Ⅳ. Prova de amor

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O CIGARRO NA MÃO DE HUGO SOLTAVA UM FIAPO DE FUMAÇA cada vez que ele o tragava. Ela espiralava no ar, branca e cinza, até se esvanecer na escuridão da noite. Ele sabia que estava arruinando seu pulmão e apenas complicando a sua própria situação caso algo lhe acontecesse ― não à toa tivera que prometer para a mãe que nunca mais fumaria quando tudo começou ―, mas era a única coisa que o ajudava a pensar melhor através do desespero e da ansiedade.

Na outra mão ele segurava três ingressos para a partida que aconteceria hoje. Tinha sido um presente para ele mesmo. Economizara do seu salário por 6 meses para conseguir ver a partida do dia do seu aniversário. Barcelona contra Napoli. Não eram seus times favoritos, mas continuava sendo um jogo ao vivo de La Liga, seu sonho desde criança.

Da sacada do seu apartamento dava pra ver o estádio. Luzes o iluminavam, mas não tantas quando deveria ser em uma noite de jogo. Porque o estádio estava vazio. Não haveria jogo hoje. Adiado, assim como os jogos seguintes. Adiado, assim como qualquer evento. Adiado, assim como a vida lá fora.

Adiado. Adiado. Adiado.

Hugo tragou novamente o cigarro em um suspiro e trocou a perna em que se apoiava. Não estava inconformado, ou enraivecido. Longe de revoltado. Ele estava apenas frustado.

Não mais do que Ysabel, sua irmã. Tivera que adiar a cerimônia de seu casamento totalmente paga e que aconteceria em apenas duas semanas, e nem ao mínimo podia fazer uma pequena comemoração em casa, com medo por Zaira, sua filha de dois anos, o qual aumentou com a notícia de que sua sogra era uma das internadas na UTI. Melhor um salão vazio do que um salão cheio de futuros mortos, ela lhe falara por telefone aquela semana. Ysabel conseguia ser um pouco... macabra às vezes, mas ele sabia que ela estava de coração partido. Hugo estava frustado por ela também.

Tragou novamente. A chama estava quase em seus dedos. Tragou uma última vez e apagou o restinho de cigarro no papa-bituca, com um sorriso nostálgico ao olhá-lo. Era uma peça artesanal, em formato de bicicleta, em que as duas rodas eram os dois pratos para cinzas. Anaís, que só perdia para a mãe de Hugo no quesito oposição ao seu tabagismo, o fizera com as próprias mãos. Ainda lembrava do diálogo que tiveram quando ela o entregara.

― Você não pode estar querendo que eu pare de fumar me dando um presente desses.

― Leia o que eu escrevi nele.

E lá estava, o quadro ― a parte metálica da bicicleta que liga o assento ao guidom ― da bicicleta de argila com os dizeres "Seu câncer está vindo de bike".

― É pra você se lembrar toda vez que for fumar, idiota.

Não era o melhor presente da sua vida, mas talvez fosse o que ele mais gostasse, e com certeza o que ele guardava com mais carinho.

Fazia uma semana desde que falara com ela pela última vez, por telefone. Conversaram sobre seu trabalho, sua saúde mental e física, sobre o filho que estava com a avó para que não corresse risco caso ela tivesse que voltar para casa, se ela precisava de ajuda com alguma coisa, o que ela negou como sempre. Desde então, ela não atendia suas ligações. Hugo preferia pensar que era porque estava sem tempo. Se ele fosse pensar em outra possibilidade, provavelmente teria que comprar mais outros dez maços.

Sentia saudade dela, e de Emeric também. Acabara se apegando ao filho dela durante a convivência deles. Fazer o quê se o moleque é carismático. Os outros dois ingressos eram para eles. Se a vida estivesse normal, se a vida estivesse boa, se a vida estivesse como deveria ser, os três estariam indo agora para o estádio. Emeric saltitando e gritando empolgado com seu cachecol do Barcelona, seu time favorito, Anaís rindo atrás dele e Hugo encantado com o brilho nos olhos cor-de-mel de Anaís.

Mas ela a vida ― não está normal, nem boa, e nem como deveria ser, ele pensou abrindo outra carteira de cigarro de seu bolso e acendendo mais um. Era o décimo somente naquela noite. E eu vou ter que acabar me conformando com isso.

Com "isso", ele queria falar do anel guardado numa caixinha em seu outro bolso. O maior símbolo da maior frustração de Hugo. O pedido nunca feito, o pedido para que Anaís deixasse de pensar que era somente um passatempo para ele e entrasse em sua vida, com Emeric e tudo, de uma vez por todas. Hugo adiara aquele momento inúmeras vezes, inúmeras vezes que estivera com ela e a caixinha no bolso ao mesmo tempo, mas a noite do jogo ia ser a definitiva.

Mas não haveria jogo, e ninguém sabia quando o próximo aconteceria. E agora, bem, com toda aquela situação, Hugo também não sabia quando o pedido aconteceria. 

Se inclinou sobre a sacada novamente, tragando um cigarro novamente. Além do estádio, dava para ver o hospital que Anaís trabalhava dali. Era seu edifício favorito naqueles tempos, já que de noite eles mantinham as luzes de cômodos específicos ligadas, de modo que formasse um coração para quem de sua varanda, como ele, olhasse. Era uma mensagem para todos aqueles presos e isolados em sua casa, deprimidos e ansiosos, como ele, com a solidão e as notícias sempre pessimistas. Lá fora, ainda há vida, ainda há esperança, ainda há amor, e nós estamos tentando nosso máximo para dar tudo isso a quem precisa. Nos ajude, e fique aí dentro.

E Hugo via essa mensagem, como se fosse Anaís lhe mandando ela, e ele gostava dela, e ele acreditava nela. Porque em tempos tão estranhos, mais do que um pedido ou uma festa de casamento, coisas pesarosas como manter-se longe de quem se ama ou um estádio vazio são talvez a maior prova de amor existente. Um amor estranho, coletivo, desconhecido, mas mesmo assim preocupado e consciente.

E se fosse por seu amor por Anaís, Emeric, Zaira, Ysabel, sua mãe e tantos outros, Hugo se sentia capaz de enfrentar toda aquela solidão e ansiedade, mesmo que contando com a ajuda de uma carteira de cigarro ou outra.

Inspirado no tweet acima, e na realidade.


N/A: E aí, rapaziada, como vocês estão?

Eu sinto muito pela falta de contos ontem, mas eu estava muito ocupada para postar logo Witch Soul, a história inspirada no primeiro conto de Devaneio, "O boticário". Para não encher isso daqui de coisas que eu já disse em outros cantos (na dedicatória do livro e no meu perfil, por exemplo), eu vou ser sucinta nos meus agradecimentos aqui e dizer muito obrigada, vocês não têm noção como me fazem bem com todo esse apoio e com a motivação que me dão para iniciar jornadas como essa.

Por conta disso, não se assustem se a frequência de contos baixar. Eu estou muito ocupada com o planejamento e postagens de Witch Soul e com outras coisas (sim, eu tenho uma vida na quarentena, dá pra acreditar?), mas Devaneio não será esquecido. Eu vou sempre estar postando, mesmo que coisas mais curtas como a de hoje (que só teve 1000 palavras em comparação a outros capítulos).

Esse conto em específico não foi fantasioso, por mais surreal que tudo pareça, e talvez seja mais inspirado em coisas que eu sinto, mas tudo começou com esse tweet, então os créditos vão pra ele. Eu me perguntei se queria mesmo escrever sobre a quarentena, já que todo mundo já está sendo bombardeado pelo assunto e eu prefiro dar sempre uma válvula de escape, mas isso daqui é sobre devaneios, e nada que me faça devanear mais que a realidade.

Por enquanto, é isso. Votem e comentem o que acharem, e lembrem-se: Vocês são amados.

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