Capítulo dois

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A fumaça que cobria a casa dos Sanders não era comum logo numa manhã de terça, e as filhas que acordavam e sentiam o cheiro de queimado sabiam que o pai tentou usar o forno tecnológico, e falhou mais uma vez.

Quando a mais nova desceu a escada com os olhos sonolentos e o mascote da família em mãos, o cozinheiro desastrado tentava inutilmente espalhar toda a névoa que havia se instalado e escondia a cara de decepção que a mãe fazia olhando do batente da entrada.

―Talvez você devia ter tentado fazer torradas, como qualquer um faria―a filha adolescente falava com sarcasmo, enquanto assistia o show com os outros pelo batente.

O restante talvez não entendia o motivo de ele toda vez tentar fazer o café da manhã e falhar miseravelmente. Mas era bem claro para o senhor Sanders toda vez que o silêncio da noite chegava e o travesseiro bem macio cobria a vergonha de seu rosto, ele lembrava de onde veio, como saiu e o que disse pela última vez naquele lugar. As palavras de sua mãe ecoavam pelo emaranhado de sua consciência.

―Fugir daqui é o melhor jeito de sobreviver, meu filho. Somos esquecidos nessa terra de ninguém, não existe príncipe no cavalo branco que possa nos salvar.

Então seguindo o conselho da falecida, ele fugiu e lutou com todas as artimanhas que conhecia. Enganou muita gente para estar ali, porém ele tinha o dom para vendas e não demorou muito para conseguir seu emprego estável e uma família linda. Um ótimo disfarce para a verdadeira pessoa que escondia bem longe da luz.

E nessa manhã quando olhou para o espelho, viu o que lutava para que não vissem, todos do seu passado diziam que seus olhos eram iguais o de sua mãe e carregar uma parte dela era um defeito. Para se esquecer disso, tentou entrar mais no papel do que nunca e mais uma vez usou uma tática infalível, o pai desastrado que não entendia nada de cozinha.

Não seria dessa vez que seria descoberto.

―O fraco é o que desiste, e não é hoje que deixarei de tentar, crianças.

O restante revirou os olhos, era mais uma vez que ele queimava a comida e era mais uma vez que ele falava aquilo.

Arrumando a cozinha, eles escutavam a caçula contando sobre seu sonho, ninguém realmente prestava muita atenção, contudo quando ela falava algo com animação respondiam no mesmo tom para não decepcioná-la. Quando finalmente se sentaram à mesa com uma refeição decente, a mais velha olhou para o celular pela primeira vez e finalmente viu, a notícia que da porta para fora de suas casas, causava a maior confusão.

―Carlos Gosh morreu ontem à noite―falava enquanto o olhar era puro choque e desespero.

Até pararam de comer, e logo a face de medo tomava conta para que o clima se pesasse.

Demorou alguns segundos para que alguém falasse algo, e aquilo assustava a mais nova que não compreendia a gravidade de situação. A resposta veio da mãe que agora tinha o olhar determinado:

―Se necessário, vamos nos mudar daqui para nossa segurança.

Do outro lado da mesa, o rosto tenso do pai tentava demonstrar a mesma determinação.

🔺🔻

O clássico céu cinzento cobria os cabelos cheios de poeira de Marcus que voltava de mais uma madrugada de trabalho na fábrica. Mas apesar de tudo o que o cercava, ele ainda tinha um sorriso no rosto, pois aquele era o dia do aniversário de sua esposa e depois de muito tempo juntando dinheiro, ele conseguiria dar um presente tão especial quanto ela era pra ele.

Seu objetivo era marcado pelo dia em que passeavam pelas ruas com as lindas lojas que completavam todo o cenário perfeito para uma caminhada no dia em que os dois ganharam folga, quando de supetão a esposa parou em frente a vitrine que tinha o pingente que havia conseguido prender sua atenção. Era uma criança que tinha pedrinhas brilhantes nos lugares certos, ela olhava como uma criança olha para o doce antes do jantar, no fundo sabe que não pode ter.

E finalmente havia conseguido o valor suficiente para presentear e no caminho até a loja nem mesmo percebia os olhares atravessados que recebia enquanto caminhava. Viu a mesma vitrine e seus olhos brilharam quando viu que o pingente ainda estava lá.

Quando entrou na loja, as vendedoras já se colocavam atrás das bancadas, preparadas para caso algo acontecesse.

―Bom dia, gostaria de comprar o pingente de criança que tá na vitrine―a animação era tanta que nem mesmo percebia a face debochada com quem falava―Hoje é aniversário da minha esposa e uma vez quando passamos pela loja, ela viu e gostou muito.

As mãos da vendedora saiu do botão que aciona os alarmes por um momento para se cruzarem sobre o balcão de vidro.

―O senhor sabe quanto custa?

E foi aquela pergunta que o acordou para realidade e agora sua animação se esvaziava e olhava ao redor, e via todos voltados a ele, como se fosse uma presa deliciosa para vários leões famintos.

―Sei, e tenho dinheiro aqui comigo.

As notas amassadas que havia retirado com tanto orgulho do seu cofre improvisado antes de sair de casa, agora eram vistos com descaso pela moça que nem ao menos havia as contado.

―Senhor, não sei onde conseguiu esse dinheiro, mas certamente ele não é bem vindo aqui.

Nesse momento se passou na mente de Marcus todos os dias em que ficou o dia inteiro na fábrica, suando e pensando no dia em que finalmente conseguiria comprar o presente para sua esposa. Sua alegria havia desaparecido a muito tempo e sabia que se insistisse, provavelmente iria sair dali com algemas nos pulsos.

Na volta para casa, nem mesmo sentia as lágrimas gordas escorrendo pelo seu rosto e quanto mais avançava, mais via a diferença. As ruas de lá eram mais encardidas, as pessoas não sorriam umas para outras como as de lá sorriam, não haviam vitrines tão bonitas como as de lá, mas ali era seu lar.

Quando abriu a porta, não conseguiu esconder o rosto inchado para Merida que se arrumava para o trabalho. Porém não conseguiu esconder o sorriso, ela ainda era tão linda como na primeira vez que a viu.

―Feliz aniversário, princesa.

Pelo reflexo do espelho, ela viu e abriu os braços para que os envolvesse. Foram poucas vezes que havia visto o marido chorar, mas já sabia que só podia o confortar naquele momento.

Não demorou muito quando ele contou a ela, ainda abraçados e as lágrimas encharcando o colarinho de seu uniforme.

―Sabe que não me importo com presentes, Marcus―ela disse, limpando os olhos dele com os dedos calejados―O que acha de usarmos esse dinheiro para comprar um bolo bem bonito de uma loja bem longe daquela que usa glacê podre?

O rosto do marido se iluminou, e se aprontava desajeitadamente para ir na confeitaria mais famosa da cidade e a esposa ria ao fundo com os passos atrapalhados que ele dava.

Ela quase não o alcançou antes que fosse embora:

―Se der, talvez devia comprar testes de ovulação, quem sabe não conseguimos tentar hoje?

E assim foi o dia de Marcus, enquanto ela trabalhava, tentava fazer o prato favorito dela e deixar a casa arrumada. E quando finalmente ela chegou, não foi a mesma animação que ele viu antes dela sair. E a pergunta veio como um tapa:

―Ouviu alguma coisa hoje?

Conhecia aquele tom, era o mesmo que usavam para quando falavam sobre aquele lugar. Não era muito apropriado para uma comemoração.

―Não, vim da confeitaria direto para casa.

Se ele tivesse prestado um pouco mais de atenção enquanto estava na fila, teria ouvido os vários murmúrios sobre o que havia acontecido na noite anterior.

E a notícia veio como um soco. O aniversário de Merida estava oficialmente arruinado.

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