Velha

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4 de maio de 2020.

Boa noite.


Estou escrevendo porque, literalmente, não tenho nada melhor pra fazer.

São meia-noite e doze minutos, sinto que me esqueci, mas não lembro de nenhum trabalho escolar para entregar tão cedo e lavei a louça antes de me deitar. Meus cotovelos estão cansados de segurar meu corpo ou telefone na cama todos os dias e o tédio está em patamares assustadores.

Desde que ouvi "look around, look around how lucky we are to be alive right now" no musical Hamilton, entendi que estamos, constantemente, vivendo a história. Sendo pessoas insignificantes ou não, esse período fará parte da história estudada futuramente, só que, agora, sabemos. Mesmo sendo descoberta uma vacina milagrosa distribuída em escala mundial, já está marcada na história como pandemia que ocupou o maior território em tempo mais curto.

Não estou assustada com o vírus. Não estou. Deveria estar, posso morrer, familiares podem morrer, milhares de pessoas estão morrendo conforme digito cada palavra. Mas há tanto mais para se ter medo que isso não me assusta. Talvez devesse.

Eu já tinha tantas preocupações enchendo minha cabeça que, vai ver, não quis deixar entrar mais uma.

Sinto falta do antes, claro que sinto, sinto falta de uma rotina, de não ter que preparar minha comida, de me sentir produtiva, de usar roupas de verdade, de pintar meu rosto por padrões sociais de civilidade que consequentemente me fazem sentir que estou tentando. Sinto falta de ouvir musica. Mesmo na curta caminhada de casa até o ponto de ônibus e vice-versa, fones de ouvido poderiam isolar o mundo externo sem eu me preocupar demais. Em casa, não ouso. Posso ser chamada e ouvir sem fones é grosseria. Podem soar motivos irrelevantes ou exagerados, mas não gosto, não aproveito o vídeo ou música que estiver vendo sem fones.

Para uma pessoa relativamente solitária, também descobri que eu sou um saco.

Extremamente entediante e sem sentido, não me recomendo.

Não sei o que gosto de fazer pra me divertir, não sinto que mereço me divertir, simplesmente passar o tempo. Vejo meus objetivos como sem sentido e idiota.

Eu deveria ser um robô programada para nada além do que precisasse. O que é irônico, porque não me sinto como alguém sem sentimentos de forma alguma, apenas queria que eu fosse... Embora, já houvesse tido vezes em que não senti absolutamente coisa alguma e, tenho que dizer, o vazio também não é tão reconfortante. 

Há alguns anos, eu escrevia por gostar. Eu me sentia uma artista, futura escritora, poetiza promissora... Mas, pra ser justa, já me disseram essas coisas. "Tu tem alma de poeta", minha professora mineira de literatura do primeiro ano me disse quando mostrei minhas rimas que chamava de poesia. Mostrei a ela a procura de validação oficial. Se alguém com diploma em Literatura Brasileira me dissesse que sei escrever, talvez significasse que eu, de fato, sabia escrever. E, quer saber? Talvez eu soubesse. E mesmo que eu fosse péssima e simplesmente soubesse encontrar rimas simples para emoções comuns, eu gostava. Eu preenchi... Posso me atrever a dizer, três dúzias de cadernos que chamava de diários, mais pelo fato de eu rabiscar algo ali pelo menos uma vez por dia. Muitas vezes eram letras de músicas, pedaços de sonhos, citações, talvez o tipo de coisa que se postasse em redes sociais, mas eu não me arriscaria a exibir ao mundo o que se passava na minha cabeça, além do que, ter um punhado de folhas que eu dissesse colocar rabiscos da minha alma ali dentro... Soava bonito.

Parei de escrever quando comecei o ensino médio. Um ensino médio mais puxado que a maioria, inclusive.

Antes, o fundamental tinha esse tempo vazio que eu preenchia das formas mais aleatórias, mas sozinha. Ter amigos não era- não é algo que eu saiba fazer tão bem. Subitamente, isso pareceu sem sentido até que talvez uma ou duas vezes eu tivesse escrito algo bonito pra mim e deixei por aí...

Eu também gostava de ler bastante. Acima de onde estou, há duas prateleiras de livros. Do sétimo ao nono ano, li os seis livros de Harry Potter, os cinco de Percy Jackson mais alguns especiais, li Instrumentos Mortais, Peças Infernais, Divergente, li Eragon, Trono de Vidro, li a moda dos livros do John Green, li Orgulho e Preconceito, deixei metade de dois livros menos conhecidos do Stephen King sem terminar, Diga Aos Lobos que estou em casa... Alguns mais, menos conhecidos ou sem trilogias... Eu gostava bastante. Lembro-me da primeira vez que terminei 400 páginas em um dia.

Parei.

Sei que ler livros é bom, mas não vejo mais graça.

Quando achei alguma brecha de tempo, eu me apaixonei por musicais, teatro. Ainda acho incrível, para ser sincera. A atuação de dezenas de atores e o trabalho de músicos a prova de erros de gravação e o resultado de mais tantos envolvidos em meses de treino, tudo para uma exibição de arte em que o momento faz ser ainda mais genuína... É, eu gosto disso. Mas, mesmo assim, não procuro mais.

Vi dezenas de séries, talvez uma centena, mas não iria tão longe... Músicas, livros, teatro, cinema, entretenimento. É arte, é claro que é. Mas eu não me entretenho, não sinto entretenimento.

Eu quero chorar.

Eu quero o esforço e a dor do choro. Talvez porque até mesmo a raiva é melhor que o nada, e, mesmo assim, ela queima. A raiva queima e brilha e deixa cinzas que esfriam rápido e mancham muito.

Ah, fodam-se as analogias.

Me sinto presa e não é por estar em casa, é por estar em mim, porque eu sei que a quarentena só me fez passar mais tempo comigo, e, como eu disse, eu sou um saco.

Eu sou um saco e posso passar horas aqui digitando pensamentos sem sentidos no bloco de notas, mas eu vou ter que parar em algum momento e... Eu não quero pensar. Não quero.

Não quero pensar em como eu tenho dezenove anos e sou relativamente bem nova, mas sinto ter jogado minha adolescência no lixo, sozinha, triste e pensativa, sem nem sequer deixar algo bom. Em pensar que eu sou um investimento ruim e que o meu sonho mais ambicioso é medíocre porque eu não ousaria me decepcionar. Não quero pensar em como ainda vou enlouquecer e surtar tantas vezes e que logo vou ser adulta e ser responsável pelo que eu não me sinto responsável, além de estar, por algum motivo, machucada ou quebrada, sem trauma ou dificuldade nenhuma. Eu não tenho por que ser assim e eu sou.

Não quero pensar nesse medo que eu tenho há anos, há uns seis ou cinco anos... De continuar sendo eu pelo resto da minha vida!


Eu fiz 19 anos nessa quarentena e já me sinto velha, acabada, sozinha e sem motivo pra esperar.

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