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A hora em que Francisco Teodoro entrou em casa, já havia estrelas no céu. O dr. Gervásio e as
meninas esperavam-no no portão. Logo no jardim ele sentiu-se abraçado pelas filhas e a Nina
com demorada ternura. Desprendendo-se de todos, olhou a roda, procurando alguém.
- D. Camila adormeceu há pouco, acudiu o médico - Noca está ao pé dela.
Francisco Teodoro não respondeu; sentou-se em um banco, com ar de extenuado, com a
cabeça pendida para o peito; e, depois de uma longa pausa:
- Está desesperada, muito contra mim?
- Não; respondeu o médico, está resignada. São todos fortes, acredite.
- Coitadas...
- Não diga assim, papai! exclamou Ruth, não se aflija! Neste mundo então só há lugar para os
ricos?
- Bom, só...
- Qual! havemos de ser muitos felizes, descanse.
- Como recebeu ela a noticia? tornou o negociante, voltando-se para o médico.
- Naturalmente, teve um abalo... não esperava semelhante coisa, mas venceu-se com admirável
coragem. Em todo caso, dei-lhe um calmante para obrigá-la a dormir e repousar os nervos...
- Fez bem; obrigado.
- Tio Francisco, o senhor deve estar muito fraco; venha tomar sopa, ao menos...
- Por isso mesmo, tome um caldo e vá-se deitar.
Entraram. Na grande sala de jantar havia um certo ar de abandono. Nina esquecera-se de
enfeitar a mesa com as flores do costume. e a gaiola vazia do cacatuá punha a um canto uma
nota de tristeza e de morte. Francisco Teodoro aceitou a sopa, tomou-a em silêncio, e logo
depois, deixando todos a mesa, pediu licença para subir. O médico, receioso acompanhou-o
com a vista. Que se iria passar lá em cima? como receberia Camila o marido?
Parecera-lhe ter sentido passos; deveriam ser dela, que já estivesse acordada e andasse
nervosamente pela casa...
Lia e Rachel, tão turbulentas, encolhiam-se uma na outra, observando tudo pasmadamente.
Imperturbável, Nina servia a todos.
- Que idade têm mesmo estas meninas? perguntou o médico de repente, apontando para as
gêmeas.
- Seis anos, respondeu Ruth.
- É cedo para entrarem para o colégio, balbuciou ele, completando alto um pensamento
qualquer.
Tinham acabado de jantar, quando Francisco Teodoro desceu.
- D. Camila?
- Quando eu subi dormia ainda; mas soluçava de vez em quando. Depois acordou e fez-se de
forte para tranqüilizar-me. Talvez que ela não tivesse compreendido todo o alcance da
desgraça...
- Compreendeu, mas resignou-se.
- Obrigado por todos os seus cuidados, doutor; tenho ainda um favor a pedir-lhe: venha cá
amanhã, cedo, às sete horas da manha. Será possível?
- Virei.
- Obrigado.
O médico saiu, recomendando à Noca mil cuidados com Mila. Duas horas depois, a casa estava
em silêncio; as crianças dormiam, e Nina, não vendo Ruth nas salas, julgou-a recolhida e
desceu devagar ao escritório do tio, que achou escrevendo na sua larga secretária.
- Dá licença, tio Francisco?
O negociante encobriu depressa com o braço o papel em que escrevia, e respondeu:
- Pode entrar.
E Nina entrou, embaraçada, percebendo o movimento do tio.
- Que quer você?
- Quero pedir-lhe um favor...
- Eu ainda os poderei prestar?!
- Oh! tio Francisco!
- Diga lá.
- Tenho vergonha... eu...
- Diga, diga.
Nina sentiu impaciência na voz do tio, e resolveu-se:
- Quero pôr em nome de suas filhas a casa que o senhor me deu. Ela é pequena, mas
caberemos todos lá, se...
Nina corou; o tio contemplou-a em silêncio, depois, sentindo que as lágrimas lhe corriam em fio
pelo rosto, disse:
- Fez você muito bem em dizer-me isso; eu precisava chorar. Bem vejo que não há só ingratos
no mundo; você é um anjo. Aceito o seu agasalho; olhe por minhas filhas.
As gêmeas são muito pequenas, não têm educação... é o que mais me pesa! Ruth, essa tem
talento e um recurso. Tenha também paciência com sua tia, é quem vai sofrer mais...
- O senhor há de lhe dar o exemplo de resignação.
- Sim. Você que entende disso? Vá dormir.
- Mas...
- Vá dormir.
Nina murmurou, muito embaraçada:
- Boa noite.
- Adeus, minha filha. Que Deus a faça feliz.
Ela saiu sem compreender bem os gestos desencontrados nem o sentido das palavras do tio.
Ele queria estar só. A dor fazia-o desconfiado, temia que o amor da família não subsistisse à
catástrofe.
Em que fizera ele até então consistir a felicidade e o seu merecimentos aos olhos dela? No
dinheiro, só no dinheiro. Ele era bom porque sabia cavar a fortuna, encher a casa de jóias, de
fartura e de conforto. Ele era bom, porque, tendo partido de coisa nenhuma, chegara a tudo,
visto que o dinheiro é o dominador do mundo e ele tinha dinheiro.
Ainda não compreendia como tendo trabalhado tanto, juntado com tão tremendo esforço em tão
largo período de sacrifícios, deixara agora ir tudo por água abaixo em tão curtos dias. Desfazer
é fácil!
Revoltado contra si, Francisco Teodoro cravou as unhas na calva, chamando-se de leviano e
miserável. Como toda a gente se riria da sua falta de senso. A culpa era dele. Deixar-se levar
por cantigas com a sua idade e sua experiência! Sentia ferver-lhe o ódio por todos os amigos
que o tinham inebriado com palavras perigosas e fúteis. Então todos chamavam o Inocêncio
Braga de honrado, perspicaz e arguto. Agora, depois de tudo feito e perdido, é que o diziam um
especulador sem consciência. Mas agora era tarde; estava tudo perdido.
Recomeçar a vida? como? Já nem o próprio exemplo da coragem antiga lhe valia de nada.
A energia gastara-se-lhe. Nem o corpo nem o espírito resistiriam à luta tremenda de recomeçar.
Pela primeira vez Francisco Teodoro percebeu que há na vida uma coisa melhor do que o
dinheiro: a mocidade. Com o corpo vergado, o espírito amortecido, ele era o homem extinto, o
fantasma do outro, que ficava boiando no passado, desconhecido por todos, só amado pela sua
lembrança.
"Velho... estou velho! pensava ele, já não sirvo para nada. E agora? Para onde há de ir esta
gente, que eu mesmo habituei a grandezas? Para o sobradinho da rua da Candelária? Nem
isso. Camila naquele tempo contentava-se... agora já se afez a outra coisa. Camila! Camila sem
sedas? não, não se pode compreender Camila sem sedas. Onde tinha eu a cabeça? Miserável!
Eu sou um ladrão. roubei a meus filhos. Eu sou um ladrão!"
Como se quisesse fugir das próprias idéias, começou a andar pelo escritório, com ar desvairado.
Vingava-o a sensação de que tudo agonizava com ele.
A especulação, a fraude, a ganância, a traição e a mentira, iriam roendo e corrompendo fortunas
e carateres. Enganados e enganadores seriam todos engolidos conjuntamente pela outra
falência, de que a sua era uma das precursoras.
No fim, havia de aparecer a justiça punindo as ambições e as vaidades destes tempos e destes
homens doidos, quando, depois de tudo consumado, não houvesse nada a refazer mas tudo a
criar.
A pulsação do seu sangue alvoroçado dava-lhe a percepção fantástica de que o Brasil seria
arrastado vertiginosamente pela maldade de uns, a ignorância de outros e a ambição de todos,
em voragens abertas pela política amaldiçoada.
Já não culpava o patrício, o Inocêncio Braga, como causa direta da sua ruína. A
responsabilidade da sua perda caia em cheio sobre a República, que ele invectivava de
criminosa, na alucinação do desespero.
Toda a sua vida de trabalho rotineiro material, sem ideais, mas cansativa na sua brutalidade
mesmo, parecia-lhe agora como um rio caudaloso que tivesse vencido a nado e de que só
depois de transposto, percebesse o volume e os perigos.
Entretanto, talvez não tivesse sido difícil percorrer aquilo de outra maneira e melhor... Não fosse
ele um ignorante e não se teria deixado enfeitiçar por palavras!
Era pois também certo que a inteligência e a instrução valiam alguma coisa...
Resumindo os seus pensamentos de vencido, Francisco Teodoro disse alto, num suspiro:
- Trabalhei, trabalhei, trabalhei, e aqui estou como Job!
Mas o som da sua própria voz assustou-o. Espreitou a ver se o viam. Foi à porta; não havia
ninguém. Lembrou-se depois dos seus projetos de viagem: idas à Europa, regalados descansos.
Era de justiça, diziam todos, e a justiça fizera-a ele por suas mãos, o homem nasceu para o
trabalho, ele devia voltar para o trabalho.
E as forças? Onde estavam elas, que as não sentia? Ah! corpo miserável! corpo miserável.
Afogueado, como se tivesse brasas na cabeça, Teodoro procurou a frescura do ar livre e foi
encostar-se ao umbral da janela.
Fora numa noite assim, de lua clara, que o avô se enforcara numa amendoeira, fugindo, no seu
delírio de perseguição, a um inimigo que lhe ia no encalço. Era um camponês rude, o avô; havia
muito meses antes desse ato que ele andava taciturno, agitado; depois, que tranqüilidade!
Francisco Teodoro olhou para a noite:
O luar estava lindo, boiava no ar morno o aroma das esponjas e dos manacás, que a luz cobria
de uma brancura sedosa e doce.
O aroma das plantas avivou-lhe também a sensação dos seus triunfos de outrora.
Aquela essência divina nascia da fertilidade das suas terras. trabalhadas por homens pagos por
ele.
A criadagem! Como os seus criados, menos feliz do que eles, precisava também agora do
salário de um patrão, com que matasse a fome à mulher e aos filhos...
- Como Job! repetiu ele furioso, arrancando as barbas e unhando as faces. Não lhe bastava o
arrependimento, a dor moral, queria o castigo físico, a maceração da carne, para completa
punição da sua inépcia.
Não saber guardar a felicidade, depois de ter sabido adquiri-la é sinal de loucura. Ele era um
doido! Sim, ele era um doido. Tal qual o avô! Riu alto; ele era um doido!
Foi então que do fundo do jardim vieram os sons de um violino tocado em surdina.
Francisco Teodoro estremeceu, as pernas vergaram-se-lhe, olhou pasmado para o grande céu
tranqüilo, onde as estrelas palpitavam. Compreendeu; Ruth não quisera perturbar a tristeza da
família e fugira com a sua música para fora! Aquela era uma forte, amava o seu ideal mais do
que tudo, mais do que a vida! Que reservaria Deus àquela alma de êxtase e de sonho?
Os gemidos da música vagavam na noite clara como queixas de anjos invisíveis. Não pareciam
vibradas por mãos humanas aquelas notas suavíssimas e repassadas de doçura. Trêmulo,
vencido pela comoção, Francisco Teodoro ajoelhou-se e chorou copiosamente. O último
beneficio era-lhe ministrado pela filha, como um sacramento. Nem ele soube quanto tempo
durou aquela crise de pranto que o sufocava. Quando Ruth acabou a sua música e ele lhe
sentiu os passos leves e apressados na areia, teve ímpetos de chamá-la e cobri-la de beijos.
Mais forte, porém, do que o seu amor e a sua ternura, foi o medo de enfraquecer. Ele fugiu para
dentro; tinha tomado a sua resolução.
Cada homem é criado para um fim. O dele tinha sido o de ganhar dinheiro; ganhara-o, cumprira
o seu destino. Não podendo recomeçar, inutilizado para a ação, devia acabar de uma vez. Toda
a energia da sua vida se concentraria num movimento único e decisivo.
Ruth subia a escada. Ele foi colar o ouvido à porta para escutar-lhe os passos. Beijaria o lugar
em que ela punha os pés... Esteve assim longo tempo, depois voltou-se e foi sentar-se a um
canto, esperando...
Pouco a pouco a casa adormecia, até que se encheu toda do pesado silêncio do sono.
À uma hora Francisco Teodoro levantou-se muito pálido, persignou-se e rezou, ali mesmo, entre
o lampejar das molduras e o ar atrevido do cavalheiro de bronze. Finda a oração, caminhou
resolutamente para a sua secretária. A bulha dos seus passos firmes abafou um sussurro leve
de saias que deslizavam pela escada abaixo.
Francisco Teodoro tirou da gaveta o seu revólver, olhou-o um instante e encostava-o no ouvido
quando a mulher apareceu na porta, muda de terror, estendendo-lhe as mãos. Ele cerrou logo
os olhos à tentação da vida e apressou o tiro.
E toda a casa acordou aos gritos de Camila que, com os braços no ar, clamava por socorro.

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