A hora mais silenciosa da madrugada

12 1 0
                                    


Poucos sabem os infindáveis labirintos que a mente humana pode abrigar, sobretudo quando as lembranças presentes são perturbadoras o bastante para criar bloqueios intransponíveis. O inexplicável vive presente em nossa existência e não há terreno seguro quando o subconsciente domina nossos atos até definharmos em atitudes desonráveis. O que venho vergonhosamente dizer-lhes permaneceu entranhado comigo por dezenas de anos e somente agora, ao final de minha trajetória por esse mundo, tenho coragem de expor os devaneios que me privaram de ter uma vida plena. Permaneço em uma existência febril, tentando dominar o asco pessoal que precede o crucial momento. Meu corpo doente prostrado no leito aguarda a vinda do barqueiro solitário e frio.

Minhas mãos, embora trêmulas e enrugadas pelas investidas dos anos, ainda me permitem escrever a triste história. Ou pelo menos um capítulo dela. O remorso, que sempre me acompanhou como um parente próximo, agora invade meu peito, sobretudo após o momento em que o doutor saiu por aquela porta hoje pelo fim da tarde nublada, dizendo friamente à criada, imaginando meu sono, que aquela seria minha derradeira noite. 

Não posso deixar este mundo sem evocar minhas lembranças juvenis, onde se deu o episódio, cujas consequências resultaram em uma profunda melancolia que atravessou os anos e tomou minha existência. Com efeito, pois, desde a mocidade, meus nervos frágeis não suportam gritos, barulhos recorrentes, algazarra e festas. O fato sinistro tornou-me um homem recluso, enclausurado na minha amarga solidão. Mas agora, às portas da morte, sinto-me na obrigação pessoal de colocar no papel minhas velhas lembranças, ou pelo menos a versão que eu vi disso tudo.

Contava eu com 20 anos, um rapaz agraciado com uma bolsa integral, quando cheguei à Universidade Federal de Mata Cruzeiro, em Minas Gerais, para cursar Medicina. A UFMC, que contemplava a faculdade de ciências fundada um século antes por Belarmino Perrout, e a antiga Escola de Medicina das Minas Gerais, já possuía os imponentes prédios seculares quando efetuei minha matrícula. Iria o semestre, por conta das fortes chuvas de 1967, começar somente em agosto. E, embora estivesse ansioso por essa nova etapa de minha vida, estava longe de casa, experimentando um estranho sentimento de angústia que me invadia naqueles dias frios nas montanhas de Mata Cruzeiro. 

Fui conduzido pelo secretário acadêmico por uma alameda arborizada ao local que me serviria de abrigo: a moradia de estudantes, apelidada ironicamente pelos antigos acadêmicos de o Castelo. Um velho prédio escuro no alto de uma colida aos fundos das muralhas no campus. Havia uma guarita em sua entrada, logo a frente do edifício, que em outros tempos servira de posto para um guarda da universidade, responsável por manter a ordem no local, inspecionar a entrada de estranhos, coibir bebidas alcoólicas, etc. Hoje, a cabine permanecia fechada, sem funcionamento, com cadeiras e mesas quebradas trancadas em seu interior. A construção dava a impressão de ter sido cuidadosamente projetada para durar séculos, com balaústres imponentes em sua fachada, demonstrando que em melhores épocas aquele seria um local suntuoso. Grossas colunas de cimento ascendiam até o sétimo andar. O hall de entrada lembrava bem um hotel decadente. A todo momento entravam e saiam jovens de todos os estilos. O corredor do primeiro andar seguia com paredes emboloradas até a escada de mogno que dava aos andares superiores. Cada pavimento trazia uma ideia igual da moradia: cores cinzas e desbotadas, representando os rostos cansados dos moradores, seja pelo ritmo enlouquecedor de trabalhos acadêmicos, seja pelas noites entregues aos encontros etílicos juvenis. O último andar era conferido hierarquicamente aos calouros, já que não existiam elevadores. Quem fosse chegando, abrigava-se no último andar, descendo os pavimentos conforme fossem esvaziando com a saída dos formandos.

Um estudante de nome Xavier me ajudou com as malas até o quarto que me fora destinado, com o número 706. Um dormitório comum, duas camas de madeira, uma mesa de estudos, um armário simples e uma pequena janela que dava vistas ao campus inteiro, de onde dava para ver a pequena cidade de Mata Cruzeiro no horizonte. Organizei rapidamente as roupas e livros no meu compartimento, desabei na cama de cansaço e dormi profundamente. Fui desperto pela porta batendo e acompanhei um jovem, provavelmente de minha altura, com o rosto arredondado, os cabelos lisos e pretos em volta do pescoço, denotando um aspecto de desleixo característico dos homens de nossa idade. Entrava no aposento com sofreguidão, suando muito, enquanto carregava suas malas, que em muito excediam as minhas. Seu nome era Gomes e se apresentava dizendo ser do Cruz Verde.

Conto um ContoWhere stories live. Discover now