O Gordo da Oitava

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O Gordo da Oitava

Denise Ranieri

Ele tem quase dezesseis. Olhos profundos e claros, cabelos castanhos e médios, puxando para o cinza pardacento, e uma falha na sombracelha esquerda, diria um observador mais atento. O nariz não é grande nem pequeno, nem bonito, nem feio, normal.

As maças do rosto são rosadas, com um aspecto saudável, vibrante, e sardas quase imperceptíveis. A boca é pequena, pequena até demais para o seu tamanho, num formato de um morango simetricamente perfeito. Não gosta que reparem, menos ainda que comentem, mas acha que tem o umbigo saltado demais em comparação ao das outras pessoas. Mora com o pai, a mãe, a irmã mais nova e a avó num apartamento de três quartos, com vista para um parque cuja grama nunca está suficiente baixa. Na sacada tem uma calopsita que já ganhou dois concursos nacionais. Na escola já reve vários apelidos, mas foi na oitava série que um pegou mesmo: O Gordo da Oitava.

Quando algum amigo arruma confusão, é só dizer vou chamar o Gordo, que a molecada se espalha que nem formiga em formigueiro pisado sem querer. O Gordo da Oitava só não entende uma coisa: nunca brigou na escola, nem na rua, nem em lugar nenhum, portanto não sabe de onde veio essa fama de brigador, mas não acha ruim não. Ele prefere que ninguém saiba, mas toda quarta, depois da novela das oito, prepara um escalda-pés para a avó. Uma vez a tia o convidou para assistir a um filme, ele não gostou muito da ideia, "filme de mulher" - debochou em pensamento - "deve ser Titanic", mas a tia havia recém-separado do marido e ele ficou com pena de dizer não. 

Era história de um garotinho chamado Totó, que ficara fascinado pelo cinema da pequena cidade onde morava... zzzzzzzzzzzzz... e desenvolveu uma bonita amizade com o velho projecionista local... zzzzzzzzzzzz... ia dormir, certeza! Acontece que aconteceu o que se imaginava inacontecível, o menino não despregou o olho da tela nem por um minuto, e umas cinco ou seis vezes segurou com força um gosto estranho que insistia em descer gasgando pela garganta, mas como ótimo e improvisado disfarce, tirou sarro da velha cara da sua tia, que enxugava os olhos com os últimos kleenex da caixinha. O filme chamava "Cinema Paradiso"  , e ele assistiu muitas outras vezes, sozinho, para não correr o risco de ser flagrado com o olho inchado, e ter que inventar uma conjuntivite de última hora.

A sensação que aquele filme despertou na alma do menino, foi determinante para alguma escolhas feitas durante sua vida, especialmente no dia que seu pais lhe chamou para uma conversa de homem pra homem, e disse que na sua idade já trabalhava, portanto, ficaria satisfeito se o filho arrumasse alguma colocação. O gordo da Oitava não teve dúvida, sabia na ponta de língua o que queria, mas quando mencionou as palavras diretor, produto, cineasta, seu pai soltou uma guargalhada, dizendo que o menino não tinha nem idade e nem preparo pra isso, mas diante da certeza do garoto, providenciou uma vaga de atendente da Blockbuster instalada na esquina do prédio onde morava no baixo Leblom.

O Gordo da oitava trabalhou na locadora durante seis meses e nesse tempo apaixonou-se platonicamente por algumas meninas que levavam para casa os seus filmes prediletos. Podia ser alta, baixa, gorda, magra, mais velha, bem mais velha, com ou sem óculos - só bigode não  tolerava - que ele passava a acompanhar, locação por locação, devolução por devolução, chegando até a anotar numa caderneta o nome de algum filme que a garota tivesse levado, para retirar depois, caso não houvesse assistido. Foi nessa época  que aconteceu um episódio marcante na sua recém-começada vida profissional. Numa tarde de quinta-feira, a locadora estava praticamente vazia, quando entrou aquele monumento de mulher. Na verdade não parecia uma mulher, o menino calculava umas duas ou três ali, bem na sua frente, que por acaso ocupavam o mesmo corpo. Ele organizava a prateleira dos filmes de suspense., quando aquela voz rouca perfurou os seus ouvidos como uma bala perdida:

‒ Pode me ajudar? - pediu ela, inclinando-se para ler alguns títulos, e segurando com certo pudor a barra da minisaia.

O Gordo engoliu saliva, pigarreou discretamente, e torceu para a sua voz não sair distorcida, como acontecia às vezes ao atender o telefone e era confundido com a sua mãe:

‒ Pois não! - a sua voz saiu grave até demais, num tom quase teatral.

‒ Tem "A Noiva do Chuck?" - ela perguntou, sem desviar os olhos das opções da prateleira.

‒ Vou verificar -  respondeu prontamente o Gordo, tentando fingir naturalidade. Afinal, ela era só uma mulher, quase igual as outras, não fosse o tamanho da sua boca - nunca tinha vista nada igual... - das suas pernas - coisa fenomenal... - e aqueles olhos verde? - nem a Maria Fernanda...

‒ Viu, aproveita e vê se tem o "Massacre da Serra Elétrica III?" -  completou ela, interrompendo as divagações do menino, e voltando-se para a leitura de uma sinopse.

Foi nessa hora que o Gordo sentiu o golpe, Balde de água gelada direto na cara, agora entendia o significado daquela expressão. Estava sozinho com Ela na locadora, seus amigos dariam a vida para esta ali, alguns paparazzi também. No entanto, diante daquelas péssimas escolhas, o Gordo chegou a sentir até um certo mal-estar, e, como nem passe de mágica, perdeu completamente o interesse naquela que era a musa de todos. Que diabos! Por que justo ela, a Daniela Cicarelli, tinha que ter tamanho mau-gosto para escolha de filmes?

 

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