Era um dia como qualquer outro na Rua dos Cornos. Pouco trânsito na estrada tomada pelo barro das chuvas, muita fofoca na boca dos velhos que ficavam nas calçadas, e várias casas conseguindo a proeza de se manterem de pé mesmo tendo sido tão mal projetadas.
Este último fato talvez fosse o mais notório. Aquelas casas, com suas formas assimétricas e esquisitas, lembravam trabalhos em grupo da época de escola quando cada integrante faz sua parte separadamente e aí todos juntam depois.
Mas, em meio a esses fracassos da arquitetura, havia uma residência até que simpática, vamos dizer assim. Era contornada por um muro alto feito de tijolos alaranjados e retangulares. No centro da fachada, um grande portão cinza pelo qual se acessava a simples casinha amarela, mais comprida do que larga e com telhado em forma de V.
Mesmo tão básica, era uma mansão se comparada ao resto da vizinhança. O que não significava que fosse da admiração de alguém. Pelo contrário: aquele espaço comumente era visto com maus olhos, em razão da dona da casa que, para muitos, era a desgraça em forma de pessoa.
Dídala, o seu nome. E sua má fama estava relacionada à imensa fragilidade da sua paciência. Não tinha o menor saco para gente lerda, preguiçosa ou dramática (ou seja, meio mundo).
Perdia a paciência até com ela própria. Mas, geralmente eram os outros que a deixavam uma pilha de nervos, ou pelo menos era essa a sua percepção das coisas.
Certa vez, numa manhã de segunda-feira que já se aproximava do meio-dia, lá estava ela preparando o almoço da família. As temperaturas vulcânicas do clima e do fogão obrigavam a presença de um ventilador na cozinha, mas ainda assim o suor insistia em escorrer, grudando seus fios ruivos pela testa e pelo pescoço.
O semblante irritadiço que apresentava era unicamente por conta do calor infernal, pois trabalhar, dentro ou fora de casa, era o que mais revigorava o seu espírito. Quase vermelha como a própria blusa, ela mexia a feijoada numa panela que mais parecia um caldeirão.
A enorme colher de pau ia de um lado para o outro, calmamente, até que...
— Dííííídala! — gritou Fábio fora da casa, de frente para o portão.
Tão estrondoso foi o berro que Dídala, assombrada, fez a colher bater com força no interior da panelona, derrubando no chão o futuro almoço. Por sorte, voaram apenas alguns pingos quentes em sua roupa, mas todo o resto daquele feijão preto estava pelo fogão e pelo seu chão de cerâmica branca.
— Desgraçado! — ela vociferou com uma ira de cerrar os dentes. Em seguida, ainda na cozinha, berrou até com mais intensidade que o marido: — O que foi, hein!?
— Vem aqui fora, rápido! — respondeu ele num tom de quem estava para perder a vida.
— Esse traste só vive trazendo problema... — murmurou enquanto corria em direção ao portão interior. Ao abrir este e depois o exterior, perguntou apreensiva: — O que foi?! O que foi?!
— Nada não — disse ele, entrando com um sorriso meio triste. — Só queria que você abrisse pra mim mesmo.
— O quê?! — Arregalaram-se subitamente os olhos castanhos da esposa. — Você é idiota por acaso?!
— Poxa, amorzinho. Eu sempre trabalhei tanto por nós e nem uma gentileza você quer me fazer? — perguntou, com um olhar penoso como de uma criança.
— Ora, mas rapaz! Falando assim, parece até que eu sou uma vagabunda que passa o dia todinho com o rabo pra cima no sofá! — ela respondeu indignada. — Juntando com o trabalho aqui de casa, eu tenho dois empregos e você só um, viu?
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O Cabaré da Dídala
HumorPor conta da recente demissão do seu marido e da excessiva preguiça da sua irmã, Dídala é levada a aceitar que a sua casa seja transformada no primeiro cabaré da Rua dos Cornos. Mesmo com auxílio do filho inteligente do casal, o estabelecimento enfr...