Éster era uma bela e bem protegida cidade-Estado. A floresta ao sul, que eu percorria agora, tinha poucas trilhas, e nenhuma delas era feita para grandes grupos de pessoas. A geografia ao redor da cidade a fazia parecer mais um forte do que um ponto comercial, cercada por florestas densas ao sul e oeste e por um rio ao norte. A maioria do comércio vinha do leste e norte, e nem mesmo os nativos se aventuravam muito fundo nas árvores. A densa folhagem tornava difícil se orientar pelo céu e o caminho por entre os troncos era no mínimo tortuoso. Felizmente, eu tinha um faro e um senso de direção melhor que a média, pensei, dando um sorriso azedo.
Assustei-me ao ouvir os miados frenéticos de Gato. Como de costume, a viagem de ida fora muito mais demorada que a de volta; eu já estava em território familiar. O dia amanhecia e eu me aproximava do abrigo do filhote, que ficava um pouco longe (de uma perspectiva humana) da nossa casa. Ele parecia nervoso. Talvez estivesse com fome.
— Sou eu — anunciei minha presença, apesar de saber que ele já sentira meu cheiro. Gato pareceu ficar mais alarmado, e lutou selvagemente contra a coleira improvisada que o prendia à árvore — Você vai se enforcar! — exclamei, anormalmente preocupado com o animal.
Desprendi-o e ele saiu disparado, correndo em direção à casa. Só então percebi que havia algo errado no ambiente. O sol já saía, mas a casinha de pedra continuava fechada para a noite, como se Eleazar houvesse dormido demais — algo que ele nunca fazia. Nenhum barulho escapava pelas janelas, tampouco. Subitamente nervoso, corri atrás de Gato, ultrapassando-o e, ao parar frente à casa, me forcei a bater de forma despreocupada, para que Eleazar não pensasse que eu estava desesperado para pedir desculpas pela discussão de ontem à noite, caso estivesse ouvindo.
— Pai? — perguntei, incerto. Não houve resposta. Abandonei minha fachada relaxada e arranquei a maçaneta da porta, abrindo-a por dentro. Parei ainda no umbral, estupefato, assaltado pela multitude de cheiros que permeavam o lugar. Quando consegui me adaptar o suficiente para captar a cena ao meu redor, foi como se o veneno que me mantinha vivo tivesse abandonado minhas veias.
A casa, normalmente impecável, estava uma bagunça.
O gigantesco relógio de madeira que ocupava uma porção significativa da parede fora despedaçado. A sala estava totalmente revirada, a mesa de vidro quebrada e o sofá, rasgado. Verifiquei os quartos e estes não estavam muito melhores; o de Eleazar era uma bagunça irreconhecível, nenhum móvel intocado, o telefone pendendo do gancho como se ele o tivesse soltado no meio de uma ligação. O meu, nos fundos, estava mais arrumado, mas com manchas de sangue que despertaram em mim partes iguais de desejo e náusea. Meus joelhos ameaçaram ceder sob meu peso e eu me agarrei à parede para me firmar. Semeadores, percebi. Sem tempo para sentir medo, inalei fundo o cheiro do sangue desconhecido, ignorando o veneno que inundou minha boca, e me agachei na familiar posição de caça. Estava trêmulo, mas pronto. Parti com rapidez, deixando a casa para trás com uma sensação de abandono.
— Garoto? — a voz hesitante de Dazol me arrancou de meus devaneios. — Você está tentando matar este peru duas vezes?
Olhei para a ave semi-depenada em minhas mãos, e depois para meu colo cheio de penas selvagemente arrancadas. Percebi que me perdera em lembranças enquanto aprontava o jantar.
— Não — respondi. — Acho que estava distraído.
— Você é bem rápido para alguém que está distraído — resmungou o velho mercenário em tom de desaprovação, mas eu podia ouvir seu coração acelerado de onde estava. Esperei não tê-lo assustado muito, seja lá o que tivesse feito.
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Senhor da Floresta
FantasiAo encontrar uma garota em busca de vingança, o espírito perdido de Erwin deve decidir entre ajudá-la e encontrar a si mesmo ou perder-se para sempre. TW para possível violência gráfica.