QUATRO

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JUNHO

Ana Lívia odiava hospitais.

Odiava o silêncio, a falta de vida neles, o branco em todas as paredes, as pessoas tristes que lotavam os corredores, os gemidos das pessoas que estavam doentes e os bips irritantes das máquinas de assistência a vida. Ela odiava o fato de que estava cheia de fios e tubos. Ela odiava saber que seus últimos dias seriam ali. Ela sabia que seriam, mesmo com todos ousando dizer o contrário. Ana Lívia odiava ver os olhos vermelhos e inchados de sua mãe, que não conseguia parar de chorar um segundo sequer, mesmo que tentasse. Odiava ver o pai calado, andando de um lado para o outro no quarto, tentando arrumar uma solução para um problema que não havia solução alguma. Ela estava quase se odiando, por fazer as pessoas que tanto amava sofrerem por ela.

Por insistência dela, Marcos Paulo não havia parado a vida para ficar com ela no hospital, o que era um alívio para a garota. Mesmo assim, quando as aulas dele acabavam, ele corria para o hospital, sentava ao lado da cama e segurava a mão de Ana Lívia durante toda a madrugada. Era o único intervalo de tempo onde ela conseguia se sentir em paz. O único momento onde não precisava se preocupar se estava destruindo a vida de alguém com sua morte. Porque Marcos Paulo era novo e iria seguir em frente depois que ela se fosse. Ela sabia disso e havia feito o garoto prometer. Isso acalmava o coração dela. Ana Lívia não podia pedir que os pais prometessem isso, mas esperava que eles não se despedaçassem depois que ela partisse.

Ela agora observava o namorado, que estava todo torto, adormecido na cadeira. Ela olhou para as mãos entrelaçadas. Mesmo dormindo, ele não havia largado a mão dela. Era bom saber que se morresse, ele estaria ali segurando sua mão. Os cabelos dele estavam bagunçados, como sempre. Os óculos estavam largados na mesinha ao lado da cadeira e as olheiras dele estavam cada dia mais escuras. Mesmo que ele não estivesse ruim como os pais da garota, também estava sofrendo por ela, ao seu próprio modo. Ele estava usando a correntinha que ela havia dado para ele de presente, pelos dois meses de namoro comemorados nesse mesmo quarto de hospital, algumas semanas atrás. Ela também estava usando o presente que havia ganho dele, um par de brincos em formato de estrelas. Ana Lívia sorriu ao se lembrar do que o namorado havia falado ao entregar-lhe os brincos. O lembrava dos olhos dela.

Ana estava feliz. Não preocupava muito a morte iminente. Ela havia amado e havia sido amada, não era isso que todas as pessoas passam a vida procurando? Amor, felicidade e compreensão. Ela havia encontrado essas três coisas no curto tempo que estava tendo. Ela amou Marcos, amou a mãe e o pai, amou os amigos e sabia que havia sido amada de volta. Ela foi feliz com eles também. E havia encontrado a compreensão em Marcos.

Ela era grata por ter tantas pessoas incríveis rodeando sua vida e era grata por ter alguém segurando sua mão. Por ter Marcos Paulo, mas especificamente, segurando sua mão.

O garoto se remexeu na cadeira e abriu os olhos, encontrando uma Ana Lívia acordada o encarando com intensidade.

- Oi, meu amor. – Ele disse, com a voz grogue. – Você deveria estar dormindo, recuperando as forças... – Ele desenhou círculos com o dedão nas costas da mão dela. – Por qual motivo está acordada?

- Não conseguia dormir. – Ela sorriu para ele, achando graça da resposta óbvia.

Ele a observou, procurando algo errado. Os cabelos estavam desgrenhados e a pele permanecia pálida além do normal. Os lábios estavam arroxeados e os olhos estavam fundos, assim como as bochechas. O cateter ainda estava no nariz e ela respirava tranquilamente, apesar do sibilo. Ele encarou os olhos dela e o esboço de um sorriso genuíno apareceu no rosto dele ao ver algo que não via a algum tempo já. As estrelas estavam de volta. Ele permitiu que a esperança brotasse no peito.

- Se eu deitar aí com você e te fizer um cafuné, você promete dormir? – Ele observou enquanto os lábios finos da namorada se abriam e levantavam num sorriso.

- Prometo.

Marcos Paulo se levantou da cadeira que havia tomado como sua cama durante o decorrer do mês e empurrou gentilmente o corpo de Ana Lívia para o lado, se deitando com quase metade do corpo para fora e passando um braço por baixo da cabeça da garota, mexendo nos cabelos dela. Ele estava desconfortável, mas não diria isso a ela. O garoto podia aguentar mais uma noite mal dormida.

Ela não demorou muito a dormir.

#

Ana Lívia acordou novamente um tempo depois, Marcos Paulo estava dormindo tranquilamente ao lado dela. A garota estava sem ar, não conseguia respirar.

Ela sabia que não seria uma morte tranquila. Sempre soube. Ana se recusou a se mover e a tentar gritar, mesmo quando tudo em seu corpo berrava para que ela se debatesse e chamasse por ajuda. Queimava, era desesperador. Mas ela não ia deixar que ele acordasse, não se pudesse evitar. Ela não queria que ele a visse morrer, não queria que ele a visse sofrendo.

Ela pensou nas coisas boas que viveu. Lembrou da água do mar batendo nos pés, das noites insones, enquanto trabalhava em alguma ideia que ela sabia que não levaria para frente pela simples razão de ser prazeroso fazê-lo. Se lembrou das tardes que saia mais cedo de alguma de suas aulas para ir esperar por Marcos Paulo na porta da sala dele. Se lembrou das vezes em que havia caído e ralado o joelho e de todos os beijos que o pai lhe dava quando ela parava de chorar. Se lembrou das risadas e do choro que compartilhava com a mãe vendo uma das muitas comédias românticas dos anos 90.

Enquanto sua consciência se esvaia, Ana sabia que estava em paz.

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Marcos Paulo acordou no dia seguinte e sentiu um pedaço de si mesmo ser arrancado quando viu que a garota que amava nunca mais acordaria.

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Assim as estrelas morrem | ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora