Noite sombria

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Capítulo 1

Paris - Ano de 1745

   A vida está cada vez mais se esvaindo do meu corpo debilitado e o espelho se tornou meu maior e mais cruel inimigo.
Meus lábios antes rosados agora estão secos e rachados como as valas trépidas das catacumbas de Paris. E ver-me no reflexo do espelho provoca-me ânsia. Meus olhos antes tão cheios de luz, se tornaram frios e revoltosos como o mar em uma tortuosa tempestade de verão. 
E o dourado dos meus cabelos a resvalar sobre a minha fronte tornou-se seco, áspero e quebradiço. Pois, agora, eu não passo de um pútrido defunto: defunto que vive à espera de sua morte. Esquelético e com um raso resquício de vida. 
A esperança há muito tempo tinha me abandonado. Se Deus também não fizera o mesmo quando percebeu tamanho pecado que cometi. 
Talvez, essa penosa doença não passasse de um castigo, um castigo divino em nome dos meus pecaminosos e luxurientos atos. Pois me deixei guiar pela carne, pela carne febril de um único homem.
Sim, essa era a única razão para tal desgraça em minha vida.

Joseph Gaillard fechou seu diário de capa marrom aveludada, o colocando na escrivaninha ao lado da pena branca e do tinteiro com tinta azul. A cada dia que se passava o seu corpo esquelético ficava mais debilitado, como se a morte estivesse aos poucos se apossando da sua alma devassa. Levando embora os últimos fios de esperança que ainda lhe apetecia. 

Ele colocou a mão sobre o peito e tossiu com certa dificuldade, sentindo como se sua garganta estivesse sendo fatiada pela mais afiada navalha juntamente ao gosto férreo em sua boca. 

Joseph levou o lenço de linho branco aos seus lábios murchos, em seguida vendo-o manchado pela cor púrpura do seu sangue. E agora, do que lhe valia ter tanto dinheiro, se nenhum médico do mundo poderia curá-lo dessa maldita doença?

Levantou-se da poltrona estofada e andou vestido na sua rotineira camisola branca pela penumbra do seu aposento, ricamente decorado. Ao sentar-se na pomposa cama de dossel ele percebeu que há muito tempo estava a viver na escuridão. 

O sol que tanto amava agora parecia queimar as suas retinas, e a única luz suportável era a bruxuleante dos anosos candelabros de prata. Joseph engoliu em seco as lágrimas que teimaram em cair dos seus olhos, se odiando ainda mais por parecer tão fraco e digno de pena.

Ele se enrolou nos cobertores grossos e fechou os olhos. Apenas a espera de um outro amanhecer, ou mesmo de nunca mais ter que acordar. 

°°°

Ele tomou um último gole da sopa rala como seu de jejum, lambendo suavemente o caldo sobre seus lábios com a língua. Colocou a colher no prato de porcelana pintado com rosas à mão, tirando a bandeja de prata do seu colo, mas antes pegando o copo de cristal com água.

Bebericou um pouco do líquido, sentindo-o molhar a sua garganta seca. Deixou o copo sobre a mesa de cabeceira, erguendo seu olhar inquisidor em direção a bela mulher, já em seus cinquenta anos de idade, sentada na poltrona em frente à cama e o olhando com pesar através das hastes dos seus óculos.

— Perdoe-me se te faço sofrer com a minha asquerosa aparência — disse com sarcasmo. — Mas não me lembro de ter feito a senhora ver-me à força, mama.

— Não ouse falar comigo desse jeito. — Anastasia falou quase sem voz. — Pois ainda sou a sua mãe, seu pequeno insolente.

Por mais preparada que ela pudesse dizer que estava, Anastasia Gaillard, sentia como se uma corda estivesse amarrada ao redor do seu pescoço. Não era justo para uma mãe ver seu filho em estado tão desgostoso, entregue à maldita doença.

Soltou um suspiro resignado.

Joseph franziu o rosto, suas mãos caíram sobre seu colo e ele segurou o impulso de dizer outra bobagem. De modo hesitante, ele abriu os lábios em um pedido baixo de desculpas.

— Desculpe-me.

Não havia nada em todo mundo que ele quisesse mais do que se ver livre dessa amargura. Desejava não ver as pessoas que amava sofrendo pela sua dor. Mas parece que ele estava determinado a deixar tudo ainda mais difícil para todos, mesmo que não quisesse.

Anastasia se levantou, ajeitando a saia do seu vestido verde escuro de cetim quando se aproximou da cama. Ela então o abraçou de lado, antes de pegar a bandeja e sair do quarto.

— Vou deixá-lo a sós. — Ela disse. — Descanse um pouco.

Então ela saiu, fechando a porta e deixando o quarto em um silêncio sepulcral.

°°°

Joseph acordou sentindo a luz da lua cheia atingindo diretamente seu rosto. Abriu os olhos, piscando rapidamente para adequar a visão na penumbra parcialmente iluminada.

Então, a sensação de que estava sendo observado tomou seu corpo e alma. Ele tentou alcançar seus dedos no pequeno sino sobre a mesa de cabeceira, mas nem pode pegá-lo, pois o objeto não estava em seu lugar. Quem o havia pegado de lá? - pensou ele.

Logo obteve a sua resposta, quando moveu a cabeça para a janela aberta. E não pode acreditar quando o farfalhar das asas negras pararam e uma figura distorcida parou acima do parapeito da janela.

Novamente piscou os olhos, pensando ser somente uma alucinação causada por sua doença. Mas a verdade é que não era uma mera alucinação. Em questão de segundos suas suspeitas foram confirmadas quando a figura se materializou a sua frente.

— Oh, santo Deus… — Ele balbuciou com a voz roufenha.

Ergueu os braços, a princípio para se defender de qualquer ataque, porém nada lhe aconteceu. Então um vento suave rompeu o quarto, quando o ser de asas pousou em cima da cama.

Joseph arregalou os olhos, quando o corpo da criatura tomou forma a sua vista. As coisas pareciam dar voltas na sua cabeça, no fundo sabendo que tudo não deveria passar de um pesadelo. 

Estava tão exausto que não pode fazer nenhum movimento, quando o homem se abaixou e ergueu a sua mão direita. Tocando seu rosto, descendo pelo seu pescoço até suas unhas pretas e afiadas pousarem acima do seu coração.

Um fraco gemido escapou dos seus lábios, no exato instante em que os lábios incrivelmente macios do homem com chifres tocaram os seus.

— Você está morrendo — a voz soou como uma sinfonia nos seus ouvidos, em certos momentos, melancólica, mesmo que a rouquidão natural preenchesse as lacunas da sua alma.

Agora, era possível ver distintamente o rosto dele. Formado por um triângulo marcado por uma suave marca de barba negra, lábios cheios e olhos tão vermelhos quanto às labaredas do inferno. A harmonia juntamente ao caos.

— Então você veio buscar-me? — E ele queria ir, isso era o pior de tudo.

Os longos e negros cabelos do homem anjo tocaram em seu rosto quando os lábios dele resvalaram no seu ouvido, era apenas o suave sopro das flores da primavera.

— Lembre-se apenas de uma coisa… — Ele disse.

— Sim — respondeu Joseph.

— A morte pode ser deliciosamente dolorosa.

E assim, ele apagou em meio à escuridão.

***

Os direitos dessa obra estão assegurados por lei.
E qualquer cópia, parcial ou total, desta narrativa, dentro ou fora do wattpad sem o consentimento do autor Matheus McAvoy, será irrevogavelmente denunciada e processada.

Anjo Noturno [Conto Gay]Onde histórias criam vida. Descubra agora