Capítulo 2- A tempestade e o salgueiro

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Ethan Starlight passara a madrugada se revirando em sua cama. Não lembra de uma só noite que dormira bem. Desde pequeno era rodeado dos mais diversos pesadelos, via rostos, paredes se fechando ao seu redor e os pinheiros, pintados nas paredes de seu quarto, pegarem fogo. O calor e o cheiro inconsciente da fumaça eram tão reais que o garoto acordava tossindo e suado diversas vezes durante a madrugada.

Os pesadelos pioravam a cada noite. As olheiras pesavam sob seus olhos e suas notas decaiam cada vez mais. Dessa vez, tentava pensar em Natasha e em Thommy. Passara a tarde contando dela a ele, nem viram as horas passarem.

Thomas Lancaster aparecera no Hotel Valence quando Ethan estava prestes a completar 14 anos. O garoto chegara esbaforiado pedindo pela suíte Peter Pan. Ethan lembra-se bem de ter acompanhado Thommy junto com Richard até os aposentos, mesmo ele parecendo saber para onde ir, e já ele mal chegara ao quarto que descera correndo até o jardim com seus livros e anotações. Ethan achou isso curioso, desceu atras do estranho hóspede. Sentou-se em baixo do salgueiro e assistiu o menino ler e escrever por horas, até que Thomas percebeu estar sendo observado e chamara o garotinho para ver oque estava escrevendo.

Thommy, mesmo sendo muito novo já naquela época, participara de diversas escavações a templos e museus, arqueólogo por paixão e certamente vocação, intrigou Ethan logo de início. O velho caderno de couro gasto estava recheado de anotações, traduções, trechos em línguas já extintas, esboços de templos, pirâmides, e diversas construções incompreensíveis ao menino.

Aquele dia fora a única vez em que tocara naquele caderno. Thomas tem uma paixão e apego por aquele livrinho que ninguém lembra de te-lo visto sem suas anotações a mão. Com o passar dos anos, a cada vez que voltava, o jovem arqueólogo, trazia novas descobertas para contar ao amigo. Falava sobre tumbas e faraós, monumentos recém descobertos, obras recuperadas e as lendas que as cercavam. Não existia nenhuma obra histórica que ele não conhecia, desde livros a pinturas.

Essas lembranças o distraíam de seus pesadelos, estava feliz por seu único verdadeiro amigo estar de volta a tempo de seu aniversário. Crescera sem a mãe, Richard vivia ocupado com o hotel e as diversas restaurações e documentos que a propriedade exigia, fora isso tinha Natasha. Mas ela era um caso a parte.

Desistiu de tentar dormir e foi sentar-se em sua poltrona a frente a janela. A lua estava encoberta por nuvens tão escuras que era impossível ver seu brilho, nenhuma estrela aparecia, ventava cada vez mais forte, e as sombras que os galhos projetavam sob o quarto davam a impressão que os pinheiros ali pintados nas paredes também balançavam com a ventania. Talvez não fosse apenas impressão. Ou talvez Ethan só precisava voltar a dormir, e o sono o estava fazendo imaginar maluquices.

O céu parecia cada vez mais escuro, mesmo para uma noite nublada. De repente os trovões começaram a roncar, e entre as nuvens viam-se os raios se formarem. Ocorreu o primeiro estouro. Ethan fecha o vidro logo que a tempestade inicia. Raios iluminam cada canto do cômodo, as nuvens parecem mais baixas que o normal, uma tempestade aterrorizantemente bela. Raios continuam a despontar, até que um parece cair perto de mais. Cheiro de fumaça? Ou mais um devaneio de suas faculdades mentais, ludibriadas pelas poucas horas de sono em plena madrugada de seu aniversário?

Não.

O maior pinheiro pintado em seu quarto pega fogo. Suas folhas ardem, desaparecendo uma a uma. Ethan se afasta da parede, correndo até a porta, quando pisca, o fogo desaparece.

-Mas como?- o jovem esta sem ar, parece abafado desde que fechara a janela, e assustado esfrega os olhos sem parar como se isso fosse limpar tal visão. Pisca. Uma. Duas. Três vezes. Aproxima-se a passos lentos da parede e a toca. A pintura está ali. Intacta faz séculos. Outro raio desponta. Mas este não atinge nenhum pinheiro „imaginário" mas sim o frondoso e secular salgueiro no jardim. O clarão ilumina tudo. E de baixo da árvore está uma garota completamente encharcada, seu vestido grudado no corpo, cabelo descendo molhado sob os ombros, costas e rosto. O clarão apaga. Ethan desce as escadas aos tropeços, rumo ao jardim. O salgueiro está queimando, a moça sumira. O que essa hospede estava fazendo fora durante o temporal? Ele berrava por ajuda, a voz não aparecia em meio aos trovões. Outro clarão. O fogo some. A árvore parece inteira. Perfeita. As lágrimas de confusão começam a rolar pelo rosto do garoto, misturadas a chuva torrencial que ainda caia. Da passos para trás, desesperado, continua a recuar balançando a cabeça em própria negação, até que tropeça. Despenca por cima da mureta da fonte de água, caindo e molhando-se mais ainda, ele tenta se levantar num pulo, porém escorrega nas moedas jogadas ali pelos hóspedes. Olha para cima. A estátua parece carregar uma feição assustada pela tempestade, como se as gotas de chuva caindo pela pedra fossem as lágrimas da pobre moça. Devaneios. Estátuas não choram. Tenta se levantar novamente, obtendo sucesso dessa vez.

Sai correndo em meio a tempestade, e chegando completamente sem fôlego ao corredor externo, vai em direção as escadas que levam aos quartos, deixando poças de água por onde passa e caindo diversas vezes em meio aos degraus.

-Onde está? Onde está?- cospe as palavras completamente fora de si, virando a cabeça diversas vezes procurando o quarto do pai ou até mesmo de Thomas. Não consegue. Está atordoado demais para se localizar em meio ao labirinto de quartos do grande Hotel Valence. Um clarão deixa exposta uma pintura ao final do corredor indicando o caminho de seu quarto. Ethan entra. Reencosta-se na porta e se agacha chorando. Sua mente o estava enganando. Enganando e enganando. No último ano seus pesadelos estavam piores. Cada vez mais realistas, porém isso já era demais. Estava pingando e molhara todo o carpete do aposento, mas mesmo assim, ao invés de ir direto ao banho, aproximou-se relutante da janela, apoiando-se trêmulo na poltrona. O salgueiro estava ali, realmente intacto, da mesma forma que vira a poucos minutos. Desiste de entender as peças que o sono lhe pregava e se arrasta para um banho quente. Mais um clarão. Ethan tenta ignora-lo fechando a porta do banheiro dizendo a si mesmo que precisa relaxar e dormir, que tudo estava bem. A árvore em pé. As paredes encontravam-se inteiras. A moça era apenas outra hóspede assustada. E os olhos dourados na porta? Bom, Ethan Starlight não percebera aquele par de olhos dourados o observando.

Alguns andares abaixo, outro hospede perdia horas preciosas de sono. Thomas Lancaster andava em círculos pelo quarto, como um animal preso em uma jaula. Vez em quando dava um pulo com os estrondos causados pela tempestade, os pingos grossos batiam com o vento contra a janela e os clarões iluminavam todo o aposento. Deitava-se e acordava com um salto com os diversos pesadelos. O jovem nunca precisou de muito tempo de sono, mantinha uma boa aparência mesmo sem dormir muito, fator esse que ajudava nas longas noites nos desertos ou florestas durante as expedições. Estava sempre alerta. Sempre em guarda.

Costumava tranquilizar-se mais quando estava no hotel Valence. Era a época do ano que mais ansiava, aquelas paredes, aquele jardim, aquela fonte, tudo isso lhe trazia uma sensação reconfortante - ou não.

As vezes essa sensação de conforto era substituída pela aflição e um triste aperto no peito. Solidão? Talvez. Provavelmente. Perdera a mãe quando tinha 6 anos de idade, lembra muito pouco dela, e o pai não vira desde os 18. Considerava Richard e Ethan como uma segunda família, mas ao mesmo tempo um alerta interior soava em relação a isso. Como uma autoproteção. Ou um medo de se apegar a mais alguém que pudesse perder. Assim como já havia acontecido antes. Outro estrondo. Thomas se enrola nas cobertas feito criança e abraça seu caderno. Odiava tempestades. Odiava raios. Odiava o barulho dos trovões. Mas tinha gente que odiava mais. Ele estava protegido em meio a coberta. Nem todos estavam. Um clarão ilumina o quarto e todo o jardim novamente. A estátua! Algo estava acontecendo com a estátua! Dava para ver da janela e ele logo se levantou para ajudar. Nada poderia acontecer ao lugar que mais amava no mundo. Era Ethan?  Ethan Starlight corria em meio a chuva e acabara de cair na fonte de água. Parecia desnorteado. Precisava de ajuda.

Thomas correu em direção a porta do quarto mas esta não se abria, tentou forçar, chutar, socar de raiva. Tinha gente lá fora que precisava dele. Ethan precisava. A porta abriu num ímpeto e o jovem arqueólogo caiu para o lado de fora do corredor.

Amanhecera com um sol perfeito em um céu azulado sem nuvens. Ele estava deitado em sua cama e dormira como nunca havia dormido em muitos anos. A porta estava inteira, o céu belo, talvez tudo não tenha se passado de mais um de seus pesadelos.

A não ser pelo salgueiro partido ao meio no jardim.

A Dama das Flores - Vol 1Onde histórias criam vida. Descubra agora