Capítulo 8

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Em geral o Walter gostava de dar passeios com o Pai. Ele amava a
beleza e as estradas em volta de Glen St. Mary eram lindas. A estrada
para Lowbridge era uma dupla fila de florinhas amarelas dançarinas,
com uma cova aqui e ali cheia de fetos muito convidativos. Mas hoje o
Pai não parecia estar interessado em conversar e condizia o Grey Tom
como Walter nunca o tinha visto conduzir. Quando chegaram a Lowbridge
disse uma palavras rápidas à senhora Parker e saiu sem se despedir de
Walter. Walter esforçou-se novamente para não chorar. Estava claro que
ninguém gostava dele. A Mãe e o Pai tinham gostado, mas agora já não
gostavam.
A casa grande e desarrumada dos Parker não lhe pareceu amigável. Mas
talvez nenhuma casa tivesse parecido, naquela altura. A senhora Parker
levou-o para o jardim das traseiras, onde se ouviam os ruídos de uma
alegre reunião, e apresentou-o ás crianças que pareciam encher o
espaço. Depois regressou rapidamente para a sua costura, deixando-os
“para se conhecerem melhor sozinhos”...um procedimento que resultava
muito bem em nove casos de dez. Talvez não fosse de recriminar que ela
não vise que o pequeno Walter Blythe era um dos décimos casos. Ela
gostava dele...as suas crianças eram pequenos alegres e traquinas…o
Fred e a Opal tinham um certo ar de superioridade, mas ela tinha a
certeza que nunca seriam desagradáveis para ninguém. Ia tudo correr
bem. Ela estava tão contente por poder ajudar a “pobre Anne Blythe”,
mesmo que fosse apenas por tomar conta de uma das crianças dela. A
senhora Parker esperava que tudo fosse correr bem. Os amigos de Anne
preocupavam-se bastante mais do que ela com o assunto, recordando-se
do nascimento do Shirley.
Um súbito silêncio tinha-se abatido sobre o pátio das traseiras...um
pátio que dava para um pomar de macieiras grande e arredondado. O
Walter estava parado, olhando tímida e gravemente para as crianças
Parker e os seus primos Johnsons de Montreal. O Bill Parker tinha dez
anos...um menino reguila de rosto Redondo que se parecia muito com a
mãe e que parecia muito grande aos olhos de Walter. O Andy Parker
tinha nove anos, e as crianças de Lowbridge poderiam ter dito que ele
era o “Parker mau” e tinha a alcunha de “Porco”, por boas razões. O
Walter não gostou nada do aspecto dele desde o início...o cabelo muito
curto e claro, a sua cara malvada cheia de sardas, os olhos azuis
esbugalhados. O Fred Johnson tinha a idade do Bill e o Walter também
não gostou dele, apesar de ser um miúdo bonito de caracóis brilhantes e olhos negros. A irmã dele Opal, de nove anos, tinha olhos negros e
caracóis também...olhos negros surpreendentes. Ela estava com o braço
à volta da prima Cora Parker de oito anos e ambas olhavam Walter com
alguma condescendência. Se não fosse pela Alice Parker, o Walter
talvez tivesse virado as costas e fugido.
A Alice tinha sete anos; a Alice tinha os mais lindos caracóis loiros;
a Alice tinha uns olhos azuis e suaves como as violetas do vale; a
Alice tinha bochechas rosadas com covinhas; a Alice usava um vestido
amarelo cheio de folhinhos que parecia uma pequena flor do campo; a
Alice sorriu para ele como se o conhecesse de toda a vida; a Alice era
uma amiga.
O Fred iniciou a conversa.
“Olá filho,” disse condescendente.
O Walter sentiu a condescendência e retraiu-se.
“O meu nome é Walter,” disse distintamente.
O Fred voltou-se para os outros com um tom de surpresa. Ele ia mostrar
como era a este miúdo da província!
“Ele diz que o nome dele é Walter,” disse para o Bill com um torcer
cómico de boca.
“Ele diz que o nome dele é Walter,” disse o Bill para a Opal.
“Ele diz que o nome dele é Walter,” disse a Opal para o deliciado
Andy.
“Ele diz que o nome dele é Walter,” disse o Andy para a Cora.
“Ele diz que o nome dele é Walter,” riu-se Cora para a Alice.
A Alice não disse nada. Limitou-se a olhar para o Walter com admiração
e este olhar permitiu a Walter aguentar enquanto os outros diziam,”Ele
diz que o nome dele é Walter” e depois riam como tolos.
“Que divertidas que estão as crianças!” pensou a senhora Parker com
complacência.
“Eu ouvi a mãe dizer que tu acreditas em fadas,” disse o Andy, rindo-
se descaradamente.
O Walter olhou calmamente para ele. Não ia ser rebaixado perante a
Alice.
“As fadas existem,” respondeu corajosamente.
“Não existem nada,” disse o Andy.
“Existem,” disse o Walter.
“Ele diz que existem fadas,” disse o Andy para o Fred.
“Ele diz que existem fadas,” disse o Fred para o Bill...e continuaram
com a palermice toda outra vez.
Era uma tortura para o Walter porque nunca tinham gozado com ele e não
conseguia lidar com a situação. Ele mordeu os lábios para não começar
a chorar. Ele não podia chorar à frente da Alice.
“E gostavas que te beliscássemos até ficares negro?” perguntou o Andy,
que já tinha decidido que o Walter era mariquinhas e que seria muito
divertido arreliá-lo.
“Cala-te porco!” ordenou a Alice...terrível apesar de gentil, doce e
calma. Havia qualquer coisa no tom dela que o Andy não ousou desafiar.
“Claro que eu não estava a falar a sério,” resmungou envergonhado.
O vento começou a correr de feição a Walter e tiveram um agradável
jogo do esconde no pomar. Mas quando debandaram para jantar o Walter
foi de novo inundado de saudades de casa. Foi tão terrível que por
momentos teve medo de começar a chorar à frente deles...até da Alice,
que lhe fez uma festinha tão amigável no braço quando se sentaram que
o ajudou imenso. Mas ele não conseguiu comer nada...simplesmente não
era capaz. A senhora Parker, de cujos métodos muito se podia dizer,
decidiu não dar importância ao assunto, concluindo que ele teria mais
apetite de manhã, e os outros estavam muito ocupados a comer e a
conversar para repararem nele.
O Walter interrogava-se porque é que a família falava tão alto, sem
saber que ainda não se tinham desabituado de o fazer desde a morte
recente de uma avó muito surda e sensível. O barulho fazia-lhe dor de cabeça. Oh, em casa a esta hora estavam a comer o jantar também. A mãe
havia de estar a sorrir à cabeceira da mesa, o Pai a dizer piadas ás
gémeas, a Susan a deitar natas na chávena de leite do Shirley, e a Nan
a dar pedaços de comida ás escondidas ao Camarão. Até a tia Mary
Maria, como parte do círculo familiar, pareceu subitamente investida
de uma radiância suave e terna. Quem teria tocado o gongo chinês para
o jantar? Era a semana dele tocar, e o Jem não estava em casa. Se ele
conseguisse encontrar um lugar para chorar! Mas não parecia haver um
lugar onde se pudesse abandonar ás lágrimas em Lowbridge. E
depois...havia a Alice. O Walter engoliu um copo cheio de água e viu
que ajudava.
“O nosso gato tem ataques,” disse o Andy, dando-lhe um pontapé por
baixo da mesa.
“O nosso também,” disse o Walter. O Camarão tinha tido dois ataques. E
ele não ia deixar o gato de Lowbridge melhor classificado que o de
Ingleside.
“Eu aposto que os ataques do meu são maiores que os do teu,” continuou
Andy.
“Eu aposto que não,” respondeu o Walter.
“Então, então, não discutam por causa dos gatos,” disse a senhora
Parker, que queria ter um serão sossegado para escrever um artigo para
o jornal do Instituto sobre “Crianças Incompreendidas”. Vão lá para
fora brincar. Já não falta muito para ser hora de deitar.”
Hora de deitar! O Walter apercebeu-se subitamente que tinha que lá
ficar toda a noite...muitas noites...duas semanas de noites. Era
horrível. Foi para o pomar com os pulsos apertados, para encontrar o
Bill e o Andy numa briga furiosa na relva, aos pontapés, aos gritos e
aos arranhões.
“Tu dá-me já a maçã bichosa, Bill Parker!” gritava Andy. “Eu vou-te
ensinar a dar-me maças bichosas! Vou-te arrancar as orelhas à
dentada!”
Lutas deste tipo eram uma ocorrência diária na casa dos Parker. A
senhora Parker achava que não fazia mal que os rapazes brigassem. Ela
dizia que lhes tirava a agressividade do corpo e que eles depois eram
melhores amigos. Mas o Walter nunca antes tinha visto ninguém brigar e
estava horrorizado.
O Fred incentivava-os, a Opal e a Cora estavam-se a rir, mas haviam
lágrimas nos olhos de Alice. O Walter não conseguiu suportar. Ele
meteu-se entre os oponentes, que se tinham separado por uns momentos
para tomarem ar antes de retomarem a batalha.
“Parem de brigar,” disse o Walter. “Vocês estão a assustar a Alice.”
O Bill e o Andy olharam admirados para ele até que o lado engraçado da
situação os atingiu e começaram a rir. O Bill deu-lhe uma palmada nas
costas.
“Tem coragem, miúdos,” disse. “Vai ser um rapaz de verdade se o
deixarem crescer. Cá está uma maçã para ti...e sem lagartas.”
A Alice limpou as lágrimas das faces rosadas e olhou para o Walter com
tanta adoração que o Fred não gostou. Claro que a Alice era uma menina
pequena, mas mesmo as meninas pequenas não têm nada que olhar com
adoração os outros rapazes quando ele, o Fred de Montreal estava por
perto. Ele tinha que resolver o assunto. O Fred tinha estado dentro de
casa e tinha ouvido a tia Jen, que tinha estado a falar ao telefone,
dizer qualquer coisa ao tio Dick.
“A tua mãe está muito mal,” disse a Walter.
“Não está nada!” gritou-se Walter.
“Está sim. Eu ouvi a Tia Jen dizer ao tio Dick...”o Fred tinha ouvido
a tia dizer, “a Anne Blythe está mal,” e achou piada a piorar a
questão. “Deve estar morta quando voltares a casa.”
O Walter olhou em volta com olhos atormentados. Mais uma vez a Alice
aproximou-se dele...contra os outros que se aproximavam de Fred. Eles sentiam qualquer coisa por este rapaz estranho, uma vontade súbita de
o arreliar.
“Se ela estiver doente,” disse o Walter, “o Pai cura-a.”
Era o que faria...tinha que ser!
“Isso deve ser impossível,” disse o Fred, ficando muito sério, mas
piscando o olho ao Andy.
“Não há nada impossível para o Pai!” insistiu Walter lealmente.
“Sim, mas o Russ Cárter foi a Charlottetown só por um dia no Verão e
quando voltou a casa a mãe estava morta,” disse o Bill.
“E enterrada,” disse o Andy, adicionado um toque dramático extra, sem
interessar se era verídico ou não. “O Russ ficou muito chateado por
ter perdido o funeral...os funerais são tão giros.”
“E eu ainda nunca vi nenhum,” disse a Opal muito triste.
“Pois, mas vais ter muitas oportunidades,” disse o Andy. “Mas sabes,
nem o meu pai conseguiu salvar a senhora Cárter, e ele é muito melhor
médico que o teu pai.”
“Não é nada...”
“É sim senhor, e muito mais bonito, também...”
“Não é...”
“Acontece sempre qualquer coisa quando saímos de casa,” disse a Opal.
“O que é que achavas se chegasses a casa e visses Ingleside toda
queimada?”
“Se a tua mãe morrer, o mais provável é que separem os filhos,” disse
a Cora de forma animadora. “Talvez venhas viver para cá.”
“Sim...vem,” disse a Alice.
“Oh, o pai dele deve querer ficar com ele,” disse o Bill. “Ele vai
casar de novo não tarda nada. Mas talvez o pai dele morra também. Eu
ouvi o pai dizer que o doutor Blythe se mata a trabalhar. Olhem só
para ele. Tu tens olhos de menina, filho...olhos de menina.”
“Ah, calem-se,” disse a Opal, ficando subitamente farta da diversão.
“Vocês não o estão a enganar. Ele sabe que só o estão a irritar. Vamos
lá para baixo para o parque ver o jogo de basebol. O Walter e a Alice
podem aqui ficar. Nós não temos que andar sempre com os miúdos atrás.”
O Walter não teve pena de os ver partir. Nem aparentemente teve a
Alice. Sentaram-se os dois num tronco de macieira e olharam tímida e
alegremente um para o outro.
“Eu vou-te ensinar a jogar à pedrinha,” disse a Alice,” e vou-te
emprestar o meu canguru de peluche.”
Quando chegou a hora de deitar o Walter deu por si num pequeno quarto
sozinho. A senhora Parker deixou-lhe uma vela e um cobertor extra,
porque a noite de Julho estava invulgarmente fria como são por vezes
as noites nas províncias marítimas. Quase parecia que ia haver geada.
Mas o Walter não conseguia dormir, nem com o canguru de peluche da
Alice aninhado nos braços. Oh, se ele estivesse em casa no seu quarto,
com a janela grande que dava para o Glen e a pequena, que tinha o seu
próprio telhado, que dava para o pinhal! A mãe havia de lhe vir ler
poesias na sua voz tão linda...
“Eu já sou um rapaz grande...não vou chorar...não vou...” As lágrimas
vieram apesar de tudo. E para que é que serviam os cangurus de
peluche? Parecia que tinha deixado a sua casa há anos.
Entretanto as outras crianças regressaram do parque e entraram
animadamente no quarto a comerem maçãs sentadas nas camas.
“O bebé tem estado a chorar,” gozou o Andy. “É mesmo uma menina
mimada. Menina da mamã!”
“Come, miúdo,” disse o Bill, atirando-lhe uma maçã meio mordida. “E
anima-te. Eu não me admirava se a tua mãe melhorasse… se ela tiver uma
constituição forte, claro. O Pai diz que a senhora Stephen Flagg tinha
morrido há anos se não tivesse uma constituição forte. A da tua mãe é
forte?”
“Claro que é,” disse o Walter. Ele não fazia ideia do que seria uma
constituição, mas se a senhora Stephen Flagg tinha a mãe dele também
havia de ter.
“A senhora Abb Sawyer morreu na semana passada e a mãe do Sam Clark
morreu na semana antes dessa,” disse a Abby.
“Elas morreram de noite,” disse a Cora. “A mãe diz que a maioria das
pessoas morrer de noite. Só espero não morrer de noite. Imagina só,
ires para o céu de camisa de dormir!”
“Meninos, meninos! Metam-se nas vossas camas,” disse a senhora Parker.
Os meninos foram, depois de fingirem sufocar o Walter com uma toalha.
E afinal de contas, eles até gostavam do miúdo. O Walter agarrou na
mão da Opal quando ela se ia embora.”
“Opal, não é verdade que a minha mãe está doente, pois não?” sussurrou
implorante. Ele não conseguia suportar o facto de ficar sozinho com
aquele medo.
A Opal não era uma criança com mau fundo, como teria dito a senhora
Parker, mas não conseguiu resistir à emoção de dar uma má notícia.
“Ela está mal. A tia Jen é que disse...ela disse para eu não te dizer.
Mas eu acho que tu devias saber. Talvez ela tenha um cancro.”
“Mas toda a gente tem que morrer, Opal?” esta era uma questão nova e
terrível para Walter, que nunca antes pensara na morte.
“Claro, palerma. Só que não morrem mesmo...vão para o Céu,” disse a
Opal alegremente.
“Nem todos,” disse o Andy...que estava à escuta por detrás da
porta...num murmúrio malvado.
“E...o Céu é muito longe de Charlottetown?” perguntou o Walter.
A Opal desatou a rir de forma estridente.
“Bem...tu és estranho! O Céu é a milhões de milhas de distância. Eu
vou-te dizer o que tens que fazer. Rezas. Rezar é bom. Eu uma vez
perdi um cêntimo, rezei e encontrei quinze. É por isso que sei.”
“Opal Johnson, tu ouviste o que eu disse? E apaga a vela do quarto do
Walter. Pode pegar fogo,” disse a senhora Parker do quarto dela. “Ele
já devia estar a dormir há muito tempo.”
A Opal soprou a vela e saiu. A tia Jen não era severa, mas quando se
chateava! O Andy enfiou a cabeça pela porta para uma última bênção de
boas noites.
“Talvez os pássaros do papel de parede ganhem vida esta noite e te
venham picar os olhos,” sussurrou.
Depois disto foram-se todos deitar, sentindo que o dia que passara
tinha sido perfeito, que o Walter Blythe não era um miudinho mau e que
amanhã se iam divertir imenso a atormentá-lo.
“Queridos pequenos,” pensou a senhora Parker carinhosamente.
E um silêncio indesejado caiu sobre a casa dos Parker e a seis milhas
dali em Ingleside a pequena Bertha Marilla Blythe piscava os olhos cor
de avelã aos rostos felizes à sua volta e ao mundo para o qual nascera
na noite de Julho mais fria que as províncias marítimas tinham visto
em oitenta e sete anos!

Anne de Ingleside- L.M. MontgomeryOnde histórias criam vida. Descubra agora