Há anos Bernadete observava seu avô, o senhor Josafá, entretido em seu computador. De fato a moça, hoje adulta, casada e com filhos, crescera acompanhando o velho, que de tempos em tempos ocupava-se em se espaçar do mundo para se dedicar ao antigo hábito. Seus dedos tremiam ao digitar os comandos do igualmente antigo aparelhinho. Ela mesma não se lembrava da última vez em que vira um dispositivo tão arcaico quanto aquele. Quantos anos deveria ter o tablet do avô? Quarenta? Cinquenta? Realmente não vendiam nada parecido desde a terceira revolução eletrônica de 2040. O próprio velho pouco o usava. Ele ficava enrolado em um lenço florido e dormia às vezes por anos na gaveta da cômoda do ancião. Das poucas imagens que Bernadete tinha da avó, recordava-se claramente de sua repulsa ao mecanismo do marido. Tinha ciúmes dele. Chegou certa vez a escondê-lo do velho. Este demonstrou única vez sua raiva, deixando a casa para voltar somente três dias depois.
Josafá tinha suas manias, dizia a mãe de Bernadete. Seu avô sempre foi assim. Ainda vai morrer sem terminar essa partida. O que nem a avó, nem a mãe de Bernadete sabiam era o motivo do velho de tempos em tempos entrar novamente no jogo. Mas a menina descobrira há poucos anos.
- Xadrez ainda, vô? Puxou assunto, já sabendo a resposta do velho, que permanecia perplexo diante da telinha do computador antigo.
Josafá tinha as costas curvadas para o apetrecho. Sorria às vezes, noutras fazia cara feia. Mas na grande maioria, não emitia emoção alguma.
- É um jogo difícil. Respondeu o avô, ajeitando os óculos no nariz.
- O mesmo oponente? Perguntou a neta.
- Ele não é meu oponente, filha. Respondeu Josafá distraído com a jogada.
- Uma nova partida, ao menos? Arriscou Bernadete.
- É a mesma partida. Continuou o octogenário distraído.
- Nossa, vovô. Respondeu a moça surpresa. Por que não busca logo o xeque-mate ganha logo dele?
- Tereza, veja bem, minha filha. Seu oponente perder, não te faz necessariamente um vencedor. Para um dos dois ganhar, o outro deve sofrer.
- Mas, vô, disse Bernadete, ignorando o fato dele tê-la chamado pelo nome de sua mãe, esse jogo já dura mais de cinquenta anos!
- Existem partidas que demoram mesmo. Devolveu o homem com sua voz grave e cansada.
- Sim, mas nesse tempo todo eu já observei várias oportunidades que ele deu pra você terminar o jogo. Você já poderia ter vencido.
Josafá não respondeu. Apenas continuou com a vista cansada no aparato medieval. De fato seu oponente dera-lhe chances para que ele derrubasse seu rei. E o homem voltava casas de propósito, fugindo da vitória. Ele também, por outro lado, já deixara o jogo aberto, sem que o homem o vencesse.
Sua mãe dissera que Josafá voltara, certa vez, antes mesmo de seu nascimento, com o aparelho em mãos de uma viagem que fizera à Rússia, quando ainda era um jovem diplomata. O aparelho, novinho em folha, tinha apenas uma função online, o jogo de xadrez. Encontrou-o no trem de São Petersburgo. Logo que chegou ao Brasil, fez amizade com esse rapaz. E de lá pra cá somaram-se quase sessenta anos, sem que o avô deixasse de responder suas manobras.
Houve sim épocas em que o homem deixou de lado o aparelho, quando era sua vez de jogar. Contou uma ocasião em que deixou o sujeito russo esperando por mais de dez anos. E quando, numa noite solitária, fez a jogada, permaneceu ainda mais cinco anos esperando sua réplica. Pensou até que seu parceiro houvesse morrido.
E agora estava lá novamente, debruçado na janela da frente, com o autômato nas mãos há três dias pensando, que peça devo mexer?
Nos últimos anos vinha ele com medo de morrer sem terminar a partida.
- É só um jogo. Disse a moça.
- É só um jogo. Repetiu o avô, fechando a janela e recolhendo-se.
O fato é que o jogo chegara num impasse, qualquer um dos dois que se arriscasse, perderia sua estabilidade. Afinal, o tabuleiro estava ligeiramente equilibrado.
- Está frio, vô. Eu vou fazer um chá para o senhor.
- Eu não gosto de chá, já falei.
De fato, apesar de sempre repetir não gostar de chá, o tomava há quarenta anos. Automaticamente, mecanicamente, olhando pela janela os carros passarem. O que lhe vinha na memória? Questionava Bernadete em pensamento. O que realmente ocorrera em São Petersburgo?
- Por que essa brincadeira, vô? Você está velho. Precisa descansar. Não pode ficar se estressando com esses joguinhos.
- Não é um joguinho. Repetiu o senhor, com as mãos nas pernas, olhando o aparelho em cima da mesa. Isso não é uma brincadeira, onde as pessoas decidem a próxima jogada como se escolhe uma música bonita para ouvir.
- É por isso que digo, o senhor vai gastar seu tempo com isso até quando? Perguntou Bernadete, enquanto fervia a água.
- Venho me perguntando isso há quarenta anos. Disse o velho sem ao menos mover as pupilas.
- O que vocês conversam? Questionou a neta, procurando tirar mais alguma informação sobre sujeito misterioso que entrou no jogo há tantos anos.
- Não conversamos mais.
- E por que não?
- Tudo o que poderia ser dito o foi há muitos anos. Agora restou apenas o jogo.
Bernadete deixou o avô na sala lendo um livro. Os dois são reféns do jogo, pensou. Como a vida aprisiona as almas por tanto tempo? Algo dá errado por algum motivo, e caminhões de dias vão soterrando seus sonhos até não sobrar nada. Apenas um jogo de xadrez. Por que ele não voltara lá para terminar a partida pessoalmente? O destino o trouxe de volta e definitivamente ele foi feliz. Agora, senil, fechara acordo com a solidão, e ali permanecia, incapaz de mexer qualquer peça, apenas olhando para o tabuleiro.
- Faz quanto tempo que está na sua vez, vô? Perguntou numa tarde de frio.
- 745 dias.
- Está me dizendo que não mexe uma única peça há dois anos?
Josafá permanecia tranquilo, poucas palavras, seu chá e o velho tablet. Uma manhã finalmente fez a jogada, afinal, já estava cansado. Passou a manhã nervoso, andando da sala para o quarto, do quarto para a cozinha.
Na tarde do dia seguinte, Bernadete estranhou seu avô não ter descido para o chá da tarde. Seu corpo jazia inerte na cama, com o tablet nas mãos. Após a primeira comoção, pegou o aparelho . Havia uma mensagem do oponente:
- Xeque-mate.
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Conto um Conto
Tajemnica / ThrillerUm radialista atormentado, gritos de morte dentro do campus da universidade, zumbis no Anhangabaú e um lobisomem no meio da estrada. Poderiam ser apenas lendas que o povo conta, mas todas estão de alguma forma ligadas entre si. O professor e contado...