Livres um do outro

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Um mendigo entra no bar, coloca algumas moedas no balcão ensebado do Claudinei e espera o copo de pinga. São nove da manhã, mas pouco importa, pois Jorge Luis não dormiu naquela noite, ficou preocupado procurando seu cão, Adamastor, que sumira no meio do vendaval da tarde anterior. Ao seu lado um homem de terno toma um café aguado. Mais ao fundo o Matias, motorista de táxi, espera sua vez no ponto, que fica bem em frente ao bar. Na televisão em cima da geladeira com bebidas, começa o programa da Ana Maria Braga. Uma chuva densa desce na cidade baixa, fazendo as cavaletas cuspirem água pela calçada. Nas mesas o Genival conta quantas raspadinhas vendeu na saída do metrô naquele começo de dia. Jorge permanece estático com o copo de aguardente na mão por bons segundos, olhando fixamente para a tevê.

- Pediu a pinga e não vai beber? Gritou o Zé Baiano lá da chapa de lanches, molestando o pobre homem.

- Demoro o quanto eu quiser, respondeu Jorge sem tirar os olhos do programa, paguei por ela!

A apresentadora com seu sorriso matinal plastificado convida a prestigiada cantora Maricel para subir ao palco do programa. Após os cumprimentos, a artista começa a cantar um de seus novos sucessos, intitulado "livres um do outro", canção tema dos protagonistas da nova novela. O mendigo baixa um pouco a cabeça e encosta a testa no balcão, olhando os seus pés imundos enquanto seus ouvidos continuam sendo invadidos pela canção como uma geladeira ao entrar no apartamento vazio.

- É ela? Perguntou Claudinei, o dono do bar, enquanto lavava os copos, olhando para a tela.

- Sim, respondeu Jorge Luis enxugando os olhos.

- Bem gostosinha. Continuou o dono do bar.

- E por que você não procura a menina? Questionou Genival, sem tirar os olhos das cartelas.

- E eu vou dizer o que pra ela?

- Eu sei lá. Conta a história que contou pra gente. Diz que é o amor da vida dela.

- Ela nem me conhece. Disse o mendigo coçando os cabelos imundos.

Há uma inocência perturbadora entre os populares em acreditar nas histórias mais impossíveis de ser verdade. Estranhamente, tanto Matias do táxi, quanto Genival das cartelas e até Claudinei, dono do bar, acreditavam no imundo morador de rua.

- A gente te ajuda, Poeta. Propôs Claudinei, chamando-o pelo apelido, colocando outra pinga, essa por conta da casa, para o conhecido personagem da praça. Nós arruma uma roupa boa, você toma um bom banho, corta esse sebo de pelo do rosto e vai falar com ela.

- Qual o quê...

- Ô, Poeta... me diz uma coisa, pediu o Matias girando a chave do carro nos dedos, essa música aí que ela tá cantando, é aquela que você mandou pelo correio, não é?

- Sim, é.

- Espere um pouco, interrompeu o homem de terno, quer dizer que essa música que não para de tocar nos rádios e na TV é de sua autoria?

- É sim. Disse o mendigo contrariado.

- Mas rapaz, continuou o homem largando a xícara no pires, somente com o dinheiro dos direitos autorais dessa música você estaria rico. É uma das mais vistas na internet.

- O que importa?

- Por que você não processa ela? Iria ganhar uma boa grana.

- Pra ficar igual a você? Com um terno chique e o coração vazio? Deixa pra lá...

- Ele é um mentiroso! Gritou o Zé Baiano dos fundos, enquanto temperava o feijão para o almoço. Onde já se viu? Um bicho feio dessa gota serena ser a paixão de Maricel. A rapariga mais linda desse mundo.

Conto um ContoWhere stories live. Discover now