Capítulo 1

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A ORIGEM

Couro, penas, peixe seco, sal grosso, pinga, tabaco. Tudo isso já foi moeda corrente. Mas a que deu certo mesmo foi outra: o dinheiro falso – uma criação da Grécia Antiga que você carrega na carteira até hoje.

DINHEIRO É UM MECANISMO ENGENHOSO: PERMITE QUE UMA MANICURE COMPRE SEIS PÃEZINHOS SEM TER DE FAZER AS UNHAS DO PADEIRO. E DÁ PARA RESUMIR SUA ESSÊNCIA EM UMA PALAVRA: FÉ. BASICAMENTE FÉ DE QUE VOCÊ VAI CONSEGUIR TROCAR OS PAPÉIS QUE ESTÃO NA SUA CARTEIRA OU OS NÚMEROS QUE APARECEM NO SITE DO SEU BANCO POR COISAS PARA COMER, VESTIR E MORAR.

Mas essa é uma noção incompleta. Dinheiro só é algo digno desse nome quando obedece a dois critérios:

1. Precisa ser uma coisa que todo mundo queira.

2. Não pode ser algo muito abundante. 

Se não for escasso, não tem como valer nada. E senão vale nada, não é dinheiro. Pense numa coisa que todo mundo quer o tempo todo. Água, por exemplo. Não dá para viver sem, então ela cumpre muito bem o critério 1. Só que ela não obedece ao item 2 – é só ir à beira do rio ou ao filtro da cozinha e pegar o quanto quiser. Muita abundância para que ela sirva como dinheiro. 

Agora pense em comida. Aí é diferente. Por boa parte da história da humanidade, ela se encaixou perfeitamente nos dois critérios. Primeiro, todo mundo aprecia comida, claro. Segundo, nunca foi simples produzi-la a partir da terra. Caçar, então, pior ainda. Comida sempre foi algo relativamente raro. Por isso mesmo, ela foi a primeira coisa a servir como dinheiro. E não só antes da invenção da moeda. Mas antes do surgimento do ser humano. Os chimpanzés estão aí para provar. Os machos dão carne para as fêmeas em troca de sexo. Não é exatamente um comércio, no sentido toma lá dá cá. Dividir o resultado de uma caçada com as macacas é um dos agrados que os machos fazem para tentar conquistá-las. Trata-se dac omida, a moeda mais antiga do mundo, pagando pelo serviço mais antigo do mundo. E quando o ser humano apareceu na Terra, as coisas não mudaram muito. Isso que chamamos de humanidade começou há 2 milhões de anos. Foi quando um animal bípede, de cérebro grande, capaz de usar armas e dominar o fogo se multiplicou pelo mundo. Era o Homo erectus, um humano de feições amacacadas que deixaria dois descendentes antes de acabar extinto. Alguns dos erectus que saíram da África, sua terra natal, e foram viver no frio da Europa evoluíram até virar Neandertais. Os que ficaram onde tinham nascido acabaram dando origema outra espécie de grande macaco: nós, Homo sapiens. Foi há 200 mil anos. O fato de estarmos aqui até hoje não é grande coisa se comparado aos 2 milhões de anos que o erectus sobreviveu e mesmo aos 400 mil anos que o Neandertal aguentou. Mas, ainda assim, não foi fácil chegar até aqui. E isso só aconteceu por um motivo: aprendemos a sobreviver a uma das maiores crises econômicas de todos os tempos. E ela aconteceu há cerca de 12 mil anos, bem antes de o próprio dinheiro surgir. Sim, não precisater dinheiro no meio para que aconteça uma crise econômica. Existem vários jeitos de definir uma, mas vamos focar na mais essencial: elas acontecem quando não conseguimos mais produzir tudo o que precisamos para manter nosso modo de vida. Um pouco antes de essa crise começar, estávamos em pleno aquecimento global. E isso era ótimo. Tratava-se do fim da última Era Glacial, que tinha deixado meio mundo sob temperaturas abaixo de zero por 100 mil anos. Geleiras deram lugar a rios, paisagens brancas ficaram verdes, a quantidade de animais aumentou... Era um paraíso para grandes predadores. E esse era precisamente o nosso caso: armados até os dentes com lanças, atiradeiras, facas demarfim e um cérebro gigante, o Homo sapiens se firmava como o maior predador que já tinha existido. Havendo o que caçar, crescíamos e nos multiplicávamos à vontade. E agora havia bem mais caça do que na Era do Gelo. A abundância de vegetais também ajudava. Antes, catávamos as frutas e os grãos que apareciam de vez em quando e pronto. Agora, com solos mais férteis, o ser humano foi percebendo que podia ele mesmo plantar alguma coisa para ter o que comer nas épocas de caças magras.Não que estivesse fácil. Continuávamos obrigados à mesma vida nômade dos tempos glaciais. Montávamos acampamento, ficávamos até que os animais começassem a rarear, e aí era ir embora e tentar a sorte em outro lugar. Mas claro que não era bom viver sempre sob a ameaça da escassez. Tentávamos usar a cabeça para mudar as coisas, para fincar o pé em um lugar só.O arroz e feijão de certos povos dessa época que viviam no Oriente Médio era carne de gazela. Mas eles não saíam matando qualquer uma que encontrassem: preocupavam-se em caçar só os machos da espécie. Fazia todo o sentido. Num bando de 100 gazelas, bastava meia dúzia de machos para inseminar todas as fêmeas. Depois nascia uma nova geração inteira, e o estoque de comida continuava lá, bonitinho, mesmo depois de uma matança deslavada. Nobel de caça para eles. Só teve um problema: faltou levar em conta a teoria da evolução. Esses povos, que os cientistas de hoje batizaram de natufianos, preferiam os machos maiores, já que eles tinham mais carne. Burrada. Sobravam só os mirradinhos para as fêmeas – justamente os que elas rejeitariam em condições naturais (elas têm esse comportamento instintivo porque machos menores geram filhos pequenos, mais vulneráveis). Mas tudo bem: as fêmeas acabavam transando com eles mesmo assim. Aí vinha a geração seguinte, os natufianos chegavam lá e caçavam os menos pequenos. Ficavam só os nanicos. Em poucas gerações, o que sobravaeram mini gazelas, que não davam conta de alimentar os bandos de humanos.Esse é só um exemplo de como nossa sofisticação trabalhou contra nós. O fato é que apresença humana levou espécies à extinção, ou perto disso, em várias partes do mundo. Mas o problema mesmo começou depois. Por volta de 10 mil a.C., a temperatura do planeta soluçou de novo. O clima ficou mais frio e seco por séculos. Plantas e animais morreram. Nem bem nossa espécie tinha aproveitado o fim da Era Glacial e já estava numa gelada mais uma vez. A saída? Usar a cabeça de novo: que tal, em vez de deixar gazelas se reproduzindo livremente, aprisionar algumas na aldeia e fazer com que elas tivessem seus filhotes ali? Também seria uma boa abater os machos menores primeiro e deixar os grandes viverem tempo o bastantepara se reproduzir à vontade. Assim, as gazelas ficariam maiores a cada geração, certo? E plantar sementes? Por que não tentar isso em massa para garantir tudo o que era preciso de uma vez? Desnecessário dizer que ninguém saiu pensando coisas assim do dia para a noite. Mas ideias como essas foram borbulhando entre vários povos, cada um a seu tempo. Com o perrengue do resfriamento global, técnicas que tinham sido criadas nos tempos de bonança foram se desenvolvendo. Com o turbo ligado. Plantar sementes e tentar criar animais não eram mais um luxo (se é que um dia foram). Agora, fazer isso ou não fazer equivalia a escolher entre viver ou morrer de fome. Mas viria outra surpresa: essa época de vacas magras durou pouco, geologicamente falando pelo menos. Coisa de mil anos. Depois disso, o clima ficou bom de novo, com terras mais férteis e montes de animais pastando por aí. E agora? Acabar com essa chatice de plantar capim-guiné, ver boi abanar rabo e voltar aos tempos mais aventurosos das caçadas? Nem a pau. Cultivar sementes e criar animais já valia bem mais a pena àquela altura. As técnicas de agricultura tinham evoluído nos tempos duros. E agora, que o clima estava bom, em se plantando, tudo dava. A oportunidade e o talento se encontravam: para aqueles sujeitos, cultivar uma horta era como imprimir comida direto da terra. Algo mágico. E as criações de animais, então? Depois de gerações de cruzamentos entre os bichos mais carnudos, elas forneciam mais calorias que a caça jamais teve como prover – um boi ou um porco doméstico,por esse ponto de vista, são entidades tão artificiais quanto um computador. Depois de milênios reproduzindo só os mais gordos entre esses bichos, eles viraram espécies bem diferentes de seus ancestrais selvagens. Transformaram-se em usinas de carne. Se a mesma seleção artificial fosse feita com pessoas, os bebês chegariam a 100 quilos aos dois anos de idade – indigesto pensar nisso, mas foi graças a essas técnicas de criação que conseguimos comida para chegar até aqui. Com os vegetais não foi diferente. Trigo, cevada, milho, arroz, os pilares alimentícios da nossa espécie, nunca existiram na natureza, pelo menos não da forma como você os conhece. Esses vegetais são criaturas tão domesticadas quanto bois e porcos, fruto de seleção genética,de colocar só as plantas que melhor produziam grãos para se reproduzir, numa tentativa de produzir mais comida em menos espaço. Tudo por tentativa e erro, terminando num grande acerto. Claro que isso também não aconteceu de uma vez só. Cada população foi desenvolvendosua agricultura e sua pecuária de um jeito particular. Devagar e sempre. Mas nos lugares mais férteis as coisas foram bem rápidas. A região em torno das margens dos rios Tigre e Eufrates (onde hoje ficam partes da Turquia, do Iraque e da Síria) era uma delas. Formava a parte principal do Crescente Fértil, a região onde o cultivo de sementes e a criação de animais explodiu para valer entre 10 mil a.C. e 9 mil a.C. Era uma Nova York da época. Numa parte do Crescente, você tinha alguém plantando uvas e azeitonas. Cem quilômetros rio abaixo, uma criação de porcos. Mais para cá, uma de ovelhas e cabras. Mais para lá, uma de bois. Ao norte, fazendeiros cruzavam duas espécies de trigo-selvagem, quase sem valor nutritivo, e obtinham trigo de pão, o cultivo mais importante da história. "Essa diversidade toda convivendo bem perto permitia acesso rápido a basicamente tudo o que eles precisavam: carboidrato, proteína, óleo, leite, tração animal, fibras para tecer roupas", diz Jared Diamond, geógrafo e biólogo da Universidade da Califórnia(2). Você conhece o resto da história: sem ter de passar o dia caçando, a humanidade arrumou tempo livre para criar a escrita, a matemática, construir cidades... Mas essa é uma explicação simplista. O legado mais profundo da agricultura foi outro. Ela criou o dinheiro.

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