Escolhas

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A luz do sol aquece o meu quarto e aos poucos me traz de volta para a realidade. Não faço a mínima ideia de quando voltei para o hotel, mas minha principal preocupação é com a raiva dos outros.
Eu obviamente tenho alguma culpa em meio ao rastro de destruição que assombra essa cidade, e nossas vidas.
O bilhete preso ao meu criado mudo diz que eles partiram ainda de madrugada para "interrogar testemunhas".
Acho que eu, aparentemente, não serei útil ou sequer uma boa companhia, porque fui deixada para trás.
A gentil senhora dona do hotel me recomendou um restaurante nas redondezas, um ótimo lugar para eu tentar ignorar o pesar em minha consciência.
O dia passa como um sopro, e os sons dos pássaros são a única coisa que me mantém presa a realidade. Toda vez que tento lembrar, me perco, como uma neblina que consome meus pensamentos, me consome.
A noite já cai novamente sem que eu perceba, acho que realmente sou incapaz de fazer qualquer coisa sozinha.
- O que um rostinho tão bonito faz em uma cidade como essa? - Ao meu lado, surge um homem de barba rala, cabelos compridos e olhos penetrantes, que interrompe meu devaneio. - Prazer, Patrick!
- Mare! - Seu aperto de mão é firme e por algum motivo, senti-me como uma presa no meio da Savana. - Meus amigos estão fazendo uma reportagem na cidade e eu acabei ficando de fora.
- Então são seus amigos que estão por aí fazendo perguntas sobre as "Bruxas da cidade"?
- Bruxas?
- Sim! As principais suspeitas são a mulher e a filha do atual prefeito. Afinal, o garoto era neto do prefeito anterior.
- E você sabe algo mais sobre? - Eu quero tanto que eles me vejam como útil, que consigo me virar sozinha.
- Eu até posso ajudar, mas tudo nessa vida tem um preço. - Ele lentamente coloca sua mão em minha coxa e eu não consigo evitar engolir seco. Senti-me tonta e enjoada. - Ou pode deixar seus amigos descobrirem sozinhos, mas visitantes fazendo perguntas em uma cidade pequena, não são bem vistos.
- Não há mais nada que eu possa fazer?
- Como eu disse, é difícil encontrar um rostinho bonito como o seu por aqui.
Eu não preciso fazer isso... a escolha é minha, eu posso ir embora e fingir que isso nunca aconteceu, mas não foi o que fiz.

Ele me leva para um motel, parece querer fazer eu me sentir segura, mesmo que ele pudesse evitar essa situação por completo.
Mas eu também podia, então não posso culpa-lo, eu escolhi o caminho mais facil e foi nisso que tentei pensar enquanto ele passava suas mãos em mim.
É tão difícil fugir da realidade em uma situação como essa, onde cada toque queimava, fazendo eu encarar minhas decisões.
Ele não exita em me bater, não exita em me fazer gritar, em aproveitar cada segundo, do produto que ele comprou tão barato, de mim.
É uma onda infinita, um montanha russa que eu não quero aproveitar, mas Patrick me faz perder o direito de dizer que foi ao todo ruim.
Ele faz questão de ouvir eu gritar seu nome até que minha garganta começar a doer. Se tornou uma competição, ele corre pela minha submissão e alguma coisa dentro de mim, se recusa a entregá-la.

A rua está deserta, o vento gelado bate em meus cabelos molhados e sou obrigada a apertar o passo para tentar escapar do frio que me cerca, mas minhas pernas não parecem querer cooperar e o Motel para o qual ele me levou é muito distante de tudo. Uma buzina e uma voz familiar me tiram de meus pensamentos.
- Mare, posso te dar uma carona se quiser. - Ele me faz estremecer e cria uma raiva e um ódio que me corrompem, mas apesar de tudo só nego com a cabeça, já não tenho forças para lutar.
- Sabe, foi muito bom para mim e se quiser, podemos repetir a dose. - Ele lentamente desce do carro e encosta no meu ombro. - Não foi bom? Acho que você só está impressionada, afinal não diz nada.
Ele prossegue em seu monólogo enquanto suas mãos afastam o cabelo de meu rosto. - Eu sei de mais umas coisinhas desse seu caso, encontre-me nesse endereço amanhã e podemos negociar.
Antes de ouvir a minha resposta, sorrindo ele me puxa para dentro do carro e nos leva para o hotel no qual estou hospedada. Como se meu silêncio provasse algo, chegando no hotel, ele faz questão de se despedir à altura do que acabamos de fazer. - Até amanhã!
O carro segue rua abaixo, deixando-me sozinha para lidar com meus pensamentos. Há o que pensar? Eu fiz o que era necessário, certo? Fiz uma escolha, um sacrifício que beneficiará a todos nós.
- Onde é que você estava? - Hank e sua raiva ou preocupação são muito bem-vindas no momento, mas eu tenho que encarar as três pessoas que conheço na minha vida e provar que eu sou muito mais forte que qualquer um deles acredita, que consigo fazer as coisas por mim mesma.
- Estava investigando e encontrei uma pista muito útil.
- Investigando? Acha que não vimos como você se despediu daquele homem?
- E aquele homem me deu informações que vão ser útil para todos nós, Marcus! - Ignorando seus protestos e perguntas, começo a andar em direção ao hotel. - O local onde o corpo do Evandro foi encontrado, e o horário que os policiais saíram de lá.
Haviam mais informações, Patrick me prometeu que revelaria aos poucos, só para garantir minha volta.

Saímos antes do sol nascer em rumo ao local, e eu não consegui evitar dormir. Com meus sonhos perturbados por crianças implorando por ajuda.
O balanço do carro e as vozes abafadas, trazem-me de volta à realidade e, ao mesmo tempo, todas as lembranças me impedem de abrir os olhos. O medo de como eles reajam a tudo aquilo, me segura na escuridão.
- Chegamos! - Senti alguém me balançar e ao olhar para o lado, vi Marvin com um semblante solidário no rosto. - Temos que resgatar o Artur, depois você pode descansar.
- Vocês não está com raiva por tudo que aconteceu? - Como ele pode estar tão calmo, confiando em mim sem nem me conhecer direito?
- Eu e Hank sabemos que você está tentando ajudar, e o Marcus é sempre meio ranzinza. - Ele sorriu e abriu a porta para sair do carro. Verde nos cerca em todas as direções, tendo apenas a estrada à frente como linha de visão.
- Muito bem! O local em que o menino foi encontrado é adentro dessa mata, vamos até lá tentar encontrar alguma pista. - Marcus colocou óculos escuros em seu rosto e se virou em minha direção. - O que quer que esteja acontecendo com Arthur e com ela, tem a ver com esse menino.
Todos parecem desconfortáveis com a situação e resolvo que talvez a melhor opção seja me atentar aos sons de nossos passos contra o chão, e dos insetos ao nosso redor, até Marvin disparar na direção da clareira à nossa frente. Quando nos aproximamos, pude ver um corpo jogado logo depois da faixa da polícia.
- ARTUR! - A voz de Hank parece cheia de desespero enquanto ele examina o corpo banhado em sangue - Ele está vivo! Perdeu muito sangue, mas vai ficar bem. Temos que levá-lo ao hospital.
- E dizer o que? Que ele foi atacado por ursos? As pessoas não aparecem mutiladas do nada.
- Eu... Vou... Voltar... Para... Casa. - A voz de Artur está falha e fraca, mas foi compreensível para todos nós. Ele não vai mais ajudar.
Eles o carregaram até o carro, passamos na farmácia e seguimos para o hotel onde Hank fez o melhor que pode para deixar Artur confortável durante a noite.
- Ele está estável, vamos dormir. Esse dia precisa acabar logo. - Hank não parece bem, aquela esperança que havia surgido está morrendo aos poucos, e eu não sei o que fazer para mantê-la aqui.
Eu não me lembro de ter sonhado nesta noite.

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