Quem nesse mundo não ouvia o programa do Almerindo Graça? Hão de se lembrar daquelas noites solitárias nos fins dos anos oitenta em São Paulo. Nos taxis, nas cozinhas dos bares, nos quartos solitários e portarias de prédios, lá estava ligado o aparelho no Almerindo. Rádio Campos Elíseos, ZYB 491 FM, Capital.
Grande locutor o Almerindo! O Campos Noturnos, seu programa, que ia ao ar das dez da noite às duas da madrugada, era muito bem ouvido pelas almas desajudadas, Marias abandonadas, maridos traídos e a gente em geral, que preferia a voz do digníssimo amigo ao amargor da insônia recorrente. Programa de amor, como ele mesmo dizia no dial. Nas noites quentes e frias da pauliceia, Almerindo tocava as mais belas canções de amor, onde podíamos ouvir desde as baladas dos anos sessenta ao rock romântico da última década. Eu mesmo passava as noites relembrando paixões de antigamente ouvindo o Campos Noturnos.
Ainda havia o momento da carta, onde Almerindo dramatizava a história do ouvinte, emocionando a todos. Geralmente era uma crônica de amor e perda, com a fatal música dedicatória ao final. Mesmo em dias em que as cartas não chegavam, como ocorrera naquela semana da greve dos correios, Almerindo inventava na hora uma narrativa bem marcante, em que os leitores sequer desconfiavam do truque do radialista, como ele mesmo divertidamente me confidenciara nas últimas cervejas que tomamos no boteco do Messias, na Barão de Limeira.
O grande povo adorava a hora da tradução, era o momento em que nosso amigo se sobressaía sempre. Americana, francesa, italiana... não havia obstáculos. Almerindo sempre encontrava a tradução para a música internacional. O bom profissional procurava com veias arqueológicas as velhas revistas tradutoras nos corredores empoeirados dos sebos nas ruas da Glória e Liberdade durante o dia, para poder sustentar o quadro à noite. Quando não sobravam mais novidades, ele mesmo se sentava com o dicionário inglês/português ao lado e, ouvindo a canção concentrado, tentava distinguir algumas palavras, o resto ele mesmo criava.
Aquelas e outras invenções apenas sublinhavam o determinado amor que Almerindo Graça nutria por seus ouvintes. Seu povo era sua vida, dizia o homem grandalhão de olhos calmos nas mesas, entre um copo e outro com amigos.
Era realmente um homem singular o Almerindo. Sua inigualável arte de conduzir uma boa palestra de boteco conferiu-lhe fama entre os boa-praças e bons malandros do Arouche ao Paysandu. Ali o inestimável camarada era soberano, querido entre prestigiosos e vagabundos, sempre pronto para um agradável dedo de prosa, quando saía de seu programa, na alta madrugada, esticando sua caminhada pela Rua Aurora, parando na Praça da República no Claudinei para saudar os amigos, e voltando até a São João, onde morava.
Todos ficaram impressionados com o triste fim do Almerindo. Aliás, aquele havia sido um ano bem borocoxô para o locutor da alta madrugada. Sua mãe, única parenta, morrera em fevereiro, vítima de um infarto fulminante, deixando o pobre homem de trinta e quatro anos sozinho nesse mundo de Deus. Vinha ele espaçando as visitas aos amigos, os bocados de parla no bar di Giovanni e as rondas noturnas pelo Centro Velho garoento. O indivíduo andava pelas sombras. Houve quem arriscou que ele andava namorando, por isso o sumiço. Mas quem realmente o conhecia, sabia que tinha algo de errado com o bonachão do radialista.
O inverno chegou enternecendo os corações enfeitiçados. Era nessa época que o Campos Noturnos ganhava mais audiência, afinal, os que já possuíam seus amores, apreciavam juntos, os que não os tinham, desejar-vos-iam ardilosamente ao ouvir em seus leitos gélidos as melodias afetuosas do programa. Afinal, amor é uma empresa bagunçada, sobretudo às almas da Paulicéia noturna. O Centro Velho é pintado de solidão. Bem era verdade quando um ouvinte ou outro ligava na rádio e pedia para falar ao vivo com Almerindo. Quando conseguiam, não poucos choravam ao relatar seus desamores aos quatro cantos da cidade.
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Conto um Conto
Mystery / ThrillerUm radialista atormentado, gritos de morte dentro do campus da universidade, zumbis no Anhangabaú e um lobisomem no meio da estrada. Poderiam ser apenas lendas que o povo conta, mas todas estão de alguma forma ligadas entre si. O professor e contado...