Andei nos limites do cemitério em meio a infindáveis quantidades de lápides. Parei ao alcançar aquela de trás da qual o estranho saíra.
Um enorme buraco se estendia abaixo, no chão. Sua profundidade era intimidadora. Mirava-o de certa distância, a poucos metros da beira. Olhei para a inscrição presente na grande lápide, mas minha curiosidade permaneceu insaciada, pois o texto estava escrito numa língua que não me era familiar. A julgar pelas proporções do mármore, e de sua imponência sobre as demais lápides, supus que algum sujeito importante estivera enterrado ali. Quando voltei a fitar a cavidade, sua profundidade havia curiosamente diminuído.
Despendi vários minutos vagueando pelo cemitério à procura do indivíduo com quem eu conversava, porém minha busca foi vã. Não havia nenhum sinal do homem. Logo, retornei para os arredores do solo cavado.
Para muito além das dependências do lugar em que me encontrava, o sol começava a emergir lentamente, cortando as silhuetas dos alpes; sua luz estava enfraquecida pela névoa densa. A manhã nascia timidamente, como se as trevas lutassem insistentemente contra a força poderosa da estrela flamejante. É claro que tudo não passava de delírios fomentados por minha mente, e que a ausência de vida dominava exclusivamente o local em que eu me encontrava agora, e não outro além dele.
De onde eu estava, ouvi um arfar a alguns passos atrás. Retirei instintivamente de meu bolso o revólver e apontei na direção de onde o som viera. Não havia ninguém ali.
Inadvertidamente, uma corda começou a emergir da cova e a deslizar como uma víbora até o chão, ao lado de meus pés, alcançando o solo num ponto um pouco adiante do qual eu estava. Sua extremidade puída começava a assumir a forma de um gancho e a corda se enroscava agora numa velocidade inacreditável ao redor de meu tornozelo, como num verdadeiro ataque defensivo de uma serpente ameaçada. Caí com uma força abrupta, de barriga, contra o chão de terra. O revólver prateado escapou de minhas mãos, deslizando para longe. Tentei alcançá-lo, mas era tarde. A corda me arrastava cada vez mais para próximo do abismo. A fim de detê-la e me firmar no solo, cravei minhas unhas na terra, mas uma dor insuportável começava a me dominar.
Lutei para não ser arrastado para a cova. Concentrei todas as minhas forças para evitar ser vencido pelo objeto que havia ganhado vida e me levava a um encontro com a morte.
Minha camisa se rasgara e a minha barriga começara a ser mutilada pela superfície áspera de um pedaço de concreto que estava sob meu corpo. Cedi à força com que a corda me puxava, e em poucos instantes eu estava caindo, sem parar, para dentro do buraco que havia sido cavado. Minhas costas atingiram o chão de terra com um baque oco e logo perdi a consciência.
***
Fui acordado de imediato pelo som de uma pá batendo contra algum ponto nas bordas da cova, alguns metros acima. Em seguida, chuvas de terra começavam a atingir minha face.
Era o coveiro. Estava encapuzado e olhava para baixo, para dentro do abismo no qual eu me encontrava. O homem certamente dera-me por morto, mas, de todo modo, achei aquilo tudo muito estranho. Não me parecia uma maneira adequada aquela com a qual o coveiro procedia. Embora eu o tivesse gritado em protesto – pois a terra e suas impurezas agrediam meus olhos – o homem continuou seu serviço. Ergui meu corpo, me sentando no chão, formando um ângulo de noventa graus. Tateei no escuro, à procura das paredes da cova. Não permitiria que meu fim fosse ali, naquele lugar inóspito e mortiço (o que é irônico, pois aquele era o destino de todos os seres da minha espécie, no fim das contas).
Firmei meu pé direito na parede pedregosa e encrespada do buraco. Comecei a escalar. A meio caminho da saída, minhas mãos vacilaram e tornei a cair com um baque contra o chão. Praguejei, arfando de dor. O buraco, por alguma razão inexplicável, adquirira uma profundidade anormal e opressora outra vez, se comparado ao que era até pouco tempo antes de me puxar. Voltei a escalar, cautelosamente, a fim de alcançar a luminosidade que me encimava. O coveiro havia se ausentado temporariamente. Entretanto, aquele lugar estava me pregando algum tipo de peça, pois quando eu estava prestes a alcançar a saída novamente, uma tampa de concreto se materializou logo acima de minha cabeça, envolvendo tudo ao redor com um véu negro.
Somente notei que cheguei ao fim de minha escalada quando meu crânio colidiu contra a pedra. Esmurrei o objeto, desesperado para sair daquele túmulo, e, para minha surpresa, o concreto se rachara com extrema facilidade. Guindei meu corpo para cima, com minhas duas mãos apoiadas nas beiradas da cova. Afastei o concreto e a terra para um lado, ganhando passagem, e estava imediatamente de volta à superfície. Não hesitei por um minuto sequer antes de correr. Saltei por cima da cerca de metal pontiagudo que delimitava o local, ao alcançar a barreira, e parti em disparada, de volta a meu lar. Procurei pelas chaves dentro do bolso de meu casaco. Abri a porta da entrada. Dirigi-me para o quarto e fiquei paralisado na soleira da porta, examinando meus pertences. De súbito, lembrei que deixei para trás, no cemitério, o revólver do qual eu tanto precisava para fazer o que sempre desejei fazer desde o começo: extinguir a existência conflituosa de minha alma.
Preciso conhecer o outro lado...
Corri novamente a todo vapor de volta ao cemitério, frenético. Ouvi passos ecoando pelas ruas no meu encalço, mas não me virei para verificar o que eram. Para meu infortúnio, o portão do cemitério já havia sido selado outra vez pelo coveiro. Comecei a escalar novamente a cerca.
- Ei, parado aí! – berrou uma voz atrás de mim.
Não respondi ao chamado; chegando ao topo da cerca, saltei, sentindo uma leve torção no tornozelo com o impacto de meus pés contra o chão. Fui apressadamente até a terra próxima do túmulo imponente do qual eu havia saído poucos minutos antes. Ouvi mais passos e escondi-me atrás da lápide. Aguardei. O coveiro contornava a orla do cemitério, vários metros à frente, distante do portão. Retirei do bolso traseiro de minha calça uma lanterna. Acendi.
Um brilho alvo iluminou os contornos do mármore...
Apontei-a na direção oposta, à procura de meu revólver.
Encontrei-o a poucos passos de distância de onde eu estava, onde eu o havia perdido pouco antes de ser engolido pelo abismo. Apanhei-o, mas o objeto escorregou de minhas mãos e deslizou para dentro da cova, que agora apresentava sua profundidade original. Desliguei a lanterna e saí de trás da lápide de mármore. Ia já vasculhar o buraco para recuperá-la, quando no portão do cemitério, vários metros à frente, pude distinguir a silhueta de um homem. Aproximei-me vagarosamente, observando-o com cautela. O homem estava paralisado. Uma viatura da polícia subia a rua, partindo.
Eu estava completamente sujo de terra e fedia à beça.
E a compreensão de tudo o que acontecera até então me assombrava e me deixava perplexo.
Alcancei o portão e segurei as barras de metal firmemente. Agora eu podia assimilar os traços do sujeito parado diante de mim. Fizera-me várias perguntas.
Aterrorizado, percebi que o homem era idêntico a mim em sua aparência.
Fiquei confuso, pois via a mim mesmo.
Do outro lado...
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Sonhos Mórbidos
Horror"Sonhos Mórbidos" é uma série de contos que retratam pesadelos vivenciados por Bryan Schultz (pseudônimo do autor), envolvendo acontecimentos curiosos e aterrorizantes.