Numa manhã límpida, cor de safira, Camila e Ruth entraram com Teodoro e o dr. Gervásio na
lancha - Aurora - em demanda do Netuno.
O sol cobria com uma rede de ouro movediça a superfície das águas; fazia calor.
As senhoras ajeitaram os folhos das suas saias de linho no banco da ré, e abriram as
sombrinhas claras.
- Sempre gostaria que me provassem a serventia desses chapéus de sol. Não resguardam
nada. São objetos inúteis. Eu se fosse mulher nunca me sujeitaria a modas, disse Teodoro.
- Faria mal. Quanto aos chapéus, acho-os bonitos; são muito decorativos. Veja como a cor de
rosa da sombrinha de Ruth, e a creme de D. Mila se harmonizam neste fundo azul. Digam o que
quiserem; para mim a intuição da arte está na mulher, retrucou Gervásio.
- Pode ser. Eu só gosto do que é positivo e prático. Enfim, nas senhoras ainda eu perdôo certas
niquices...
Sabia Teodoro que o espírito e a posição de um homem se espelham nas suas roupas; por isso
as dele eram sempre graves.
Para tudo que não fosse o trabalho, envergava a sobrecasaca, bem abotoada sobre o estômago
arredondado.
A sua cartola luzidia, bem tratada, afirmava às turbas que ia ali alguém de cortesia e respeito;
era como se o seu título de comendador tremeluzisse no cetim daquele pelo. Não saía de casa
sem carregar o guarda-sol de excelente seda portuguesa e castão de ouro, traste que o
protegeria em um amplo círculo, se acaso chuvas caíssem inesperadamente. Previa tudo; com
habilidade, harmonizara à maneira do traje a dos seus discursos, sempre entrecortados de: tais
como, de maneiras que, porém, tal e coisas...
Já a lancha singrava as ondas mansas, quando ele contou ao dr. Gervásio que aí uns colegas
seus amigos queriam arranjar-lhe um título de Portugal; ele fizera constar que não aceitaria a
distinção, mas, se a coisa viesse, que havia de fazer?
O médico respondeu com um gesto vago, em que perpassou a sombra de um sorriso.
- Outros usarão desses títulos com menos direito, continuou o negociante, não digo que não; em
todo o caso...
Mila lembrou que, para justificar essa honraria, bastariam as grandes somas com que ele
entrava nas subscrições.
Ele riu-se.
- Estou vendo que você quer ser viscondessa, hem?
Ela encolheu os ombros. Em verdade, nunca pensara nisso. Gostava de viver bem, à larga, com
muito dinheiro. Esse tinha-o, bastava-lhe.
Iam todos calados, quando Ruth suspirou:
- Tenho pena de não ter trazido o violino!
- Que tolice! havia de ter graça!
- Mamãe, quando eu me comovo, gosto de tocar. Entendo-me tão bem com a música!
Os pais riram-se da asneira e o dr. Gervásio fixou o rosto pálido da mocinha. Esse não riu.
A lancha Aurora, muito faceira, reluzente nos seus metais, cortava as águas com rapidez,
soltando silvos que assustavam as senhoras.
- Este passeio está-me abrindo o apetite para uma viagem... Se as coisas continuarem como até
aqui, é fato assentado que levarei a minha gente ainda este ano à Europa, disse Francisco
Teodoro.
Camila e o médico trocaram um olhar de susto.
Vendo o lindo rosto, sempre tão fresco e tão moço, de Mila, os seus cabelos negros, o seu colo
cheio, os seus olhos de veludo, provocantes e apaixonados, toda aquela figura de mulher
amorosa, quente e grave, que ele não se cansava de estreitar nos braços, a idéia de uma
separação afigurou-se-lhe impossível e monstruosa.
Parecia-lhe que a amava ainda mais nesse dia do que em todos os passados; a doçura da sua
convivência enternecia-o, como se a entrevisse já através da saudade.
Ela assegurou-lhe em um sorriso que não partiria. Não haveria forças capazes de a arrancarem
do seu amor.
Francisco Teodoro mostrava agora à filha o casco branco de um navio de guerra, onde roupas
lavadas de marinheiros enfestoavam de azul o castelo de proa. No cimo de um mastro, um
homem que desatava cordames, tinha, na altura, proporções de boneco.
Gaivotas tontas voavam em bandos circulares, ponho grinaldas de asas fugitivas no azul
imaculado. Longe, a casaria da cidade, com as suas torres, esfumava-se em uma neblina rósea,
esbatida em diáfana violeta.
- Como é bonito! exclamou Ruth fulgurante, bebendo o ar que vinha em cheio da barra. Está-me
parecendo que, se eu fosse rapaz, seria marinheiro.
- Outra tolice.
- Mamãe, o azul é uma cor tão bonita!
- Se fosses rapaz... se fosses rapaz... realmente antes fosses, tu o rapaz e Mário a rapariga...
resmungou Teodoro.
- Pobre do Mário... já tardava... disse Mila.
- Isto não é falar mal; é a, verdade.
- Não é falar mal dizer que ele não tem aptidões, que é insignificante?
- Eu não disse tal.
- Mas deu a entender. Eu nem sei até como ele é tão bom, ouvindo tantas insinuações. Se fosse
outro, sabe Deus o que teria acontecido! É porque tem mesmo muito bom coração. Os erros
que comete são naturais da idade...
- Senhora! não o defenda. Bem sabe porque é que eu digo as coisas. Não falo à-toa.
Não, ela não sabia; o que via era uma grande injustiça, pesando continuamente sobre a cabeça
do filho. Que mais queriam que o pobre fizesse? Ele não nascera para os trabalhos brutos, do
comércio, era um delicado. Certamente que não tinha idade para se divertir a jogar a bisca em
família; os seus dezenove anos tinham outras exigências. Reparassem todos que era
naturalíssimo...
- Qual naturalíssimo, qual nada! Indecente, sim,, é que aquilo era. Um bilontrinha, o tal seu
Mário. Ainda na véspera soubera de novas proezas. Ele deixara a francesa, sim, senhores;
parecia ceder ao conselho da mãe; mas para que? Para andar em público de braço dado com
outras, talvez piores, e entrar em casas de jogo, que a polícia ataca!
Camila mostrou Ruth ao marido, com um olhar aflito, para que moderasse os furores da sua
linguagem.
Contente por cortar o diálogo, o médico apontou um vapor, que já se via de perto.
- O Netuno... é bonitinho, reparem.
- Não é feio, não... resmungou Teodoro, já desviado dos seus pensamentos; mas... esperem! lá
no convés parece estar uma mulher. Que diacho! o capitão Rino será casado?
- Se é possível! se ele fosse casado nós estaríamos fartos de o saber. Você diz cada tolice...
- Ora tolices! que mal fazia que o homem fosse casado, hein?
- A mim? nenhum certamente. Que me importa!... e Mila riu-se, querendo subjugar à força a
raiva que lhe ficara da discussão com o marido.
O médico tornou-se sombrio. Que mal faria que o outro fosse casado! Nenhum!... certamente. E
se dissessem dele a mesma coisa a Mila, que responderia ela! a mesma coisa? com o mesmo
levantar de ombros, com o mesmo desdém? Teve ímpetos de lho perguntar; mas como? Ali era
impossível... Ficava para depois.
A lancha atracou ao Netuno, e do portaló desceu o capitão Rino, vestido de flanela branca, com
uma bela rosa vermelha na lapela.
Estranharam-lhe o porte, acharam-no muito mais elegante; parecia outro. Tinha descido para
ajudar as senhoras. Ruth saiu da lancha num salto, mostrando as pernas finas, contente por
aquela novidade, aquele mar circundado, de montanhas azuis, aquelas velas brancas e aqueles
cascos alcatroados, flutuantes, com que se cruzara no caminho. O capitão Rino mal olhou para
ela; suspendeu-a, com pulso forte, até o primeiro degrau da escada e voltou-se logo para
Camila, com olhar ansioso, estendendo-lhe os braços. Ela caiu-lhe em cheio sobre o peito largo
e riu-se, pedindo desculpas. Era tão pesada! Ele corou, tonto, trêmulo, sem achar uma palavra
com que lhe respondesse.
Francisco Teodoro, cuidadoso da cartola e das abas da sua ampla sobrecasaca, não prescindiu
da mão auxiliadora do capitão; o dr. Gervásio veio por fim, tirando num cumprimento o seu
chapéu mole.
Em cima, no tombadilho, marinheiros passavam vagarosos, indiferentes pelos visitantes. Junto
ao portaló, estava uma senhora, a mesma, evidentemente, que eles tinham avistado da lancha.
Era uma mulher delgada, branca e loira, com um par de olhos semelhantes aos do capitão Rino,
de um azul de faiança, e uma fisionomia vaga, de anjo decorativo. Contrastando com o tipo,
trazia uma toilette escarlate, que lhe dava valor à pele cor de lírio pálido, e parecia uma ofensa
ao seu corpo virginal. O capitão apresentou-a logo a todos com duas palavras:
- Minha irmã.
Foi depois, aos poucos, durante a visita do Netuno, que viram desde o tombadilho até ao porão,
que souberam que essa irmã, até ali ignorada, se chamava Catarina, e vivia em companhia da
madrasta, senhora viúva, em uma frondosa chácara do Cosme Velho.
Catarina ajudava o irmão a mostrar o Netuno, e por vezes as suas explicações tinham maior
clareza que as dele. Se ele parava, ela tomava-lhe a palavra cortada. completava-a e seguia
para diante com todo o desembaraço.
Depois de percorrerem o navio, o capitão Rino convidou todos para um vermouth gelado, na rua
Câmara.
O espaço não era grande. Camila, Ruth e Catarina apertaram-se no mesmo divã, de marroquim
cor de azeitona, encaixilhado em cedro, Francisco Teodoro recostou-se em uma poltrona ao pé
da mesa, enquanto o médico se arranjava ao lado de uma estante esguia, abarrotada de livros,
e o capitão, em pé, narrava ao negociante vários episódios das suas viagens ao norte.
Que país! que maravilhoso pais este nosso! completava ele.
- É pena não ter povo. sentenciou Teodoro.
- Não é pena. Todas essas terras, ainda hoje virgens, serão num dia melhor a glória do mundo,
quando ele, esgotado pela exploração das outras, voltar para elas olhos de amor. Guardam a
sua fecundidade para uma outra raça de grandes ideais, que ainda há de vir. Tão formosas
promessas não se fazem ao vento...
- Outra raça... outra raça... vinda de onde?! nascida de quem?!
- Da nossa, talvez; e das outras. As gerações que definham nos países velhos aperfeiçoam-se e
revigoram-se os novos. O futuro do mundo é nosso, e será a coroação das nossas bondades e
virtudes, visto que o povo brasileiro é bom.
Francisco Teodoro não concordava em absoluto; não podia perdoar a República. Aquela
revolução fora uma revelação. Sentia-se engasgado com o exílio do imperador. Torceu assim a
conversa para novo assunto.
Dr. Gervásio conhecia as idéias políticas de Francisco Teodoro; ouvia-lhe sempre os mesmos
comentários. Estava inteirado; quanto às do outro, não lhe parecia que devesse lucrar muito em
ouvi-las. Voltou-lhe as costas e pôs-se a ler as lombadas dos livros da estante:
- Virgílio... Homem... Dante... Camões... Gonçalves Dias... Shakespeare... bravo!
Que espécie de homem seria então esse capitão Rino? Leria ele efetivamente aqueles poetas?!
O médico abriu ao acaso o primeiro livro ao alcance da mão, e observou logo que ele estava
anotado, a lápis, com sinais firmes, de uma vontade bem dirigida, perfeitamente consciente do
seu claro juízo. Era o Cid. A primeira página onde o olhar do dr. Gervásio caiu, havia este verso
marcado com uma linha gorda:
Lamour nest quun plaisir, lhonneur est un devoir.
Falava D. Diogo. O médico releu o verso com um sorriso de sarcasmo.
L amour nest quun plaisir...
Pois sim! bem esquecido estaria o velho pai de D. Rodrigo, ou não chegara na sua juventude a
amar com amor!
Depois daquilo o dr. Gervásio folheou outros livros literários, por curiosidade, desprezando os
técnicos, e em todos achou vestígios de uma leitura inteligente. Bastava; começava a
compreender o homem. Iludira-se até então, julgando o Rino como um medíocre e um simples.
Um simples seria, mas um medíocre, não. Não o temera nunca como rival, apesar de o ver
apaixonado por Mila; julgara-o fraco, inferior, sem recursos, falto de elegância, que é sempre o
que seduz as mulheres, física e intelectualmente; não passara nunca aos seus olhos de um
marinheiro rude, ingênuo, sem a graça da palavra a tempo, nem a linha da distinção pessoal.
Que conservaria o capitão Rino no cérebro de tanta leitura inquietadora e extraordinária? Que
nervos eram aqueles, tão perfeitos, que após tantas torturas e delícias pareciam intactos de
comoções artísticas?
Daí - quem sabe? - toda aquela livralhada que ele marcara com o seu nome, no domínio da
posse, viria de algum leilão, de alguma herança, não representando naquele gabinete mais que
um mero adorno. Era o mais certo. Era mesmo a única hipótese verossímil; não admitia que o
capitão Rino fosse amigo de intelectualidades. Aquele bruto! Fixou-o com atenção.
Não! não eram aqueles olhos límpidos, nem aquelas passadas que faziam tremer os rijos
assoalhos, que revelariam a ninguém investigações da velha arte, turbadora como a febre ou
como um vinho raro. Ninguém acreditaria que aquele homem grande, de carnes duras, faces
rosadas como as de um menino são e modos bonachões, fosse capaz de entender
Shakespeare!
Ler livros tais, anotá-los, amá-los, deleitar-se na sua convivência, era obra para outra espécie de
criaturas. Aquilo era um escárnio, não era outra coisa. Permitia-lhe a leitura de um ou outro
clássico português de mais calmo estudo e pulsação regular; lembrava-se mesmo agora de lhe
ter surpreendido algumas palavras de sabor antigo e que lhe tinham feito, aos ouvidos
delicados, um certo prurido de estranheza. A sensação avivava-se, a reminiscência induzia-o a
estudar o homem. Voltou de novo o olhar para ele e resumiu ainda em um traço o seu juízo:
- Um belo animal!
A irmã do capitão servia vermouth, mostrando em um sorriso amável os seus dentinhos bicudos
e desiguais. Ao dirigir-se ao médico, ela obrigou-o a desviar-se da sua observação; e ele,
descuidado, refletindo na frase uma idéia que lhe atravessava o espírito, agradeceu-lhe em
inglês.
- Acha-me com ar de miss, não é assim? Talvez tenha razão; não é a primeira pessoa que me
dá a entender isso mesmo...
- Se lhe desagrada...
- Absolutamente nada; por que? Houve na nossa família qualquer antepassado estrangeiro, uma
bisavó dinamarquesa, creio eu... entretanto, afirmo-lhe, somos bem brasileiros, mesmo um
pouco nativistas... Já me disseram, a propósito disto, que são os descendentes de estrangeiros
exatamente os patriotas mais exaltados. Mas não quer gelo?
- Obrigado...
Ela passou adiante, e o doutor tomou o seu primeiro gole de vermouth.
"Uma avó dinamarquesa, creio eu..." Extraordinário, esse desprendimento pela sua origem! Bem
lhe certificava esse dito, que aquela gente não era de indagações nem de perder tempo com
objetos sem utilidade imediata.
A boa prática era essa: olhar para diante, que é onde se pode encontrar tropeços. Caminho
andado, caminho perdido. Adeusinho!
Da cadeira de braços, Francisco Teodoro atirava, a sua última bomba contra a República,
lamentando este grande piais tão digno de melhor sorte...
Fino levantou-se; ele tinha outras opiniões e uma fé sincera nos destinos da pátria. A alma nova
da América só podia agasalhar sentimentos de liberdade. A monarquia era a poeira da tradição
acumulada com o correr dos séculos, em velhas terras da Europa. Lã teria a sua razão de ser,
talvez; mas não aqui! Concluiu ele.
Farfalharam as saias das senhoras, que se punham de pé, já cansadas da discussão,
abominando a política...
Fora, no tombadilho, o sol estendia a sua luz clara. feita de ouro. Seguiram então para debaixo
do toldo.
Que maravilha!
Ruth lançou-se á amurada, agitando o lenço. Passava uma barca de Niterói, repleta de
passageiros, branca, ligeira, com a sua cauda de espumarada. Toda a superfície do mar,
paletada de luzes. tremia como a pele moça a um afago volutuoso. Ao longe, a Serra dos
Órgãos desenhava no céu os seus contornos de um azul de ardósia. Para os lados da barra
havia montes de prata fosca em que o sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida,
e rochedos cor de violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um verdor intensíssimo.
Houve uns instantes de pasmo e de concentração, e foi nesse silêncio que o médico percebeu
um olhar de Camila para o capitão do Netuno.
Aquele simples movimento bastou para atear no peito do médico o fogaréu da ciumada. Estava
feito; o outro venceria; soubera esperar e revelava-se a tempo. Era a primeira vez que sentia
zelos da amante, sempre tão sua, tão submissa às arbitrariedades do seu gênio desigual de
homem nervoso. Quem pode confiar na lealdade de uma mulher? ninguém, e a justiça era que
ela o enganasse e o traísse, como por ele traía e enganava o esposo...
Percebia bem que o capitão Rino era mais belo, mais moço, e essas duas qualidades só por si
bastavam, a seu ver, para fazer preferido um homem aos olhos de uma mulher de quarenta
anos...
- O senhor, hoje está nos seus dias de spleen, doutor? perguntou-lhe de repente Ruth, com o
seu modo sacudido e imprudente.
Ele deu-lhe o braço e explicou-lhe que não; queria estar calado para ver melhor. Depois perguntou-lhe, sem rodeios se não achava o capitão Rino muito diferente do que lhes parecera sempre em Botafogo.
- Eu já disse mesmo a ele, e descobri o motivo; é porque anda sempre de escuro, e hoje está de
branco!
- E com uma flor ao peito!
- É verdade.
- Ainda há outra razão; é que ele está contente. Ruth, a influência das cores é grande nas
criaturas, mas a das impressões ainda é maior. A alegria força a ser-se bonito. O capitão tem
hoje a alma vestida de branco e perfumada como a sua rosa vermelha da lapela... Uma bonita
flor!... Não creia que baste um alfaiate para dar a uma cara de pau a expressão que a dele hoje
tem; a grande influência do alfaiate pára no pescoço. A cabeça é...
- Do cabeleireiro?
- Da paixão. Não creio que as mais frívolas mulheres sejam tão frívolas que se contentem com o
cheiro de uma pomada. ou o bom corte de um fraque...
- Mas quem falou em mulheres!?
- Tem razão, ninguém! Veja como aquele barco de pesca vai bonito... Você gosta destas coisas;
faz bem. O amor da natureza e o amor da arte são os únicos salvadores e dignos das almas
puras. Os outros, pff!
A mancha escarlate do vestido de Catarina apareceu diante deles; a irmã do capitão convidou-
os para o almoço; repararam então que os outros já tinham entrado e logo o médico previu que
Mila tivesse ido pelo braço de Rino...
E fora; e lá estavam ambos em pé a um ângulo da mesa, em frente a Francisco Teodoro, que
gesticulava, no calor de uma discussão ainda política.
A mesa, sentaram-se, ao acaso, à exceção de Camila e do marido, a quem o capitão designou
lugares. O médico escolheu assento entre Catarina e Ruth.
Havia apetite; os primeiros pratos foram bem acolhidos. Catarina, julgando-se um pouco em sua
casa, ajudava o irmão; foi ela quem temperou a salada de camarões e quem polvilhou os
morangos de açúcar e de gelo; as suas mãos muito brancas mostravam-se bem atiladas no
hábito de servir.
O criado ia e vinha do bufet para a mesa, com a serenidade sobranceira de um ente necessário.
Na sala, longa e estreita, eles ocupavam uma das mesas compridas. a da esquerda, a mesma
ocupada sempre em viagem pelo capitão; a outra, vazia e sem toalha, mostrando o verniz negro do oleado, dava um aspecto tristonho ao compartimento. Falou-se, a propósito de viagens, de
quando naquela mesma sala não havia um só lugar vazio, e que ao rumor das vozes se juntava
o tilintar das louças e dos talheres... Só nos dias de tempestade, em que o vapor era sacudido
pelo furor das ondas, diminuía a afluência e apareciam, disseminados e tristonhos, só os
passageiros fortes, de bom estômago...
Francisco Teodoro relembrou os episódios banais da sua única viagem, de Portugal para aqui, e
olhavam quase todos para o capitão com certo interesse, como para um herói. Em casa, nas
confortáveis salas de Botafogo, tão ricas e tão burguesas, nunca a sua profissão lhes parecera
simpática; agora compreendiam-lhe os perigos e observavam-no com respeito. O mar é tão
pérfido! Qual era o ponto da viagem que mais lhe agradava? perguntou Mila.
A entrada no Amazonas, respondeu Rino; e descreveu, comovido, o aspecto formidável do rio, a
grossa corrente das suas águas profundas, o seu ruído sonoro, de ritmos novos, que nenhuma
língua exprime e nenhum som musical imita; e os cambiantes deslumbrantíssimos dos poentes,
derramando na água infinitas ramagens multicores, onde estrelejavam tons nunca dantes vistos,
que apareciam para se apagar, e apagavam-se para reaparecer em outros pontos, igualmente
luminosos e fugitivos.
- Que esplendor de poentes!
Depois as ilhas verdejantes, verdadeiros jardins, trechos de bosques emergindo da água
profunda e refletindo-se nela. Sinto ali, repetia ainda, um mundo novo, guardando virgindades e
mistérios para uma raça de gigantes, ainda não nascida... Ah, as terras ardentes do Norte são
um deslumbramento!
Havia outro ponto da viagem que lhe fazia inda maior comoção: era quando, já de volta, entrava
na baía do Rio de Janeiro. A ampla poesia desse espetáculo adoçava-lhe o humor estragado
pela monotonia do mar alto...
Dr. Gervásio punha afinal o dedo na alma do capitão. Era assim mesmo; os livros da estante
pertenciam-lhe: havia ali um homem. O embarcadiço mercenário tirava o seu traje de piloto e
aparecia cavalheiro e poeta. Por que se havia enganado tanto tempo? A explicação teve-a
pouco depois, quando Rino afirmava que apesar das suas queixas, ele só estava bem no
Netuno; tanto se afastara da sociedade que se sentia bisonho nela, e que acreditava deixar
sempre no seu navio um bocado da sua alma, quando ia para a terra.
- Só em terra, disse ele, compreendo o amor que tenho ao meu barco, aos meus livros, ao meu
cachimbo e à minha rede, a que a solidão e o hábito deram foros de amigos; entretanto no mar,
tenho saudades de terra, da família, das distrações, de tudo que conjuntamente a torna
deliciosa...
Francisco Teodoro, a propósito do Norte, falou na prosperidade do Pará, no comércio da
borracha e discutiu as suas rendas e os seus costumes. Ali, sim, havia gente refletida, de bons
exemplos. Aquilo é que é povo: patriotismo, critério, boas intenções. Falem-me disso.
Concordaram. Houve uma pausa, em que se levaram à boca os copos cheios.
Veio o peru à brasileira provocar elogios ao cozinheiro do Netuno. Magnífico!
Francisco Teodoro afirmou logo que aquele prato parecia feito, de saboroso que estava, por
uma mulher. A brasileira tem um jeitinho especial para temperar panelas, dizia ele; e verdade,
verdade, assim como ela não devia ser chamada para os cargos exercidos por homens, também
os homens não lhes deviam usurpar os seus. A cozinha devia ser trancada ao sexo feio.
Ele dizia isto como pilhéria, por alegria.
Catarina, fazendo estalar uma côdea de pão entre os dedos magros, perguntou sorrindo, com ar
de curiosidade maldosa:
- O senhor é contra a emancipação da mulher, está claro.
- Minha senhora, eu sou da opinião de que a mulher nasceu para mãe de família. Crie os seus
filhos, seja fiel ao seu marido, dirija bem a sua casa, e terá cumprido a sua missão. Este foi
sempre o meu juízo, e não me dei mal com ele, não quis casar com mulher sabichona. E nas
medíocres que se encontram as Esposas.
O dr. Gervásio e o capitão Rino trocaram um olhar, de relance.
- E que são as outras? Mulheres que um homem honrado não deve consentir perto das suas
filhas.
Camila fez um sinal afirmativo. Ela era a mesma opinião.
- Não são sérias, concluiu.
- Lá por isso, replicou Catarina, de quantas mulheres se fala na sociedade e que mal sabem ler?
- De poucas...
- De muitas. Sr. Teodoro, faz favor de me dar o vinho?
- Ora, as senhoras não conhecem o mundo! exclamou Teodoro, passando a garrafa ao médico,
que encheu o copo de Catarina e disse rindo:
- Elas não conhecerão o mundo e nós, meu amigo, não as conhecemos a elas! A mulher mais
doce e mais honesta, dizem que dissimula e engana com uma arte capaz de endoidecer o
próprio Mefistófeles...
- Homem, que idéia faz você da honestidade das mulheres!
- Faço idéia de que deve ser bem mais difícil de manter do que a nossa.
- Bom; eu quando disse honestidade das mulheres, não foi com o pensamento de que houvesse
duas honestidades.
- Pois se tivesse tido tal pensamento, tê-lo-ia com muito acerto. Há duas.
- Temos outra! Se está de maré, explique-nos a diferença.
- Não estou de maré, mas explicarei: é pequena. Materializemos as comparações, para as
tornarmos bem claras. Suponhamos, por exemplo, que a nossa honestidade é um casaco preto
e que a, das senhoras é um vestido branco. Tudo é roupa, têm ambos o mesmo destino, mas
que aspectos e que responsabilidades diferentes!
Assim, o nosso casaco, ora o vestimos de um lado, ora de outro, disfarçando as nodoazinhas. O
pano é grosso, com uma escovadela voa para longe toda a poeira da imundície; e ficamos
decentes. A honestidade das senhoras é um vestido de cetim branco, sem forro. Um pouco de
suor, se faz calor, macula-o; o simples roçar por uma parede, à procura da sombra amável,
macula-o; uma picadela de alfinete, que só teve a intenção de segurar uma violeta cheirosa,
toma naquela vasta candidez proporções desagradáveis... Realmente, deve ser bem difícil saber
defender um vestido de cetim branco que nunca se tire do corpo. Eu não sei como elas fazem,
e, francamente, não me parece que a vida mereça tamanho luxo.
- Você é o homem das divagações; tratava-se de uma questão positiva. Dizia eu que as
mulheres vulgares são mais sérias do que as outras... pelo menos parecem...
- Porque não lhes esquadrinhamos as nódoas de cetim... Passam despercebidas...
- Adeus!
- Agora é sério; vou repetir-lhe o que disse há pouco à sua filha, a quem aliás o senhor educa
para a arte. Foi mais ou menos isto:
Não cabem na alma humana muitas paixões, e as melhores são as que nos desviam dos
nossos semelhantes, sempre enganadores. Só os ideais de arte não pervertem, antes purificam
e ensinam o Bem. As mulheres devem cultivá-los com especial carinho. Acompanho, pois, as
opiniões de d. Catarina e bebo à sua saúde, minha senhora!
Enquanto ele bebia, Camila observou-o com pasmo; sabia que ele não tinha aquelas idéias.
Sempre lhe ouvira que a mulher devia conservar-se no seu lugar de submissão.
- Então, a senhora lamenta não ser eleitora? perguntou Francisco Teodoro à irmã do Rino, com
um sorrizinho de mofa.
- Eu? Deus me livre! Tomara que me deixem em paz no meu cantinho, com as minhas roseiras
e os meus animais. Nunca falo por mim, sr. Teodoro. Eu nasci para mulher.
- Então, pelas outras?
- Pelas outras que tenham atividade e coragem.
E a casa, minha senhora? e os filhos? A este argumento é que ninguém responde!
- É velho.
- Mas é bom, prova que a mulher nasce com o fim de criar filhos e amar com obediência e
fidelidade a um só homem, o marido. Que diz também a isto o nosso doutor?
- Que ela talvez tivesse nascido com essas intenções, como o senhor disse, mas que as torceu
depois de certa idade. Não seria sem causa que Francisco I disse:
Souvent femme varie.
Francisco Teodoro não entendeu, mas sorriu.
O médico dizia aquilo para Camila, que lhe evitara o olhar agudo, percebendo-lhe a perfídia.
- Isto é que se chama falar para não dizer nada... observou alguém.
Catarina serviu o café; quando passava a última canequinha, disse:
- As mulheres são mal compreendidas. Vejam aquela gravura. Está ali um homem desafiando o
perigo, avançando na treva com a espada em punho, e a mulher mal o alumia com a luz da vela,
cosendo-se amedrontada às suas costas!
- O que prova que a mulher é medrosa! exclamou Teodoro com modo triunfante.
- Mas, não é verdade; pelo menos no Brasil. Nós não nos escondemos atrás do homem que
procura defender-nos. Se ele avança para o inimigo, sentimos não ter asas, e é sempre com
ímpeto que nos lançamos na carreira querendo ajudá-lo a vencer ou evitar-lhe a derrota. Este é
que é o nosso caráter; que me desminta quem puder!
O dr. Gervásio observou Catarina com atenção.
Ela estava de pé, com as narinas arfantes, as faces abrasadas.
Sim; agora era o sangue caboclo que lhe saltava nas veias: era uma brasileira. A tal avó
dinamarquesa dava todo o lugar à outra avó indígena, descendente de alguma tribo selvagem.
Duas horas depois, os visitantes deixavam o Netuno; o capitão Rino e a irmã conduziram-os até
o cais, onde se separaram. Foi então um grande alívio para o dr. Gervásio, a quem a presença
do outro irritava terrivelmente.
Francisco Teodoro não se cansava de elogiar a ordem e o asseio em que encontrara tudo;
começava a venerar o capitão Rino: achava-o eloqüente, superior... lembrava detalhes
insignificantes, muito agradecido às cortesias do moço. Catarina desagradara-lhe, com os seus
modos independentes. Achara-a feia. Mulher quer-se com carne, - bons volumes, dizia ele,
olhando de esguelha para o vulto redondo da esposa.
À rua 1o de Março despediu-se do grupo. Aproveitava a ocasião para visitar um colega doente; e
encarregou o doutor de acompanhar a família.
Foram então os três, Ruth adiante, com o seu modo distraído, de queixo erguido e passos
firmes; Camila ao lado do médico, através as ruas quase desertas, de domingo. Ao princípio
nada se disseram. Camila advinhava tempestade próxima, sem lhe atinar com a causa.
Estranhara as frases do Gervásio à mesa; sentia ainda a dor dos remoques que ele lhe atirara
disfarçadamente. Faltava-lhe coragem para uma pergunta; mais por submissão do que por
indolência, ela esperava sempre que ele fosse o primeiro a falar e a agir, naquela torturante
passividade de escrava, a que o seu amor a lançara.
Ele falou. Disse ter surpreendido a doçura de um amor nascente; que não se espantava da
vitória do Rino. Achava que se devia despedir; que a via bem entregue...
Camila compreendeu tudo, de relance; as lágrimas subiram-lhe aos olhos, sem que ela,
pudesse responder à brutalidade da ofensa. O rosto tingiu-se-lhe de vermelho, numa onda de
vergonha que a sufocava; vendo-a calada, ele insistiu baixinho, teimosamente, irritantemente,
espaçando as palavras, extravasando todo o ciúme contido durante as horas de bordo.
Ela murmurou então, vexada, por entre dentes:
- Eu não gosto do Rino... eu não gosto...
E para que falar assim, na rua? É uma imprudência...
- Não tive tempo de escolher lugar. Isso é bom para os calmos. Depois, vendo-me ameaçado de
abandono, apresso-me em despedir-me. Isto tinha de ser já.
- Como os homens são orgulhosos e injustos!
- Serão. E as mulheres? volúveis!
- Quase sempre a mulher ainda ama e já é considerada pelo homem como uma importuna!...
Está ai nossa volubilidade...
Calaram-se; passava gente. Depois de uma longa pausa, foi ela quem disse primeiro:
- Que me importa a mim o Rino! estou pronta a desfeiteá-lo, se com isso...
O médico interrompeu-a baixo, mas com vivacidade.
- Agora sou eu que lhe lembro que estamos na rua...
Ruth, sempre adiantada no caminho e sempre distraída, não percebia nada; os dois seguiam-na
automaticamente. Foi ela que, de repente, vendo uma confeitaria ainda aberta, se lembrou de
levar doces à Nina e às crianças, e parou à porta, à espera do médico e da mãe. No momento
em que eles chegavam, saiu da confeitaria uma mulher ainda moça, toda de luto.
Ao vê-la, o médico recuou bruscamente e ela, mal o viu, corou até a raiz dos cabelos e vacilou
também. O choque foi rude, e rápido. Ele ficou firme na calçada, muito pálido, com contrações
nas faces, e ela passou séria, numa rigidez contrafeita e torturada.
Camila sentiu roçar pelo seu vestido claro o vestido de lã da outra; aspirou com força o seu
aroma violento de uma essência desconhecida; viu-lhe a alvura da pele aveludada entre a gola
de crepe e a parte da face onde terminava o veuzinho do chapéu; apanhou, naquele gesto de
surpresa de ambos, um mistério qualquer, uma traição, uma infidelidade, uma ignominiosa
mentira à sinceridade da sua paixão.
- Quem é?... quem é?! Perguntou ela com avidez frenética, puxando imprudentemente pela
manga do médico.
O dr. Gervásio, ainda no mesmo lugar, olhava para a mulher de luto que seguia numa pressa de
quem foge; à voz de Camila, voltou-se atarantado, sorriu com esforço evidente e depois, baixo,
muito baixo, mas com modo sacudido e nervoso, disse:
- Não faças caso: uma mulher que amei e que morreu.
Uma nuvem negra toldou a vista de Camila e o coração apressou a sua marcha num batimento
louco.
Ruth, com toda a pachorra, escolhia os doces que um caixeiro ia separando para um prato de
papelão.
O dr. Gervásio pediu a Camila que serenasse o seu espírito. Ele lhe contaria tudo mais tarde.
Descansasse, que aquilo era uma coisa passada, perfeitamente extinta.
Ela fingiu aceitar a promessa; no fundo duvidou dela; mas para que tentar uma recriminação, se
a sua língua fraca não lhe sabia traduzir os sentimentos fortes? Ficaria no seu papel de mulher:
esperaria calada...
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A falência
RomanceREPUBLICAÇÃO AUTORA: JULIA LOPES DE ALMEIDA O ano é 1890, a cidade do Rio de Janeiro passava por grandes mudanças e sentia o intenso fervor da economia cafeeira. Francisco Teodoro era um português humilde q ao chegar no Brasil construiu o seu impér...