A Saideira

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Ela aperta o botão da descarga e o redemoinho formado na água leva seu vômito embora. Sua cabeça se afasta do vaso e sua mão, que antes segurava as mechas de seu cabelo, se abre, deixando que os fios mal cuidados escapem sobre seus ombros.

Mal cabe dentro do banheiro. Um cubículo onde há apenas um vaso e um chuveiro. Sem pia, espelho, ou qualquer coisa que se assemelhe a conforto. Conforto, na verdade, é uma palavra que passa longe dali. É só reparar na expressão de cansaço que parece fixa no rosto dela.

Após passar pela porta sanfonada, depois de cuspir no ralo o último resquício daquele gosto amargo, caminha meio tonta pelo espaço apertado que lhe resta. Em menos de um minuto passa por uma cama bagunçada, por um sofá velho e por um frigobar amarelado em cima de um balcão de madeira. As janelas são cobertas por cortinas de um tecido sintético azul, que ao toque revela ser plástico, e a porta principal, feita de alumínio, quase nunca é vista aberta, somente quando os mantimentos se esgotam e eles precisam sair.

— Tá melhor? — seu marido a pergunta quando ela retorna ao seu lugar no assento do passageiro.
O rádio em cima do painel toca uma música country enquanto um suvenir em forma de buldogue chacoalha a cabeça diante do movimento do trailer na estrada íngreme.

— Mais ou menos. — Ela meneia a cabeça.

— Essas curvas devem ter te deixado enjoada. — Ele aposta no óbvio — Prometo que chegaremos antes do anoitecer.

Ela observa o caminho pelo para-brisa enquanto ele dirige. Troncos secos e retorcidos tomam conta de sua visão. Alguns cortados, outros perfurados, mas todos mortos. Apenas um lembrete da agressividade com que estão lidando.

Quando adentram à cidade, após passar por um posto de gasolina abandonado, enxergam no silêncio a ausência de uma realidade que já não existe. Ainda lembram das luzes vermelhas em néon no letreiro do cinema, dos homens de negócio abaixando seus jornais para que pudessem olhar para as garotas que andavam de patins, dos blocos de carnaval que inundavam a avenida, da disco music que chegava até a calçada e tornava a espera nas filas da danceteria ainda mais afoita. Agora, precisam se contentar apenas com a visão de um cinema incendiado, de uma danceteria em ruínas e de cadillacs abandonados em estacionamentos.

Atrás do vidro da loja de hqs ainda há um Homem Tarântula feito de papelão em tamanho real, mas a sorveteria ao seu lado não teve a mesma sorte, restando apenas cinzas daquela que já foi a melhor raspadinha de chiclete da cidade.

É difícil enxergar o que se tornaram sem sentir um aperto angustiante no peito. Um dia pareciam ter o controle de tudo em suas mãos, no outro criaturas extraterrestres riscavam o céu com as luzes de suas naves. Muitos que receberam a notícia pelo rádio acharam que era só mais um episódio de Batalha nas estrelas, mas a realidade caiu sobre seus rostos de forma fatal. Os invasores não procuravam por diálogo, e ninguém que se atreveu a perguntar pelo que eles procuravam voltou vivo com a resposta. Mas mesmo sem espaço para dialogar com as criaturas, depois de dois anos de invasão, os humanos começaram a entender alguns de seus hábitos. Um deles, o que com certeza chama mais atenção, é o de que são nômades cíclicos, termo que foi inventado por pesquisadores que conseguiram montar um padrão nas localidades onde as criaturas apareciam. Ou seja, de tempos em tempos eles repetem os mesmos movimentos, de forma que se tornou possível saber onde eles estão e aonde estão indo.

Com essa informação em mãos, os humanos também se adaptaram. Muitos agora vivem em trailers onde atravessam rodovias e desviam das rotas dos invasores. Existem postos preparados nas cidades que fornecem mantimentos e gasolina para que as pessoas possam chegar até seu destino. É exatamente em um desses postos que aquela mulher e seu marido estão acabando de chegar, ao entardecer.

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