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A chuva escorre pelo corpo de Leonor e se acomoda no chão de terra. Ele olha para o horizonte, o dilúvio anuvia sua visão. Nada transparece. Apenas as gotas que mais parecem com uma infestação de agulhas prateadas caindo do céu.

Ele fecha os olhos. Entrega-se àquela sensação. Sente o vento. Inspira profundo, cuidando para não inalar água pelo nariz. Em breve, os corpos sedentos por morte vão dar de encontro consigo. E ele não se importa. Não quer vê-los. Não quer ver nada. Quer permanecer de olhos fechados até que não consiga mais abrir. A própria escuridão já lhe significa muito. Ele sente algo. Uma espécie de aura estranha parece lhe cercar. Estipula se não são os mortos.

Deve ser ― pensa.

E espera.

Espera.

Mas nada.

Contrariado, Leonor abre os olhos sem pressa, arrastando-os contra as gotas que escorrem por suas pálpebras. A imagem de uma pessoa pequena encolhida no meio da estrada, de repente, toma sua visão. Ela aparenta ser uma criança. Está de costas para ele com a cabeça voltada para o chão. Alguma coisa tomou sua atenção, pois mesmo com a chuva e o vento, ela detém-se em sua tarefa.

Leonor preocupa-se. Tudo bem ele estar ali, mas a criança não deveria sofrer o mesmo que ele escolhera sofrer. Ele anda com passos largos almejando tirá-la depressa da rua. Toca no ombro dela, e ela se vira como se tomasse um susto. Mas quem, de fato, pula para trás, assustado, é o próprio Leonor, ao ver que a criança encolhida na rua não passa de uma morta-viva.

Pelos cabelos compridos e pela estatura do rosto, Leonor conclui que ela é uma menina. Além dessas características, outras menos apreciáveis se destacam no rosto da garota ― desde os olhos fundos até os dentes amostra pela bochecha. O corpo desfigurado, a feição morna e ferida, o vestido branco completam a sua imagem. Por um instante, Leonor se assusta, tem medo, mas logo depois está parado de novo com o mesmo ar de antes. Ele caminha em sua direção e se senta na frente dela, buscando o que tanto a interessava naquele chão de terra, agora úmido pela chuva. Examina o que há sob os seus pés sujos e nota um desenho. Desenho com formas e dimensões ― mesmo que enigmáticos ―, não um amontilhado de rabiscos aleatórios, como era de se supor.

Leonor se interessa.

― O que é isso? ― ele indaga.

Não há respostas. A garota fita Leonor. Ele, surpreso, mas também desinteressado no assunto, nota que nenhuma atitude ofensiva surge dela. Ele responde ao seu olhar com os olhos taciturnos, mas gentis. De súbito, é tomado pela sensação de que, de alguma forma, aquela cadáver em sua frente é sua conhecida. Cerra os olhos e inclina o corpo em sua direção. A garota morta parece sentir o mesmo, pois acompanha os gestos como se fosse o reflexo um do outro. De fato, é isso. Os dois se conhecem.

― Clara, é você? ― ele indaga com um pouco de alegria e curiosidade.

Ela fica boquiaberta e depois leva os olhos reclusos até as mãos de Leonor. Nota um origami. Um Tsuru. E, se não fosse a situação putrefata do seu rosto, podia-se dizer que ela estava sorrindo.

Para Leonor, tudo havia começado na ponte. Ele estava parado, fitando o horizonte como parte do ritual. Tinha noção da distância que estava do chão e já se preparava para o ato. Limpava a mente, inspirava fundo e colocava um sorriso triste na feição. Quando, de repente, seu corpo se movimentava em caminho oposto ao que desejava. Alguém pegou sua mão e o puxou a força sem nem mesmo emitir uma palavra. Era uma garota pequena que aparentava ser mais nova do que era.

Ela andou quase o quarteirão todo de mãos dadas com Leonor, calada, com o semblante firme. Os seus passos fortes diziam que ela estava muito brava. Leonor a olhava pelas costas, boquiaberto, sem saber ao menos o que acontecia de fato. Quando deu-se por si, já estava na frente de sua casa. Nisso, um caminho se cumprira sem nenhuma menção de fala. A garota o encarou, brava, depois se virou e foi embora, deixando Leonor desorientado no passeio.

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