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A noite é fria. Ao fitar as nuvens cinza espreitando o céu, Leonor deduz chuva, o que é um problema. Somada as gotas que costumam cair, é de praxe que o vento as acompanhe. Talvez esta situação seja até confortável, tendo em vista a possibilidade de se deitar sobre a cama quente, acompanhado de um café da mesma temperatura. No entanto, esse não é o caso. Por aquela cidade, perambula o medo, o terror que adentra as casas e se convida para um chá.

Toda vez que chove, os mortos se levantam. Aqueles corpos que há muito foram enterrados, lançados em suas covas e postos a devorar a terra pelas bocas, ouvidos e narizes. Eles parecem se­mentes quietas, caladas, a espera de alguma substância que os ajudem a crescer. Quando chove ― e só a água da chuva é capaz disso ― eles levantam dos seus aposentos e ficam em pé, retos, com postura de soldado. Sobem e imitam estátuas. É preciso que o vento que vem com a chuva assopre seus corpos para conseguirem andar e, a partir daí, tomarem seu rumo.

Qual rumo que o morto toma? Isto depende muito do rumo que o morto quer tomar. Alguns, mesmo após o vento, ficam parados, em pé, olhando o chão e esperando a chuva acabar, com outros acontece o mesmo, só que sentados. Mas a maioria desponta nas ruas e busca saquear as casas, pegar os alimentos, as bebidas e tudo que nutra seu corpo decomposto.

As pessoas da cidade sabem da existência desses "monstros". No entanto, acreditam que o motivo da caminhada noturna dos mortos pelas ruas tenha outro objetivo que não seja o furto. Quando um morto vive, alguém tem que morrer.

Já houve casos na cidade em que isso acontecera de fato. Um homem baixo e barrigudo surpreendeu-se por ver um morto andando em sua casa, e se estivesse com mais medo, provavelmente estaria vivo agora. Contudo, ao ver o zumbi carregando sua comida, o baixo deu uma de herói e o atacou. Alguns segundos depois, esse mesmo homem morreu e sem luto que o acompanhasse, uma vez que sua família já havia perecido.

Não acontecera apenas esse caso. O primeiro dia em que os mortos levantaram, foi também o dia em que mais pessoas morreram por eles. Talvez por dois motivos principais: a falta de informação e o desespero. Por não ter nenhum caso daquele registrado, as pessoas não sabiam quais medidas adotar, e já que se tratava de mortos-vivos, o desespero tornou-se evidente. Ora, se fossem outras pragas mais comuns ao ser humano, eles, ao menos, teriam o fator "calma". Mas aquilo estava fora das suas compreensões.

O tempo passou e a população se adaptou àquela situação. Uma das primeiras medidas foi cimentar os cemitérios. Muitas pessoas concordaram e outras foram contra.

Se puser cimento no cemitério, onde vamos enterrar nossos mortos? ― indagavam.

Se não fizermos isso, mais pessoas morrerão ― respondiam.

Isso é um desrespeito às memórias dos nossos amigos e familiares que se foram ― bradavam.

Então você prefere respeitar quem morreu? Os mortos não nos respeitam!

No fim, entupiram o chão de cimento e, como medida aditiva, a população fortaleceu a segurança das casas, adicionando vários ferrolhos e cadeados nas portas.

A primeira medida não surtiu efeito. De alguma forma, a chuva escorreu pelo corpo do cimento como se ele a sugasse. Deslizando naquela massa sólida, o encontro com a terra fazia florescer a alma dos mortos. O cimento acima não os impedia, pois eles passavam como um espectro. Sobre o chão tornavam-se matéria. Antes disso escorriam feito fumaça.

Mas até que as portas eram firmes. Os mortos penavam para destruí-las e quase sempre não conseguiam, mas quando surgia a oportunidade, entravam enfurecidos e acabavam com tudo, levando o que conseguissem levar.

Leonor, de 16 anos, é um jovem talentoso que não costuma exibir seu talento. Vive para si, introvertido em todo canto que passa. O único lugar de liberdade está nos papéis. Não por que gosta de pintar ou de escrever. Não. Na verdade, ele possui um hobbie até que peculiar para aquela região. Gosta de fazer origamis. Tão diferente é esta arte por aquela cidade que quando lhe perguntaram o que seria isso, "Origami", ele teve que traduzir: Dobraduras. Quando pequeno, ele se encantou com o Tsuru ― uma ave sagrada que vivia mil anos ― que o tio havia feito, então pediu que ele o ensinasse. Desde então, Leonor começou a dar formas ao papel.

Neste fim de tarde, Leonor observa o céu da janela como se tivesse prevendo que a tragédia de sempre se repetiria. Mas não era isso. Ele imagina se dá para imitar aquela imagem, se de alguma forma aquelas nuvens conseguem ser reproduzidas em origami. Mas não queria que fosse de um jeito superficial. Se fosse assim, ele já sabia como fazer. Ele queria encher o papel de detalhes, pôr vida na folha, a ponto de quem olhasse imaginar se daquela superfície poderia sair chuva ou se poderia, quem sabe, trovejar.

Ele despenca a cabeça sob o peito.

― Isso deve ser impossível ― sussurra. É assim que costuma conversar. Em sussurros. ― É. Vai chover.

As nuvens escuras trazem consigo um ar de tristeza. Se Leonor não soubesse o que aconteceria, talvez pensasse sentir um arrepio de mau presságio. Mas ele sabe. Ele escuta um ronco forte vindo do céu. Será que um papel faria isso? Pensa.

A janela do quarto de Leonor fica do lado da casa, com vista para um pequeno beco que faz fronteira com a casa vizinha. É uma janela de vidro. Sua família não se preocupa com a possibilidade de os mortos-vivos invadirem-na, pois o quarto estar um andar acima.

Apesar de tudo, é dia de chuva. E dia de chuva com vento. Chuva que levanta os mortos, vento que os anima. Leonor dá um sorriso triste, expressão um pouco paradoxal, mas que acaba fazendo sentido.

Leonor pega um papel e desce a escada sem que seus pais vejam, caminha sorrateiro até a porta do fundo, tira os ferrolhos, os cadeados e, de modo silencioso, fecha a porta atrás de si. Corre pelo quintal e pula o muro. Encontra a rua vazia, como era de se esperar. Ainda não choveu, mas o céu já está fúnebre, e de súbito o som de uma sirene repercute pela cidade, o que indica apenas uma coisa:

Os mortos.

As primeiras gotas começam a cair sem pressa e logo as outras se juntam em um alvoroço, estourando no chão. Leonor vê um dilúvio e sorri manso.

Lépido, pega o papel e faz um origami de Tsuru.

Se fosse para morrer, que fosse assim: ao lado da forma de sua primeira criação. Só assim ele apetecia da morte.

Ele fica em pé, de olhos fechados, segurando o Tsuru e sorrindo enquanto chora.

A chuva é a lágrima.

O Tsuru é o sorriso.

Ele espera.

Espera a sua morte.

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