A armadilha - Parte 1

72 3 41
                                    

Jovem e solitário, eu residia num pequeno flat de aspecto antigo e abandonado. Afastei as cortinas da janela da sala de estar para um lado, revelando uma visão melancólica da rua desértica. As vidraças estavam opacas pela névoa gélida. Era uma noite de inverno, e nenhum habitante da cidade sairia de seu aposento aconchegante por quaisquer motivos que fossem.

Não pude julgar o comportamento excessivamente cauteloso de meus vizinhos. A pandemia de um vírus mortal havia fugido do controle dos órgãos de saúde e das autoridades governamentais, e ninguém ousaria colocar em risco a própria vida.

Não obstante, chegara a mim uma carta de meu primo apresentando uma proposta de impossível recusa. Sem mais delongas, apresento ao leitor o conteúdo escrito tosca e informalmente:

Consegui fechar com Chapman um grande negócio. Trata-se de uma espécie de câmara que funciona como abatedouro para gados. É algo jamais visto antes por qualquer pessoa, você ficará de queixo caído!

Vovô está quase partindo desta para a melhor e nos deixará uma boa grana. Além disso, sei que você possui uma fazenda e seus negócios têm gerado bastante lucro, e com esta nova ferramenta sua renda irá triplicar, meu caro primo! Estou certo de que não irá perder a oportunidade de ser o jovem mais rico desta cidade, não é mesmo?

Encontre-me no Itsan Am Bu Sh Bar, que lhe explicarei tudo com calma.

Ciente de que ao tirar o casaco do mancebo e vesti-lo, saindo à rua, eu havia cometido um ato gravíssimo e imprudente, dada a situação de calamidade que o mundo estava vivenciando, decidi que valia a pena o risco para conhecer melhor sobre a proposta que eu recebera

- Vigia-te, homem! - exclamara o Sr. August, feirante português que tivera suas atividades interrompidas por oficiais devido à propagação de um novo vírus. Sua barraca havia sido duramente multada por descumprimento das medidas de isolamento social e de paralisação dos comércios, determinadas pelo prefeito para amenizar a disseminação do vírus. Não pude deixar de sentir certo pesar condescendente com relação àquele homem, pois ele necessitava da renda que obtinha para auxiliar nas despesas com medicamentos dos quais a esposa tanto precisava, devido a seu estado de saúde nada vigoroso. A pobre mulher sofria com asma e estava, como diriam os ingleses, in her last legs*.

Dobrei a esquina, andando na calçada que ladeava uma fileira de duplex de simetria extraordinária e de arquitetura arcaica. A rua era íngreme e pedregosa e, conforme se subia, uma curva acentuada se formava, terminando na esquina de uma ladeira. Lá, ao seguir meu caminho, entrei no Itsan Am Bu Sh Bar (nome demasiadamente excêntrico para um estabelecimento, na minha opinião). Além disso, o lugar funcionava clandestinamente.

À um canto do balcão, numa banqueta alta, esperava o homem que havia me escrito a carta que continha a proposta atraente. Sentei-me numa banqueta ao lado de meu remetente.

- Não sabe o quanto me alegra por ter aceitado o meu convite - disse o Sr. Trapman.

- Eu é que o diga, meu caro! - respondi. - Certamente, não perderia uma proposta como esta por nada.

- Certamente que não - concordou Trapman.

- Então... onde foi que encontrou esse tal Chapman? - perguntei.

- É um velho amigo meu. Conheci-o quando ainda trabalhava nas fazendas do vovô - respondeu meu primo. - Como você deve saber, vovô realizava grandes negócios com um rapaz. Trata-se de Chapman. O cara é um gênio! Você ficaria muito chocado, com certeza, meu caro primo, com suas invenções.

- Devo confessar que aquilo que você me escreveu me deixou realmente curioso. Do que se trata a "ferramenta"? - indaguei.

- Trata-se de um matadouro para gados, como eu o havia explicado na carta. As criaturas adentram a câmara, uma alavanca é acionada, e os metais começam a emergir das paredes. Então, as lâminas começam a descer em direção ao lombo dos animais.

Eu ainda estava confuso com a explicação de Trapman.

- Não entendi muito bem o funcionamento desta ferramenta - disse em resposta.

- Acho melhor você me acompanhar. Irei mostrar a você - disse Trapman.

Saímos à rua e passamos por uma quantidade variada de casas, dobrando, por vezes, alguns quarteirões; eu passara, mais uma vez, por uma infinidade de duplex simétricos entre si e antiquados.

Por fim, chegáramos a um prédio moderno, contrastante com as demais edificações antiquadas da avenida. Seus contornos estavam cortados pela luz do luar, que refletia sobre as janelas envidraçadas e límpidas.

Entramos no edifício e pegamos um elevador. Uma voz feminina e robótica anunciava as paradas conforme passageiros entravam e saíam da cabina, informando o número do andar.

Sétimo andar, anunciara a voz.

Saímos do elevador e caminhamos por alguns corredores. Por fim, paramos diante de uma porta metálica, que estava trancada. Trapman solicitara a um segurança que a destrancasse, com um gesto do indicador.

Adentramos uma câmara fria. Do lado de fora, na entrada, eu notara uma alavanca de ferro travada por uma barra de metal.

- Minha nossa! - minha voz ecoara nas paredes de metal.

Meus olhos correram por cada centímetro daquela espécie de sala. Nas duas paredes laterais, e na parede imediatamente à minha frente, frestas eram visíveis. Estavam dispostas de modo que cada uma estivesse perfeitamente alinhada às frestas vizinhas.

A um lado da parede à frente havia um novo elevador, porém este era de carga e sua última parada dava para os fundos do edifício, onde as cabeças de gado chegavam num caminhão.

- Vê aquele elevador? - disse Trapman, apontando-o. - Lá embaixo, os animaizinhos são conduzidos um a um até ele. Lá, também, uma alavanca é acionada e, quando o elevador alcança este andar, eles adentram esta câmara. O elevador desce automaticamente ao piso térreo, mas somente se as patas dos animais deixarem o piso do elevador para entrar na câmara. E assim eles vão sendo enviados cá para cima, sucessivamente. Mas é claro que podemos acionar o elevador para que desça, independente da presença de um animal, para que possamos dar manutenção eventualmente.

- Genial! - exclamei.

Andei em volta da câmara, aturdido, inspecionando cada detalhe do espaço.

- E quando os animais estão aqui, como são mortos, digo...? - eu havia começado a dirigir a pergunta à Trapman, quando me virei e notei que ele estava parado do lado de fora, segurando a porta.

- É o que você descobrirá agora - dissera o homem, com um brilho perverso no olhar.

A porta se fechou com um baque forte e, no momento seguinte, ouvi o ruído da lingueta selando-a.

Eu caíra na lábia daquele maldito.

***

Sonhos MórbidosOnde histórias criam vida. Descubra agora