Em caminho de casa, Francisco Teodoro, recostado em um bonde, persistia em querer ler um
jornal da tarde, sentindo que as idéias lhe fugiam para um curso perigoso.
O êxito do Torres quizilava-o. Parecia-lhe que o outro lhe taparia o caminho, impedindo-o de
chegar ao seu último ponto de mira. Galgava-lhe de assalto a dianteira, para se quedar sempre
na sua frente, como um obstáculo.
Aquela conquista de fortuna, feita de relance, perturbava-o, desmerecia o brilho das suas
riquezas, ajuntadas dia a dia na canseira do trabalho. A vida tem ironias: teria ele sido um tolo?
Talvez, e para se certificar reviu a sua vida no Rio, desde simples caixeiro, quase analfabeto,
com a cabeça raspada, a jaqueta russa e os sapatões barulhentos
Tinha ainda fresco na memória o dia do desembarque - estava um calor! - e de como depois
rolara aos ponta-pés, mal vestido, mal alimentado, com saudades da broa negra, das sovas da
mãe e das caçadas aos grilos pelas charnecas do seu lugar.
Pouco a pouco outros grilos cantaram aos seus ouvidos de ambicioso. O som do dinheiro é
música; viera para o ganhar, atirou-se ao seu destino, tolerando todas as opressões, dobrando-
se a todas as exigências brutais, numa resignação de cachorro.
Assim correram anos, dormindo em esteiras infectas, molhando de lágrimas o travesseiro sem
fronha, até que o seu mealheiro se foi enchendo, enchendo avaramente.
Aquela infância de degredo era agora o seu triunfo. Vinha de longe a sua paixão pelo dinheiro;
levado por ela, não conhecera outra na mocidade. Todo o seu tempo, toda a sua vida tinham sido consagrados ao negócio. O negócio era o seu sonho de noite, a sua esperança de dia, o
ideal a que atirava a sua alma de adolescente e de moço.
Não podia explicar, como, só pelo atrito com pessoas mais cultivadas, ele fora perdendo, aos
poucos, a grossa ignorância de que viera adornado. A letra desenvolveu-se, tornou-se firme, e a
sua tendência para contas fez prodígios, aguçada com o sentido na verificação de lucros.
Relendo cifras, escrevendo cartas, formulando projetos, e observando atentamente o seu
trabalho e o alheio, tornara-se um negociante conhecedor do que tinha sob as mãos, e um
homem limpo, a quem a sociedade recebia bem.
Não pudera ser menino, não soubera ser moço, dera-se todo à deusa da fortuna, sem perceber
que lhe sacrificava a melhor parte da vida. Para ele, o Brasil era o balcão, era o armazém
atulhado, onde o esforço de cada indivíduo tem o seu prêmio.
Fora do comércio não havia nada que lhe merecesse o desvio de um olhar...
Tempos de amargura e de esperança, aqueles!
Relembrando o passado, Francisco Teodoro procurava em si mesmo elementos com que
pudesse bater influências e opor-se às especulações de afogadilho; devia encontrá-los
espalhados pelos dias ásperos da incerteza e os macios da prosperidade.
Esta retrospecção agradou-lhe; fixou vários períodos.
O tempo em que morara em um sobradinho do beco de Bragança, sombreado pelo beiral muito
estendido do telhado coberto de ervagem e pela sacada de rótula de um verde sujo.
Embaixo e defronte, caixoteiros, martelavam em tábuas de pinho, cujo cheiro dava ao beco
imundo uma baforada fresca de floresta. E as marteladas que lhe importavam, se poucas horas
estava em casa! De dia o trabalho; de noite o teatro ou a casa da Sidônia. Que seria feito da
Sidônia? Devia estar por aí em qualquer canto... e velha.
Aos domingos na chácara do Matos, o solo, os jantares à portuguesa, e a hospitalidade paciente
da boa D. Vica... Tudo lhe girava na memória, suavemente, suavemente.
Fora no conforto daquela chácara, vendo-se cercado de considerações, ao lado do amigo
respousado e feliz, que ele sentiu a sua importância e se lembrou que deveria haver na terra
outras delícias; mas o seu coração, cansado de uma luta formidável, negava-lhe novas
inclinações. A pátria esquecida não lhe acenava com o mínimo encanto: a mãe morrera, a sua
única irmã tinha-se recolhido a um convento. Fechara-se uma porta sobre a sua meninice.
Sentia-se só; começava a cansar-se e a enjoar as mulheres fáceis, com quem convivia em
relações momentâneas. Mesmo a Sidônia enervava-o com os seus arrufos... e as suas
denguices.
Atirou-se a proteger as instituições do seu país, a andar com medalhões e fazer mordomias na
Beneficiência. No fundo, não era só a distração que ele buscava, nem a caridade que ele
exercia; uma outra causa lhe filtrava nalma aquela vocação para o beneficio...
E a comenda chegou.
Foi só depois de comendador que Teodoro se sentiu vexado daquela habitação e se mudou
para um segundo andar da rua da Candelária, que mobiliou a vinhático, com exuberância de
cromos pelas paredes. Achou, ainda assim, que à sua casa alegre faltava qualquer coisa...
Viera-lhe a dispepsia. Que insônias!
Um médico, consultado, aconselhara-lhe uma viagem a terra ou o casamento, para a
regularização de hábitos. Ele achara cedo para a viagem: solidificaria primeiro a fortuna. A idéia
do casamento parecia-lhe mais salvadora.
Para que lhe serviria o que juntara, se o não compartilhasse com uma esposa dedicada e meia
dúzia de filhos que lhe herdassem virtudes e haveres?
No seu sonho começou a esboçar-se a idéia de um herdeiro. Teria um rapaz, que usasse o seu
nome, seguisse as suas tradições e fosse, sobretudo, um continuador daquela casa da rua de S.
Bento, que engrandeceria com o seu prestígio, a sua mocidade, bem assente no apoio e na
experiência paterna. O filho seria a sua estátua viva, nele reviveria, mais perfeito e melhor. Esse
ao menos teria infância, seria instruído.
E tanto aquela idéia o perseguia, que num domingo de sol abriu-se ao Matos, que acolheu com
ar solene e discreto as confidências do amigo.
Lembrava-se muito bem da cara com que o outro lhe respondera:
- Sei o que você quer. Tivemos aqui na vizinhança uma família que está mesmo ao pintar...
Gente pobre, mas de educação. A filha mais velha é a que lhe convém. Bonita e grave. Muito
digna.
Francisco Teodoro murmurou:
- Pois uma mulher assim é que me servia.
- O diabo é que elas vão de mudança para Sergipe...
Então acabou-se.
Não se acabou tal. Por enquanto estão hospedadas em casa de umas tias, no Castelo. Ainda é
tempo de lá irmos fazer uma visita... O resto fica por minha conta.
Foi por uma noite escura que ele, já mais por condescendência que por curiosidade, entrou com
o Matos na casa das senhoras Rodrigues, no morro do Castelo.
Fazia frio; na rua um cão uivava longa, doloridamente.
Quem abriu a porta foi a mais velha das donas da casa, d. Itelvina. senhora alta e seca, muito
nariguda, vestida de lãs pardas. Os outros ainda se cumprimentavam e já ela se sentava,
erguendo o joelho agudo sob a costura. Não tinha tempo a perder.
A outra senhora da casa andava por fora; Teodoro conhecera-a depois. Essa era toda confiante
e muito religiosa. Tinha ido à novena do Carmo com as duas sobrinhas mais moças e o irmão, o
velho Rodrigues.
Em uma sala vasta, quase nua, mal clareada por um lampião de querosene, viu Teodoro, pela
primeira vez, d. Emília, uma senhora bonita, de ar majestoso e olhos trêfegos, e as suas duas
filhas mais velhas - Camila e Sofia.
Camila fazia crochê perto do lampião; Sofia refugiara-se para um canto do canapé. queixando-
se da cabeça. E a mãe começou a falar com ar de sinceridade, muito demonstrativa. A cada
instante o nome de Camila saia-lhe da boca com um elogio. Era a filha mais velha e a mais
instruída: pilhara os tempos das vacas gordas, quando o pai exercia um cargo lucrativo.
Os dedos de Camila apressavam-se no crochê; com certeza ela havia de ter errado os pontos e
sentido os olhares de Teodoro queimarem-lhe a pele, que a tinha linda, de uma alvura azul de
camélia.
D. Emília asseverava que a sua Mila, como a chamavam em casa, esquecia-se das suas
prendas, obrigadas pela necessidade a fazer serviços domésticos.
Francisco Teodoro comoveu-se com a idéia de que aquela mulher, talhada para rainha,
passasse os dias a picar os dedos na agulha ou a calejar as mãos com o uso da vassoura ou do
ferro.
Trabalhar! trabalhar é bom para os homens, de pele endurecida e alma feita de coragem. Olhou
para a moça com veneração.
Era bonita, alta, com grandes olhos aveludados, cabelo ondeado preto e uns dentes perfeitos,
muito brancos, mas que ela mostrava pouco, sorrindo apenas. Da irmã Sofia, na sombra, mal se
adivinhavam as feições.
A uma das frases, em que a abundância do amor materno lhe debuxava as perfeições, Camila
saiu de ao pé da luz e foi para a janela olhar para o escuro.
Como correu depressa aquela noite!
Francisco Teodoro saiu tonto. O amigo ria-se: não lhe tinha dito? Gabava-se de ser
casamenteiro, levaria em breve tudo ao fim.
E dias depois o Matos pedia a mão de Camila para o amigo.
Começou então a série de presentes e de visitas. Mila tinha sempre o mesmo embaraço e a
mesma brandura de sorriso.
O que ela ouvia da família, não o podia adivinhar Francisco Teodoro, que a sentia umas vezes
reservada, outras vezes confiante.
Adiou-se a partida para Sergipe; houve doenças em casa, prolongação do noivado.
peregrinações de Teodoro por aquele morro do Castelo, com raminhos de violetas para a Mila;
todas as doçuras de namorado...
Casaram-se em um dia lindo.
Ele dera grandes esmolas aos pobres da igreja; Mila parecia um anjo entre nuvens brancas...
Depois. a família partiu para Sergipe. O pai era chocho, mas levava a carteira gorda. A mãe,
com o seu modo de rainha destronada, e as irmãs iam bem enroupadas e todas tranqüilas sobre
o futuro de Mila e do filho mais velho, o Joca, por quem Teodoro prometera olhar, e que andava
por aí, à-toa.
A sua maior comoção fora ao entrar em casa, na rua da Candelária. Supusera sempre que ela
apalpasse, com sofreguidão, todo o seu ninho, na alegria de ser a dona, a senhora de tantas
coisas compradas para o agasalho do seu amor. Mas não: em vez de ir para o interior, Camila
fora para a sacada. Ele acompanhou-a.
Em frente, os telhados mais baixos sucediam-se irregulares, cortando-se em linhas angulosas
de um vermelho sujo; as casas, desiguais, acumulavam-se, paredes ameaçando paredes,
janelinhas de sótãos espiando as telhas estriadas de limo, de onde emergiam chaminés negras
e curtas, baforando fumo.
Camila murmurava, como quem fala só:
- Se ao menos se visse o mar...
Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino reboou perto, formidável,
prolongando-se num som que era como um gemido da cidade inteira. Mila ergueu-se com um
estremeção e voltou para o perfil da igreja o olhar estático.
Ele sorrira do susto, enquanto ela dizia:
- Como é alto!
Depois desse, vieram dias tranqüilos. A mulher bordava almofadas para o sofá e emoldurava os
cromos com musgo e flores secas.
Tinham-se acostumado um ao outro, viviam em paz, quando a Sidônia reapareceu na vida de
Teodoro, obrigando-o a desvios e infidelidades. Nem a pobre Camila desconfiara nunca...
Também, nada lhe tinha faltado e já devia ser um regalo para ela cobrir de boas roupas o seu
corpo de neve, ter mesa farta, e andar pela cidade atraindo as vistas, no deleite da sua graça...
Então iam grandes remessas para Sergipe.
Um sorvedouro, aquela família, sempre exalando lamúrias em todas as cartas, na sede
insaciável de dinheiro.
Por esse tempo o seu grande desgosto era o cunhado, o Joca, que se lhe metia em casa, com
os seus maus costumes de vadio. Ele fora o causador de tantíssimas querelas! E agressivo na
sua indolência, mal humorado pelas dividas do jogo, e ingrato! Má raça. Além do mais,
pespegara-lhe depois com a filha em casa, aquela pobre Nina, tão enfezada nos seus primeiros
tempos, fina como um caniço, e com uma tosse de cão, que repercutia pelos corredores. Enfim,
essa, ao menos, servira depois para ajudar Camila a criar as filhas, que o Mário, esse já ela o
encontrara forte como um herói!.
O Mário...
No percurso da Carioca à praia de Botafogo, Teodoro foi assim reconstruindo a sua vida,
solidificando-a, pondo-a de pé. Era com essas memórias de família e de trabalho, que ele se
entrincheiraria contra os assaltos das novas ambições.
O mar, muito azul, paletado de ouro aqui, desenhava já acolá em grandes sombras negras o
perfil dos morros. Uma aragem forte sacudia as árvores, e folhas vinham redemoinhando no ar
em vôos tontos. Uns pequenos atiravam um cão da Terra Nova à água, e as janelas dos
palacetes mal se abriam aos esplendores de fora.
Perto do colégio, subiram para o bonde duas irmãs de caridade, com ramalhetes de rosas.
Teodoro conhecia-as, eram professoras da filha, e distinguiam-no sempre, por sabê-lo religioso.
Iam levar à ermida da Copacabana aquelas flores, prometidas pela salvação de uma aluna, que
estivera às portas da morte.
Uma conversa simples, em dois minutos, foi como bálsamo para o espírito fatigado do
negociante.
Demais, ele achou bonito, comovedor aquilo: uma criança às portas da morte, duas religiosas,
um ramo de flores e a visão de uma ermida sobre o mar...
Quando Francisco Teodoro chegou à casa, as suas filhas gêmeas, Raquel e Lia, brincavam na
chácara. Ao vê-lo abrir o portão, as crianças atiraram-se para ele, que mal lhes passou os dedos
pelos cabelos; elas também pouco se detiveram e Teodoro atravessou o jardim.
O seu palacete era um dos mais lindos de Botafogo. No centro de um parque, ele erguia os seus
balcões por entre palmas estreladas de coqueiros e copas de árvores bem escolhidas. Aquilo
não fora obra sua; tinha comprado a vivenda a um titular de gosto, cuja ruína o obrigara a
hipotecá-la quando a construção ia em meio e a vendê-la logo depois de concluída.
A esquerda, uma escada de pedra, ladeada por uma grade florida, conduzia ao terraço
alpendrado do andar superior, onde muitas vezes a família palestrava, à espera de descer para
o jantar. Nessa tarde só estava ali o filho mais velho, o Mário, todo derreado numa cadeira de
balanço. O pai foi andando, e ele mal esboçou um movimento para levantar-se e dar-lhe as boas
tardes.
Era já homem, muito moço ainda, e todo ele revelava preocupações de luxo e cuidado da sua
pessoa.
Na sala da frente falava-se com alegria.
- Temos visitas - pensou Teodoro, vendo chapéus de homem no cabide da saleta.
Quando ele entrou na sala, a mulher dizia à filha:
- Vai ensaiar, Ruth!
A seu lado, sentado no mesmo divã, o dr. Gervásio Gomes desenhava a lápis na carteira
qualquer coisa que a fazia sorrir. Ele gabava-se de ter jeito para a caricatura. Era um homem
magro, nervoso, de quarenta e três anos, trigueiro, e apurado na toilette. Era ligeiramente calvo,
tinha um olhar de que as lentes de míope não atenuavam a agudeza, e um sorrizinho irônico,
que lhe mostrava os dentes claros e miúdos como os dos roedores.
Camila guardava um viço prodigioso de mocidade. Todo o Rio a apontava como mulher
formosa. Tinha herdado da mãe aquele ar de majestade, que tanto impressionara Teodoro na
primeira entrevista do Castelo, adoçado por uma grande expressão de calma e de bondade.
Francisco Teodoro foi direito a eles e cumprimentou-os, sem se atrever a roçar os lábios na face
da mulher, com todo o escrupuloso pudor das suas ações em família. Sentava-se já, quando ela
lhe disse com leve censura:
- Você não cumprimenta o capitão Rino nem o maestro?
Os outros estavam ao canto da sala, junto ao piano para onde Ruth se dirigia com o violino na
mão. Pedidas as desculpas, Teodoro voltou-se para o capitão Rino:
- Muito me alegro de o ver aqui, capitão; quando chegou da sua viagem?
- Ontem.
- Você não imagina, interrompeu Camila; o capitão trouxe-me um presente lindíssimo!
- Que foi? perguntou a meia voz o dr. Gervásio.
Francisco Teodoro enxugava com o lenço a calva rosada e luzidia. Mila, voltando-se para o
médico, explicou:
- Uma coleção de orquídeas do Amazonas; e prometeu mandar vir para o lago uma Vitória
Régia.
O doutor murmurou por entre dentes, em tom que só Camila pudesse ouvir:
- Isso de prometer é que não é bonito...
A moça relanceou-lhe um olhar, como a pedir misericórdia para o outro, que palestrava agora
com o dono da casa. - Não era bonito, por que?!
O capitão Rino destacava-se entre todos na sala pelo seu tipo de louro e pela robustez do seu
corpo. Era alto, de ombros largos. Tinha as mãos grandes, os olhos claros, de um azul de
faiança, o bigode sedoso, como que acabado de nascer, e a pele queimada pelos ventos do
mar. Só se lhe percebia a alvura da tez nos pulsos ou na raiz do pescoço, quando ele atirava a
cabeça e os braços nos seus gestos largos e desajeitados. Havia qualquer coisa de infantil
naquele homem grande, uma interrogação tímida talvez no olhar, e um certo abandono, de
pessoa pouco afeita à sociedade. Vestia-se mal, usava gravatas de cores vistosas, abusando do
xadrez nos seus casacos de casimira mal feitos.
Ruth pôs-se em atitude; a mãe gritou-lhe:
- Imagina que estás diante do auditório!
Ela pareceu não a ouvir. Em pé, ao lado do piano, alta e espigada, com a cabeça unida ao seu
ombro estreito de menina, os cabelos negros caindo-lhe em ondas sobre o pescoço moreno, os
olhos de um verde límpido, de água marinha, abertos para o vácuo, tinha um ar de sonâmbula
perdida em sonhos divinos. As mãos, longas e esguias, moviam-se com segurança; o vestido
branco, salpicado de florinhas amarelas, mostrava-lhe um pouco das pernas finas, calçadas a
preto.
O Lélio Braga, recém-chegado da Alemanha, o gordo maestro que só falava de música ou de
jogo, atacou o teclado vigorosamente. Fez-se o silêncio em volta, mas por pouco tempo.
Recomeçaram as conversas em tom mais baixo. Ruth não ouvia ninguém; um brilho quente. de
sol, saia-lhe dos olhos verdes, voltados para a luz.
Só o capitão Rino parecia escutar a música, olhando de esguelha para Camila. Abominava a
confiança que ela dava ao outro, ao magro dr. Gervásio, ali tão agarrado às suas saias, dizendo-
lhe coisas que a faziam sorrir. Tudo naquele homem o irritava: o seu luxo, o seu tipo escanifrado
e o seu ar de ironia, às vezes perversa. outras insulsa.
Francisco Teodoro, nunca interessado por coisas de arte, nem mesmo pela música, quebrava
amiúde as reflexões do capitão Rino, interrogando-o sobre assuntos do Norte, de puro interesse
comercial.
Ainda vibrava no ar a última nota do violino, quando Nina, sobrinha dos donos da casa, entrou
na sala, com o seu modo simples que a tornava simpática a toda a gente. Não era bonita: tinha
o nariz grosso e alguns sinais alourados na pele pálida.
- Você viu as parasitas? perguntou-lhe Camila.
- Sim; e, voltando-se para o capitão:
- Devemos conservá-las ao ar livre ou na estufa?
O capitão fez um gesto de ignorância.
Só à hora do jantar, Mário se reuniu à família. A mesa, cheia de cristais e de prataria, tinha um
aspecto festivo.
O dinheiro ganho à custa de trabalho gosta de impor-se a admiração alheia. O dono da casa,
refrescado no paletó de brim, não se cansava de elogiar os seus vinhos e aludia amiúde à
excelência do cozinheiro.
Se alguém se esquivava a um copo de Bordeaux ou a um cálice de velho Madeira, ele acudia
animadoramente: - Beba, que esse é legítimo; igual não se encontra com facilidade por ai.
Havia sempre excesso de iguarias; voltavam para dentro pratos complicados intactos. A fartura
passava ao desperdício. A copa atulhava-se de peças grandes, em que as folhas de alface e os
desenhos a rodas de limão, de ovo, azeitonas e gelatina não disfarçavam a opulência das
carnes.
À cabeceira da mesa, Francisco Teodoro gostava de, espalhando a vista por toda a longa
superfície branca da toalha, vê-la bem coberta de coisas caras e vistosas. Assim comia com
apetite, gostosamente. Era o seu triunfo na vida, que todo esse luxo representava, na única
ocasião em que lhe sobrava tempo para admirá-lo.
Os convivas eram instados para que comessem mais, comessem sempre! Com o dr. Gervásio
havia menos instâncias: conheciam-lhe os hábitos de homem delicado. O capitão Rino era muito
mais moço e trazia da sua vida de mar valentias de estômago.
As crianças comiam à mesa, dirigidas por Nina, e faziam algazarra e exigências.
Mário repreendia-as. achando intolerável que o pai consentisse aquilo!
- O nome do seu vapor é...? perguntou ao capitão o dr. Gervásio, ajeitando a luneta no nariz.
- Netuno.
- Amado de Anfitrite e das nereidas. O patrono deve pôr-lhe em perigo o sossego...
- Por que?
- Porque assim moço, bonito, e com tal sugestão, de forte envergadura precisa o senhor para
resistir as seduções das sereias...
- Que ninguém viu nunca em mares brasileiros; respondeu o capitão ingenuamente.
- Convirá não afirmar que não as haja também em terras do Brasil, sublimou o doutor com um
sorrizinho, descendo o olhar para a pera que descascava.
Riram-se do embaraço do capitão, que murmurou, desviando a vista de Camila:
- Os cantos das sereias não me seduziriam...
- Pois é pena; sem imaginação a vida do mar não pode ter encantos. Se eu, em vez de médico,
obrigado a deter-me com o que há de mais prosaico na natureza. fosse... o capitão do navio...
perdão. do vapor Netuno, apegar-me-ia à mitologia, faria dos seus deuses a minha florida e
alegre religião, e afirmo que seriam de gozo para mim as noitadas no convés, vendo ao clarão das estrelas Vênus surgir das espumas e boiarem à tona da onda negra os dorsos brancos das
cinqüenta filhas de Nereu. Estou certo de que não sentiria a tal melancolia das águas, de que às
vezes os senhores se queixam. Um homem de espírito nunca está só...
O capitão sorriu e Francisco Teodoro falou com o seu modo sentencioso:
- Eles gozam a seu modo.
- Não gozamos, não; a vida do mar é dura.
O dr. Gervásio não pode sentir com sinceridade o que disse...
- Assevero-lhe que sim, capitão; e que parti de um princípio de que parto para todos os atos da
vida, convicto de que está no próprio homem o remédio dos grandes males que o afligem.
- Se vai dizer isso ao pé dos seus doentes, ninguém mais o chamará, replicou Camila.
- Chamarão; infelizmente chamam sempre. Ninguém tem absoluta confiança em si. O homem,
por mais que digam, ignora a força de que vem revestido para a sua função. Para nós, a
natureza representa apenas o papel secundário da paisagem; é o acessório, a mise-en-scène
da Vida, em que nos atormentamos mutuamente num alarido de inferno: Não valia a pena criar
coisas tão bonitas para serem tão mal aproveitadas. Palavra de honra! se fosse possível
conceber o riso, ou apenas o sorriso na face tremenda do Onipotente, eu diria que Ele às vezes
escarnece de nós. A sua saúde, capitão!
- Obrigado...
- Um dia meto-me no seu Netuno e atiro-me para o Norte. Curiosidade, simplesmente; tenho
mais vontade de ver os crocodilos do Amazonas do que... eu sei lá, as bailarinas da Grande
Ópera.
- Homem, dizem que a carne do crocodilo é boa, disse Francisco Teodoro.
- Há também quem afirme que a das bailarinas ainda é melhor! observou o médico.
Camila riu-se; e depois:
- E eu que nunca vi um grande vapor por dentro!
- Quer ir comigo a Manaus?
- Não; mas quero que o capitão Rino nos convide para visitar o Netuno.
O moço marítimo balbuciou, corando:
- Oh! minha senhora...
Interrompeu a frase, porque ia dizer: - eu não desejo outra coisa! mas achou mais acertado e
mais simples acrescentar somente: - quando quiser.
- Será num domingo, para que meu marido vá também. E as crianças poderão ir?
- Por que não?
Lia e Rachei bateram palmas.
Ao café, no terraço, Camila declarou preparar um grande baile para o S. João, quando Ruth
completasse os seus quinze anos.
O dr. Gervásio protestou: que viesse o baile, mas com outro pretexto.
- Por que?
- Porque a noitada de S. João mete medo às casacas e assusta os decotes. É um santo que só
quer luz de fogueiras, com altas labaredas e crepitações, e ainda há de ser no campo, entre
gente rude que dance em torno às chamas.
É uma festa que me dá idéia de uma cerimônia ritual, de povo primitivo. Deixe o seu baile para
outro dia.
- Mas depois eu não terei pretexto...
- Meu Deus! não é preciso descer uma pessoa a dar explicações aos amigos, quando se trata
de os divertir...
Francisco Teodoro ouvia o dr. Gervásio com muito acatamento, reconhecendo-lhe superioridade
intelectual.
Devia-lhe a vida dos filhos, confessava, e dessa dívida não se cansava de se dizer devedor.
Aprovou a idéia do baile, fizessem o que quisessem, a bolsa estava aberta. E a propósito,
deixando os outros a tagarelar no terraço, ele fechou os olhos e pensou na felicidade do Gama
Torres... Quem sabe?... talvez que ele pudesse fazer o mesmo; a época era favorável, o café
rendia como nunca e ainda havia esperanças de alta... Se fugisse aquela ocasião... perderia o
ensejo de triplicar de um dia para o outro a sua já grande fortuna... Fora sempre um homem de
ação, de recursos, como ficar na retaguarda, imbecilmente, deixando que a outro, novato, se
conferisse o título de Rottschild brasileiro? O ciúme do seu nome de negociante enchia-o até
aos olhos. Encadeou e desencadeou pensamentos calculistas.
Ter a maior fortuna, tendo partido do nada, era toda a sua ambição. Repetia a qualquer a
humildade da sua origem, espreitando o efeito dessa confissão. Ser o mais poderoso, o mais
rico, o mais forte, tendo partido do nada, não seria ter alcançado a suprema glória na terra?
E, ali mesmo, bem recostado na sua cadeira de balanço, com o papo cheio de ótimas iguarias,
as mãos descansadas nos braços da cadeira, ele insensivelmente passou do sonho ao sono.
Na meia sombra do lusco-fusco, os olhos do capitão Rino fulguravam, espiando com raiva os
rostos do médico e de Camila, que se contemplavam. Mário atravessou o terraço de charuto na
boca, em direção à rua.
- Onde vais? perguntou-lhe a mãe.
- Ao teatro; respondeu ele sem se deter. descendo a escada.
- Este rapaz... este rapaz... resmungou por entre dentes o dr. Gervásio, em modo de censura.
Camila desculpou-o; o filho tinha gênio e era muito independente. Não queria contrariá-lo; para
quê? a vida é curta, cedo viriam as amofinações. O juízo havia de vir com a idade...
Em baixo, no jardim, entre os grupos rescendentes de heliotropo e de jasmins do Cabo, as
crianças e Ruth faziam roda à Noca, mulata antiga na família, que lhes contava histórias de
fadas e de príncipes encantados. Vendo Mário dirigir-se para o portão, a mulata chamou-o com
familiaridade de amiga velha:
- Seu Mário, escuta aqui!
- Que é, Noca?
- Onde é que vai?
- Se eu não morrer pelo caminho, hei de chegar ao teatro.
- Não morre; eu ainda esta noite sonhei que v. estava amortalhado e que d. Nina chorava
sangue... Sonhar com morte é sinal de saúde. Traga umas balas para mim.
- Vá esperando.
O capitão Rino despediu-se e desceu também para a rua, ouvindo a voz da Noca recomeçar
numa melopéia:
"Minha varinha de condão, pelo poder que Deus vos deu, fazei..."
Nina, encostada à grade, via Mário afastar-se; e lá em cima, no terraço, ao lado do marido
adormecido, Camila curvou-se para o dr. Gervásio e beijou-o na boca.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A falência
RomanceREPUBLICAÇÃO AUTORA: JULIA LOPES DE ALMEIDA O ano é 1890, a cidade do Rio de Janeiro passava por grandes mudanças e sentia o intenso fervor da economia cafeeira. Francisco Teodoro era um português humilde q ao chegar no Brasil construiu o seu impér...