Só no fim de um mês foi que a família Teodoro tratou de mudar-se.
Nina despediu os criados, montou a casa nova com mobílias baratas, leitos de ferro, louças
brancas, sem douraduras. Pensava em tudo, traçava planos, sacudia o torpor e a apatia dos que
a rodeavam, indagava preços e discutia o valor dos objetos que adquiria.
- Você dá à própria dor uma forma de felicidade, disse-lhe um dia o médico; é a mulher mais
compenetrada dos seus deveres de mulher que eu tenho conhecido.
- De que serve?!...
- Para fazer os outros felizes. A sua influência e a sua atividade têm realizado prodígios. E eu
que já não acreditava em prodígios!
- Bem vê que fazia mal...
- Bem vejo. Nina sorriu; e depois continuou:
- Falando sério: tenho medo da responsabilidade que vou assumindo, sem saber como.
Tia Mila não está em idade de aceitar hábitos novos sem grande sacrifício; Ruth só há de querer
saber do seu violino; para tudo mais foi sempre...
- Preguiçosa.
- Sim... As outras são tão pequenas! Eu estarei a seu lado.
Nina corou, e não respondeu.
Dias depois Noca foi ao quarto da ama avisá-la de que iriam almoçar já na outra casa.
Mila apertou as pálpebras.
- A senhora torna a adormecer! Eu vou abrir a janela... abro?
Camila não respondeu; sentiu o corpo pesar-lhe na cama e espalmou as mãos no seu largo
colchão de clina. Como era bom!
O ócio tinha-lhe infiltrado no sangue a voluptuosidade, que embelezava a sua carne de pêssego
maduro, colhido ao sol de outono. O seu corpo redondo e róseo tinha o aroma expansivo da flor
aberta, e a maciez da fruta polpuda e delicada que não pode sofrer nem grandes baques, nem
grandes ventanias.
Noca insistiu:
- Abro a janela?
Camila calou-se ainda, procurando gozar mais um minuto o conforto do seu quarto cheiroso.
Tinha criado fundas raízes no luxo, não se podia desprender por si, seria preciso que a
arrancassem.
A culpa não fora sua... a última vez, essa, que se estendia sob um docel assim de rendas e de
cetins? Só agora compreendia o valor das mínimas coisas na harmonia do conjunto.
Ali tudo era bom. A idéia da necessidade, do tacão acalcanhado, do chapéu feito em casa, do
vestido forrado de algodão, irritavam-na até à doença. A pobreza tem morrinha; é suja.
Quis lembrar-se do seu quarto de solteira, buscando na humilhação do passado a resignação do
futuro; dormira na mesma alcova que a irmã Sofia. Mal pôde reconstruir na memória o mobiliário
barato desse aposento, em que havia roupas pelas paredes...
Noca andava pelo quarto; Camila olhou:
Era em frente àqueles grandes espelhos que o marido a encontrava quando voltava do trabalho,
satisfeito dos seus negócios, pisando e falando alto, com as mãos carregadas de embrulhos de
guloseimas e de jornais da tarde.
E não era para ele que ela picava nos seus vestidos claros uma flor, ou uma jóia discreta. Era
para o Gervásio que adoçava a sua beleza e se agarrava tanto à mocidade. A mocidade!
Vendo-a abstrata, com os olhos úmidos, cheios de tristeza, Noca avisou, já impaciente:
- Olhe, nhá Mila, a gente não deve ir tarde; o carro daqui a pouco está aí.
- Ajuda-me a vestir...
- E as meninas, lá embaixo? Lia e Rachel agora é que vão tomar banho...
- Você tem razão... eu estou mal acostumada... Vá, eu me arranjarei sozinha. Também, para
este vestuário... Que saudade, Noca!
- Que se há de fazer?! Agora é ter coragem!
Duas horas depois Nina passava a última revista à casa, abria as gavetas verificando se todos
os móveis estavam vazios e limpos, e percorria tudo, do salão à cozinha, da cozinha ao fundo
do quintal; Noca ajudava-a na inquirição, remexendo as prateleiras e fechando as janelas e as
portas.
- No escritório, por mais que tivessem lavado, lá ficava indelével, em uma sombra, no assoalho,
a mancha do sangue de Francisco Teodoro. Nina ia passar por cima dela, quando Noca deu um
grito. A moça recuou, olhando aterrorizada para o chão:
- Pisei?!
- Quase...
- Meu Deus!
Contemplaram-se as duas entre lágrimas.
- Foi uma grande desgraça, Noca!
- Se foi! Ainda me parece mentira...
- A mim também. As vezes julgo mesmo que ele vem da cidade e que vou vê-lo abrir o portão...
Pobre tio Francisco!
Pela primeira vez, pareceu-lhes que aquela mobília impassível lhes estendia os braços numa súplica.
Na secretária, ao lado do código de Orlando, o tinteiro de prata já vazio e em que a caneta sem
pena pesava num abandono de corpo morto, havia cintilações frias.
Nas paredes, chispavam as molduras dos quadros, e desenhava-se a figura atrevida do
cavalheiro de bronze, de chapéu emplumado na mão, em um aceno arrogante de adeus.
Disseram-lhe o último, e fecharam a porta.
Na limpeza da casa, Nina encontra em um caixote, no porão, entre um sem número de objetos
mutilados e antiquíssimos, o chicotinho com que Mário a zurzia nos dias de cólera, quando,
pequena e magra, ela fazia reboar pelos corredores a sua tosse de cão, que ele abafava
gritando-lhe:
- Cala a boca! cala a boca!
Calar a boca tinha sido todo o seu trabalho na vida. Com um triste sorriso desbotado, Nina
separou de todos os objetos destinados para a fogueira, aquele chicotinho revelador e profético,
e guardou-o como relíquia.
Para que nascera ela, senão para ser batida?
Depois de toda a casa fechada, foram para o jardim. Camila e as duas gêmeas esperavam-nas
sentadas no banco, em baixo da mangueira. Atrás delas, muito magrinha e pálida, Ruth mal
sustentava a caixa do seu violino, pasmando para as árvores amadas um olhar dolorido e longo.
Um minuto depois acomodavam-se no carro. Noca fechava o portão do jardim, entregava as
chaves ao criado do dr. Gervásio, que esperava ali, na rua, para ir levá-las ao patrão. Subiu por
último para a caleça. Ao primeiro arranco do carro, de todos os peitos saiu um suspiro e todos
os olhares se voltaram para a casa.
Ruth chorou; parecia-lhe que deixava ali o pai, o seu querido papai... Só Lia e Rachel gorgearam
uma risadinha. - Enfim, iam para a casa nova!
Durante a viagem ninguém mais falou.
Para quê? Diriam todos a mesma coisa. Abafavam gemidos, disfarçavam lágrimas, e iam assim,
de negro, começar nova vida.
Eram dez horas quando o carro parou em frente à casa de Nina.
Na vizinhança, tocavam exercícios num piano desafinado. O sol irradiava com força no cascalho
branco do chão.
A casa era pequena, em um trecho sossegado da rua de d. Luiza, disfarçada por um jardinzinho
mal cultivado. Dentro sentiram-se todos opressos; habituados à largueza de um palácio,
parecia-lhes que aqueles tetos e que aquelas paredes se apertariam de repente esmagando-os
a todos.
O melhor quarto fora arranjado para Mila e as gêmeas; Ruth e Nina dormiriam na mesma
alcova, Noca num quarto ao fundo.
A sala de jantar, forrada de novo com ventarolas e japoneses no papel, abria para uma nesga
de quintal por um patamarzinho de ladrilho que a desafogava. Tinham-na alegrado com um par
de cortinas de cretone claro e uns vasos de flores na janela.
Nina explicava à tia como determinara as coisas, sujeitando-se a mudá-las, se lhe não
agradasse a posição delas.
Supusera melhor suprimir a sala de visitas e fazer dela, que era ampla e clara, a sala de
trabalho. Em vez do sofá, do dunkerke inútil, de uma ou outra cadeira preguiçosa, estavam ali a
máquina de costura, cadeiras fortes, uma estante para músicas, um armário, uma mesa e uma
tábua de engomar.
- Aquela tábua faz mau efeito aqui... murmurou Mila numa censura leve, sentando-se, muito
abatida.
A sobrinha explicou:
- A saleta lá dentro é muito pequenina, ficou vazia, para as crianças brincarem nos dias de
chuva. Se a senhora quer, põe-se lá a tábua.
- Depois...
Quando acabaram de percorrer tudo, Lia e Rachel pediram para ver o resto.
Onde estava a sala do piano? e o escritório? Onde guardariam as suas bicicletas? A cozinha
então era aquele cochicholo?
A mãe anediava-lhes os cabelos, sem responder, com os olhos parados.
Tinham arranjado para cozinheira uma preta velha, de trinta mil réis mensais. Mila achou-a
repugnante e disse a Nina que lhe pusesse ao menos um avental. E à hora do almoço não
comeu; olhava para as gêmeas que iam devorando os bifes e o arroz da cozinheira nova.
Nina ofereceu Collares à tia, que bebeu pouco, sem nem ao menos indagar a proveniência
daquele vinho, também, soube-lhe mal, bebido por um copo de vidro, e lembrou-se com pena das suas garrafas de cristal lapidado que atiravam sobre a toalha bouquets iriados e
tremeluzentes. Eram como violetas e botões de ouro que nascessem da luz e se espalhassem
sobre o adamascado do linho.
O vinho viera da adega do dr. Gervásio; ninguém mais o bebeu. Lia pediu repetição do bife,
Rachel exigiu batatas, e Nina, diminuindo a sua ração, encheu os pratos das primas.
O sol entrava pela janela numa larga toalha de ouro, rebrilhando no verniz novo dos móveis e
nas roupas vermelhas dos japoneses retorcidos do papel.
A preta velha trouxe o café numa bandeijinha, mal arrumada, que pousou brutalmente em um
canto da mesa.
Camila fechou os olhos para não ver; quando os abriu, a sobrinha estendia-lhe uma canequinha
delicada, do último aparelho do palacete.
Mexendo o café, vagarosamente, a tia perguntou-lhe:
- Só veio esta canequinha?
- E uma xícara de chá; nós bebemos bem nas outras. Veio também um copo de cristal. Esqueci-
me de o pôr na mesa...Quer mais açúcar?
- Não quero diferenças para mim. Depois: - Realmente, custa muito a beber num vidro grosso!...
- Eu não acho...
- Ah, você!
Nina sorriu e foi abrir a porta ao criado do dr. Gervásio, que entrou trazendo a correspondência,
jornais e uma carta para Francisco Teodoro, que o carteiro levara ainda à rua dos Voluntários da
Pátria.
- Você esteve lá em casa outra vez?! perguntou Mila admirada.
- Sim, senhora. Fui lá com seu doutor, um homem gordo, seu Serra e mais o leiloeiro.
- Já! Andaram depressa!... Olhe, é bom avisar o carteiro.
- Seu doutor já avisou.
- Bem; pode ir...
A carta era de Sergipe. O pai de Camila queixava-se de doenças e de atrasos; estava muito
velho, pedia recursos ao genro. D. Emília andava ameaçada de congestão; o Joca internara-se
com a família para o interior, por míngua de empregos, a Sofia fora pedir-lhe agasalho por ter
brigado com o marido e as outras duas filhas iam indo.
Desde a primeira até a última palavra arrastava-se um suspiro lamentoso de pobreza e de
inércia.
Quando Camila acabou de ler a carta, deixou-a cair aberta sobre os joelhos e calou-se muito
pálida. Ruth soluçava com a cabeça deitada na mesa. Ouvira as súplicas, mas o que a alterava
não eram os cuidados do avô, era o destino daquele sobrescrito que ela tinha diante dos olhos,
com o nome do pai, que, na ilusão da vida viera de longe, impelido por várias mãos
desconhecidas e que, chegando ao final, não encontrava ninguém!
Releram a carta; vinha atrasada. Já por lá, deviam estar fartos de saber a verdade. Como teriam
recebido a notícia? Camila cerrou as pálpebras; viu a mãe, tal qual era na primeira visita de
Teodoro ao Castelo: faladora, animada, com aqueles grandes olhos trêfegos sempre reluzindo
de esperança... deveriam estar bem amortecidos agora aqueles olhos, bem cansados de
chorar... E, como nunca, Mila sentiu saudades do carinho e do consolo materno. Estava tudo
acabado! Que ventura, se pudesse voltar a ser pequenina, inocente e adormecer no colo da
mãe! Seria tão doce... tão doce...
Os rigores do luto trariam a todos reclusos se a estreiteza da casa e o bom senso de Nina não
reagissem contra as praxes. Depois não bastava a economia, era preciso trabalhar, fazer pela
vida.
Conheceram-se, pela primeira vez na família, as agruras do cálculo, o dever das restrições.
Mário escreveu lamentando ter de demorar-se em Paris; retido por uma doença de Paquita, cujo
nome repetia em todos os períodos. A verdade é que na família ninguém contava com ele, e que
todos dissimulavam ressentimentos, fugindo de agravar tristezas.
Noca, pronta em expedientes, arranjou depressa freguesia para engomados.
Aquilo aborrecia Camila, que não gostava de ver trouxas de roupa atravancando a casa. O ferro,
a fumaça, os peitilhos das camisas alvejando ao sol aumentavam-lhe o tédio e o mal estar. A
vida pesava-lhe.
Uma tarde a mulata entrou com uma novidade: tinha encontrado uma discípula de violino para
Ruth, a filha de um empregado público da vizinhança.
Camila opôs-se. Ver a sua pobre filha andar na rua angariando dinheiro alheio? nunca. Não
tinham ainda chegado a tal extremo...
- Mas, tia Mila, a não ser que Mário lhe dê uma mesada, com que devemos contar? perguntou
Nina, estupefata daquela afirmativa e acrescentou: o que nós trouxemos, mesmo com
economia, não dará para mais de dois meses...
Camila arregalou os olhos, como se só então tivesse a percepção da sua desgraça...
Aproveitando a perplexidade da mãe, Ruth convenceu-a de que as lições seriam um meio de a
distrair; já não agüentava aqueles dias sem fim.
Só à Nina não sobravam horas para trabalhos de interesse; precisava dividir-se em todos os
misteres domésticos; as cozinheiras não paravam, umas porque bebiam, outras porque
achavam o ordenado mesquinho...Era um vai-vem cansativo, e ela sujeitava-se a tudo, pondo o
encanto da sua paciência nos trabalhos mais rudes e pesados. Cumpria a sua missão de
mulher, adoçando sofrimentos, serenando tempestades e conservando-se na meia sombra de
um papel secundário.
Corriam assim os meses. Os amigos escasseavam, mais pelo retraimento da família que pela
sua mudança de fortuna. Os infelizes julgam os homens piores do que eles são, e nunca vêm
em si a causa justificada de certos abandonos. Camila queixava-se às vezes das relações
antigas, sem cogitar que quem mais fugia era ela, envergonhada da sua nova situação.
Levado talvez mais pelo hábito que por outra cousa, dr. Gervásio continuava na assiduidade
antiga; as suas visitas eram mais curtas, feitas de passagem; evitava, com escrupulosa
discrição, os almoços naquele lar pobre e simples. Demais a mais, não podia falar nunca a sós
com Mila, naquela casa estreita; encontrava-a rodeada sempre da família, fechada no seu
rigoroso vestido de viúva, muito arredia. Aquelas esquivanças não o atormentavam, ele sentia
que a ia amando com menos amor e mais amizade; era como uma irmã, necessitada do seu
amparo e do seu conselho, que ele não podia deixar de ver todos os dias; o calor da sua mão e
o som da sua voz já não lhe alvoroçavam os sentidos adormecidos; e bem percebia que no
coração dela a paixão estava também apaziguada, e que para Camila ele ia já sendo apenas o
amigo.
E assim se passaram poucos meses, até que chegou um dia em que o olhar de Camila,
irradiando, se trocou com o dele num fulgor de desejo. O fogo abafado pelas cinzas da tristeza
irrompia subitamente, como uma labareda de fragoa. Ele espantou-se, ela conteve-se
envergonhada, e separaram-se ambos inquietos e torturados.
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A falência
RomanceREPUBLICAÇÃO AUTORA: JULIA LOPES DE ALMEIDA O ano é 1890, a cidade do Rio de Janeiro passava por grandes mudanças e sentia o intenso fervor da economia cafeeira. Francisco Teodoro era um português humilde q ao chegar no Brasil construiu o seu impér...