Capítulo 3

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Lia estava preocupada. Seu filho mais velho não tinha dormido em casa e não avisou para onde ia. Já tinha amanhecido e nenhum telefonema. Ultimamente, andava sentindo o tempo como uma bigorna sobre seus 42 anos. Costumava se sentir mais pesada, mais velha, quando as coisas saíam do controle. Ia à academia, realizava as tarefas do dia como se fosse uma caricatura de si mesma. Vinha acontecendo muito ultimamente, com as brigas se repetindo dentro de casa.

Alan era seu filho preferido. Nunca assumira isso publicamente, o que não quer dizer que qualquer um não pudesse perceber. Alan era bonito, amoroso, e sempre fazia questão de ficar ao seu lado. Eram cúmplices, e às vezes nem precisavam mais que fazer silêncio para saber que o outro precisava de ajuda.

Sempre desejou uma menina, e quando engravidou pela segunda vez, teve que se contentar em saber cedo que o segundo filho também seria homem. Leonardo era mais reservado, e desaparecia aos seus olhos às vezes, diante da clareza da presença de Alan.

Ricardo, seu marido, protestava quando percebia excessos de afetividade.

— Ele não é menina, Lia! Não estraga o garoto!

Ela não dava ouvidos. Sua alegria com o pequeno Alan era tanta que não se preocupava em ceder às suas vontades.

Quando Alan, porém, fez quinze anos, começou a dividir sua atençãocom os amigos da escola. Sentia ciúmes, e queria manter sob controle seus passos mais minuciosos. Depois de uma briga entre os dois, percebeu o exagero e procurou se acalmar. E não quer dizer que não se preocupasse sempre que o filho punha os pés para fora de casa, só encontrava maneiras de lidar com aquilo em silêncio.

Alan passou a manifestar uma preocupação incomum com a aparência, e seus trejeitos se efeminavam mais e mais. Estava cada vez mais claro que Alan era gay. Lia sentiu-se culpada, e não encontrava maneira de abordar o assunto com o garoto. A culpa era sua? Será que tinha estragado o filho? Quanto ele sofreria!

Foi nessa época que começou a frequentar a academia. Naquela manhã, no entanto, a vitalidade que conquistava sob os olhares de admiradores e os exercícios, tinha se esvaído. Sentia-se de repente velha, de repente feia, muito pesada.

Quando o telefone tocou, Lia correu para atender. O coração se iluminou com um raio de esperança.

— Meu filho!

O chão desapareceu quando a voz desconhecida do outro lado da linha comunicou que Alan estava morto.

                                                                        ***

O clima estava bastante abafado. O céu armava nuvens escuras até o horizonte, e não chovia nunca. A refinaria trabalhava a todo vapor, indiferente. Ricardo Villas-Boas descabelava-se pelo atraso no cronograma. Tinha uma reunião marcada para as oito da manhã, e às seis e meia já estava fechado em seu contêiner-escritório, repassando os pontos importantes. Desligou o celular e solicitou não ser interrompido até o fim da manhã, exceto em caso de urgência máxima. Queria se concentrar na mudança de estratégia para reverter o atraso.

Enfiou-se em papéis e só se ergueu outra vez para receber a equipe. Passou o trinco por dentro e durante duas longas horas, participou de discussões verborrágicas e intempestivas.

Em dado momento alguém bateu à porta. Demorou a atender, tinha insistido para não ser incomodado. Finalmente, como estivessem insistindo, abriu. Estava pronto para desferir os piores impropérios quando viu a face consternada do secretário. Algo grave e incontornável tinha acontecido.

— Você precisa ir pro Rio de Janeiro hoje, Ricardo.

— O quê?

— Seu filho, Ricardo. Seu filho Alan. Ele morreu hoje.

O secretário nem pôde dizer sinto muito. Ricardo pegou a carteira e as chaves, correu até o carro e acelerou para o aeroporto. Durante o percurso, tentou insistentemente telefonar para Lia, sem sucesso.

No guichê do aeroporto, teve a notícia de que não havia previsão de voo para o Rio de Janeiro nas próximas horas. O próximo voo só sairia em dois dias.

O telefone tocou:

— Filho! — era Leonardo — Estou no aeroporto filho. Preciso ir pra casa.

— Mataram o Alan, pai, mataram o Alan!

Só então pôde chorar. Odiou tudo o que se movia na sua frente. Queria destruir o próprio mundo de ódio, de pavor, de desespero, por sua inutilidade. Leonardo gritava do outro lado da linha:

— Preciso do senhor, pai, preciso do senhor...

Respirou fundo e tentou imprimir à voz um pouco de coragem.

— Papai tá indo pra casa, filho. Tudo vai ficar bem.

Leonardo se enfureceu:

— Nada vai ficar bem, pai. A mamãe tá em choque. O senhor não tá aqui. Quem fez isso com ele, pai, quem foi?

Ricardo era um autômato. Estava em choque.

— Estou chegando filho.

— Quando o senhor vai chegar?

— Não sei filho, eles não têm voo pra hoje. Não sei o que faço. Se pudesse estaria aí agora.

A voz de Leonardo tomou um aspecto mais cinzento. Lá fora, relâmpagos começaram a cortar o céu.

— Não acredito mais no senhor, pai. Minha vida inteira eu fiquei te esperando, e o senhor nunca chegou. Sempre trabalhando. Nunca participou de nossas vidas.

— Não diz isso filho, eu sempre amei vocês. Tudo o que faço é por nós.

— Mentira, você só ama o seu trabalho!

— Você tem que ser forte Leonardo.

Ficaram em silêncio os dois. Como uma súbita onda de lucidez que os envolvesse, calaram. Leonardo foi quem quebrou o silêncio, em tom formal.

— O sepultamento será amanhã às nove horas da manhã no cemitério São João Batista.

— Estarei lá. Prometo.

Desligaram. Ricardo implorou à atendente da companhia aérea que conseguisse um lugar em algum voo, mesmo particular. Conseguiram para ele uma vaga de carona no avião de um fazendeiro, que sairia às quatro da manhã do dia seguinte. Com cinco horas previstas de voo, chegaria ao Rio de janeiro às nove da manhã, horário exato marcado para o sepultamento.

Eu, InabalávelOnde histórias criam vida. Descubra agora