Mas ele conseguiu por fim; encontrou o seu
sapato e rodou cuidadosamente a maçaneta da porta da frente...as
portas nunca estavam trancadas na casa dos Parkers. A senhora Parker
dizia que não tinham nada que valesse a pena roubar senão as crianças,
e a elas ninguém as ia querer.
O Walter saiu...a porta fechou-se atrás dele. Calçou os sapatos e
começou rua abaixo: a casa estava no fim da aldeia e em breve estava
em estrada aberta. Um momento de pânico tomou conta dele. O medo de
ser apanhado tinha passado e todos os seus antigos medos da solidão e
do escuro voltaram. Ele nunca tinha estado na rua sozinho de noite.
Ele tinha medo do mundo. Era um mundo tão grande e ele era tão
pequeno. Até o vento frio que vinha do este parecia soprar-lhe na
cara, como se a mandá-lo de volta para trás.
A Mãe estava a morrer! Walter engoliu em seco e continuou em direcção
a casa. Andou e andou, combatendo o medo de forma galante. Havia o
luar, mas o luar fazia-nos ver coisas...e nada nos parecia familiar ao
luar. Uma vez que tinha saído com o pai tinha achado que não havia
nada mais bonito que uma estrada ao luar atravessada por sombras de
árvores. Mas agora as sombras eram tão negras e afiadas que se podia
atirar a ele. Os campos também eram estranhos. As árvores já não eram
amigas. Pareciam olhar para ele…a juntarem-se à frente e atrás dele.
Dois olhos brilhantes olharam-no de uma vala, e um gato preto de
tamanho inacreditável atravessou a estrada a correr. Seria um gato?
Ou…? A noite estava fria: ele tremia dentro da fina blusa de verão,
mas ele não se teria importado com o fria se não tivesse tido tanto
medo de tudo...das sombras e dos sons furtivos, e das coisas sem nome
que podiam estar a espreitá-lo atrás dos bosques por onde ele passava.
Ele imaginava como seria não ter medo de nada...como o Jem.
“Eu...eu vou fingir que não tenho medo,” disse alto...e então tremeu
de terror com o aspecto perdido que a sua voz tinha a meio da noite.
Mas continuou...tinha que continuar quando a mãe ia morrer. Por uma
vez ele caiu e esfolou bastante um joelho numa pedra. De outra vez ouviu um buggy por detrás e escondeu-se atrás de uma árvore até que
passasse, com medo que o doutor Parker tivesse descoberto e viesse
buscá-lo. Outra vez parou em pânico por causa de qualquer coisa preta
e felpuda sentada num lado da estrada. Ele não ia conseguir passar por
ela…não ia…mas passou. Era um cão preto muito grande...Seria um
cão?...mas passou. Não se atreveu a correr não fosse o cão persegui-
lo. Ainda olhou desesperado por trás do ombro...tinha-se levantado e
ia andado na direcção oposta. O Walter pôs a sua pequena mão sobre o
rosto e descobriu que estava molhada de suor.
Uma estrela cadente passou no céu à sua frente, deixando um rasto de
fogo. O Walter lembrava-se de ter ouvido a velha tia Kitty dizer que
quando caía uma estrela alguém morria. Seria a Mãe? Ele tinha começado
a sentir que as pernas não aguentavam nem mais um passo, mas a ideia
pô-lo a caminho novamente. Ele agora tinha tanto frio que quase
deixara de sentir medo. Nunca mais chegaria a casa? Parecia que tinha
deixado Lowbridge há horas e horas.
E tinha sido há três horas. Tinha saído da casa dos Parker ás onze, e
eram agora duas horas. Quando o Walter deu consigo na estrada que ia
levar ao Glen deu um suspiro de alívio. Mas enquanto atravessava a
aldeia as casas pareciam-lhe remotas e distantes. Tinham-no esquecido.
Uma vaca mugiu por detrás de uma vedação e o Walter lembrou-se que o
senhor Reese tinha um touro selvagem. Começou a correr em pânico até
chegar à frente de Ingleside. Ele estava em casa...oh, estava em casa!
Então ele parou, trémulo, trespassado por um terrível sentimento de
desolação. Ele tinha estado à espera das luzes mornas e amigáveis de
casa. E não haviam luzes acesas em Ingleside!
Havia realmente uma luz, se ele a pudesse ter visto, num quarto lá
atrás onde a enfermeira dormia com o cesto da bebé ao lado da cama.
Mas para todos os efeitos, Ingleside estava tão escura como uma casa
deserta e isso quebrou a coragem de Walter. Ele nunca tinha visto ou
imaginado Ingleside completamente ás escuras de noite.
Isto queria dizer que a Mãe tinha morrido!
O Walter tropeçou no caminho do jardim através da triste sombra negra
da casa no relvado, até à porta da frente. Estava fechada. Ele bateu
levemente...não chegava ao batente...mas não teve resposta, nem
esperou por ela. Ele escutou...não havia um único som dentro de casa.
Ele sabia que a mãe tinha morrido e todos se tinham ido embora.
Ele estava agora demasiado exausto e frio para chorar; mas deu a volta
até ao celeiro e subiu pela escada para um monte de feno. Ele já tinha
passado o estado de pânico, agora só queria sair do alcance daquele
vento e deitar-se até amanhã. Talvez então alguém voltasse depois de
terem enterrado a mãe.
Um pequeno gatinho tigrado que alguém tinha dado ao doutor veio ter
com ele a ronronar, a cheirar bem a trevo e a feno. O Walter agarrou-o
encantado...estava quentinho e vivo. Mas ele ouviu os ratos a passarem
no chão e não quis ficar. A lua olhava-o através da janela cheia de
teias de aranha mas não havia consolo naquela lua fria, distante e
antipática. Uma luz que brilhava numa casa lá em baixo no Glen parecia
mais amigável. Enquanto aquela luz brilhasse ele conseguiria suportar.
Não conseguia dormir. O joelho doía-lhe e tinha frio…com uma sensação
muito estranha no estômago. Talvez ele também estivesse a morrer. Ele
esperava que sim, como toda a gente que ele gostava tinha ou morrido
ou ido embora. As noites todas tinham fim? Outras noites tinham
acabado, mas ele temia que esta não fosse acabar. Ele lembrou-se de
uma história que tinha ouvido ao Capitão Jack Flag do porto, que tinha
dito que um dia em que estivesse mesmo maluco não ia deixar nascer o
sol. Talvez ele agora estivesse mesmo maluco por fim.
Então as luzes do Glen apagaram-se...e ele não conseguiu suportar. Mas
assim que o pequeno grito de desespero lhe escapou dos lábios ele viu
que era dia.

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde histórias criam vida. Descubra agora