Clara, olhando o Tsuru na mão de Leonor, deixa de desenhar no chão de terra. Ela sabe que está morta. Mesmo em vida, sabia que essa realidade lhe afetaria mais rápido que imaginava. Chegou a suspeitar que seu fim fosse ser um daqueles zumbis movidos por chuva e vento que assombram a cidade. Um dos motivos de suas suspeitas se dava por conta dos rumores que escutara.

Uma viúva, uma vez, contou que seu falecido marido arrombou sua porta e correu até seus braços. Ela estava apavorada. Pensava que a qualquer instante poderia se juntar a ele no céu, mas o zumbi só fez abraçá-la. Céticos contrariavam a mulher:

― Eu já vi um morto desses que anda por ai. Já vi vários, na verdade. Você disse que reconheceu seu marido, mas todos os mortos que vi tinham a mesma cara. Nem consegui diferenciar se eram homens ou mulheres. Só sei que são monstros. Como você conseguiu saber se era o seu marido?

No que a mulher respondeu:

― Quando ele me abraçou, todas as dúvidas caíram por terra. Soube naquele instante que ele era o marido que eu tanto amei por todos esses anos.

A descrença na história da mulher aumentou quando ela disse que após abraçá-la, seu marido encolheu-se num canto e tornou-se uma planta. Planta que, segundo ela, está até hoje em sua casa.

Bem que Clara queria se tornar uma árvore. Aquele ser que vive parado, que aprecia o silêncio, e mesmo com todo som do mundo que grita em seus ouvidos, ficam lá, imóveis, como se nada as afetasse. A primeira vez em que Clara teve seu interesse despertado foi na infância.

Desde sempre gostava de desenhar. Achava aquilo mágico. Como se ela pudesse copiar os objetos do mundo e transformar os traços em seus clones. Imaginava-se adulta, desenhando um carro caro em um papel grande. Faria com tanto afinco e com tantos detalhes que quando acabasse sua obra, andaria pela cidade com o automóvel chique que criara.

Seu pai a ensinou a desenhar. O primeiro desenho de sua vida fora uma árvore e desde então não conseguia fazer outra coisa com a mesma perfeição. Só pintava o que lhe agradava. E o que lhe agradava? Justamente o que sabia pintar.

De tanto desenhá-las, Clara começou a sentir empatia pelas árvores. Quando seu irmão subia na mangueira no quintal de sua casa, e, por acidente, quebrava um galho, ela se enfurecia a ponto de querer bater nele. Ela gostava de sentar nas raízes, sob a sombra daquele pé e, quando dormia, parecia sentir o colo de sua mãe, cantando uma canção de ninar.

Ela ficou tão abismada com as árvores que, além da empatia, passou a encará-las como se fossem uma prima distante. Uma daquelas em que seus pais se encantavam pelo comportamento e diziam:

Está vendo como ela é comportada e inteligente? Se espelhe nela e nos dê orgulho.

Clara passou a ter inveja da árvore.

Repudiava.

Depois quis sê-la.

Desejou com mais força quando descobriu sua doença terminal.

As árvores eram fortes. Pareciam que nunca ficavam doentes. Seus troncos eram firmes. Suas folhas eram saudáveis. Não havia maldade nelas. Não havia guerra. Verdade que elas produziam frutas a fim de seduzir os animais que se alimentavam delas. Usavam dessa estratégia para que as sementes fossem espalhadas em outros cantos pelos bichos. Isso garantiria que sua espécie proliferasse. De certa forma, era uma competição ― quem produzisse melhores alimentos, viveria mais ―, mas não era feito a guerra dos humanos. As Mangueiras, os Jambeiros, o Jamelão, os Sapotizeiros alimentam outros vivos. A guerra, em contrapartida, é famélica.

Quando Clara percebeu Leonor na sua classe, floresceu nela um sentimento de admiração. Ele parecia uma árvore. Quieto. Quando respondia a uma pergunta, quase sempre optava por um aceno de cabeça ao invés da fala. Era uma árvore. Só podia ser. Porque, como uma árvore, sua respiração era suave. Porque, com seus dedos-galhos tateavam folhas. As folhas das árvores oxigenavam, produziam vidas. As folhas de Leonor também pariam formas, seres de matéria branca que possuíam rostos, asas e patas. Além disso, as árvores são tão boas que não maltratam, do contrário, são maltratadas.

Leonor era uma árvore. Só podia ser.

Clara olha Leonor. O reconhece e logo deduz o motivo de ele estar ali, parado na rua, em ocasião de chuva e de vento. Se, pelo rosto, Clara pudesse transparecer seus sentimentos com mais clareza, então ela mostraria a tristeza por Leonor achar estar se colocando em perigo. Não obstante, ela também demonstraria alegria, pois, depois de muito tempo longe dele e da vida, a saudade foi saciada pela sua presença.

― É você? ― Leonor indaga sem resposta. Ele analisa o rosto desfigurado dela. ― Entendo. Parece que não dá para falar, não é?

Ele olha para baixo. Clara percebe aquele mesmo ar que ele tinha na ponte. De alguma forma, ela pode entender o que se passa com ele como se uma luz atravessasse seu corpo e refletisse na sombra o seu pesar. Ela, com um leve toque no pulso de Leonor, chama sua atenção. Logo em seguida aponta para o chão.

Escreve três números.

999

No ângulo de visão dele parece que os números são outros. 666. Questiona-se se os zumbis firmam algum pacto para voltar à vida e assombrar a cidade, mas depois de alguns segundos antes que a chuva desmanchasse o que foi escrito, ele percebe.

― Você conseguiu tudo isso?! ― ele diz, surpreso. ― Mas porque não fez o último?

Não há resposta. E novamente ele faz outra dedução.

― Não deu tempo, não é?

Ele comentava sobre os origamis. Os mil desejados por Clara na esperança de que, quando findada a tarefa, seu desejo se realizasse. Como se os papéis fossem uma espécie de lâmpada do Aladim.

Pelo que está escrito no chão, Clara havia conseguido realizar 999 origamis de Tsuru. E, como dizia a lenda milenar japonesa, só quando completados os mil, seu desejo se realizaria.

Leonor inspira fundo, novamente, fechando os olhos no processo.

― Entendo ― sussurra para si. ― Tome. Desdobre e dobre novamente.

Ele entrega o seu Tsuru, que até então estava sendo protegido, mesmo que pouco, pelas costas de sua mão.

― Mas seja rápida. Senão a chuva pode acabar de destruir o papel.

Ela obedece. Quer rabiscar um pedido de obrigado no chão, mas isso demanda tempo.

Leonor está disposto a abandonar seu plano. Desde o início, imaginou-se morrendo com o Tsuru na mão, a primeira dobradura que aprendera a fazer. Não se lembrava de outro plano de morte assim. Será que ele tinha o papel em mãos para se lembrar do tio, aquele que o ensinara sobre o seu talento? Ou era por causa daquela garota? A garota dos mil Tsurus.

Ele a olha, enquanto ela faz os origamis.

Ela é linda.

Mesmo com a pele pútrida, os olhos sombrios e a aura negra que a envolve, ela é linda.

Enquanto faz o origami, ela é linda.

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