Olá, Marcelo Fávaro. Meu nome é Rosalvo Matias Cerquilhato, tenho 55 anos, casado há 30. Moro em Taubaté, São Paulo e sou caminhoneiro faz muitos anos. Adoro seu programa. Depois que ganhei um pen drive do meu sobrinho com todos os seus contos narrados, minhas noites na estrada ficaram mais descontraídas e sombrias.
Escrevo-lhe essa missiva com o coração congelado de pavor, diante de toda a experiência macabra em que fui vítima e confesso, ainda meus dedos tremem ao digitar, lembrando os momentos pavorosos pelos quais passei. Parece que, ao relatar, eu vivo toda a agonia pútrida novamente. Entretanto, considero minha obrigação manter meus queridos companheiros de estrada precavidos de tais anomalias presentes nas infindáveis estradas desse país.
O Brasil é muito grande, Marcelo. Eu já vi e ouvi muita coisa estranha nessa vida. Desde os tempos infantis, quando acompanhava meu velho pai na boleia do caminhão nas férias, em épocas onde quase a totalidade dos caminhos ainda era de terra batida, eu já deixara de duvidar do estranho e do anormal. A vida me ensinou a respeitar as curvas escuras desse mundo que não tem fim e, acima de tudo, respeitar as histórias que o povo conta.
Não quero que pense, meu amigo narrador, que a mão que digita este texto é de um louco ou de um prascóvio vulgar. Tive acesso à educação formal num colégio militar em Belo Horizonte. Li e leio muito e posso garantir, o valor ou veracidade dessas palavras equivale a pena da lei que rege uma sociedade. O que digo é efetivo, autêntico, e a subjetividade referente a este preâmbulo não deve induzir seus ouvintes ao erro. Peço, portanto, para quem tiver a caridade de ouvir essa narrativa, que guarde o escárnio. Não ria de quem apenas deseja que ninguém, nunca mais, passe pelo que passei.
Como disse, sou caminhoneiro. Descia de Lavras, em Minas Gerais, para o Rio de Janeiro, voltando com o caminhão vazio depois de uma entrega em Nepomuceno. Viagem rápida para quem já enfrentara em diversas ocasiões travessias pela Transamazônica até os confins do Pará. Não havia nenhum obstáculo que me impedisse de tomar um bom café da manhã com minha família. Apesar de cansado pelo ritmo que vinha empregando nos últimos meses, por conta de um tratamento médico que meu filho do meio precisava se submeter, ainda assim eu tinha completa consciência de que aguentaria dirigir a noite toda. Noite, aliás, que se mostrava escura, pelo menos até a Lua nascer mais tarde. Noite silenciosa, sem muitos carros vindos do sentido contrário. Batia um ventinho gelado, proveniente dos lagos adiante, mas preferia manter o vidro aberto. Mania minha. Deixar o braço pra fora. Sentir o ar puro da noite.
Naquela época a estrada ainda não fora reformada, era muito ruim. Entretanto, não valia a pena a volta que eu faria em busca de estradas que pouco diferiam da BR 265. Então, dei um beijo no crucifixo de prata que sempre carregava comigo e enfrentei a famigerada e esburacada rota, torcendo para não perder nenhum pneu.
A peça religiosa, o crucifixo, fora um presente de minha esposa em ocasião de visita a Aparecida do Norte, há muitos anos. Uma cruz muito bem trabalhada com uns vinte centímetros de comprimento por uns quinze de largura. Não viajava sem ele. E por Deus, Marcelo Fávaro, somente estou vivo por causa do objeto.
Vinha em uma velocidade não tão boa nos últimos quilômetros quando resolvi estacionar próximo a Itutinga, onde antigamente havia uma velha paragem de viajantes. Vontade de urinar. Tomar um café. Nada de especial. Nesses horários, em meio às brumas, quase ninguém vê essa parada. Fui direto ao banheiro, que a princípio parecia deserto, com aquela lâmpadazinha laranja e fraca, tudo antigo, com a aparência de muito uso. Estava já lavando as mãos quando ouvi um forte grasnado vindo do interior de um box. Não sou de me assustar, entretanto, o grasnado veio seguido de um pigarro nauseante. O ocupante do box ainda emitiu uma sonora praga e soltou alguns palavrões logo em seguida, antes de abrir a portinha. Logo um odor horrível veio de lá.
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Conto um Conto
Mystery / ThrillerUm radialista atormentado, gritos de morte dentro do campus da universidade, zumbis no Anhangabaú e um lobisomem no meio da estrada. Poderiam ser apenas lendas que o povo conta, mas todas estão de alguma forma ligadas entre si. O professor e contado...