Carta ao Vazio

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11 de julho de 2020.

Meu namorado me disse pra escrever uma carta pra ninguém em específico, só gritar meus problemas pro vazio visível a quaisquer estranhos aleatórios online.

É uma boa ideia, convenhamos.

Mesmo que meu peito doa e vozes sussurrem na minha cabeça que nada que eu fizer vai adiantar porra nenhuma e que tudo não tem sentido e que a minha escrita não vale mais a pena ser lido, fazendo de qualquer leitor um idiota entediado.

Eu escrevia quando era mais nova. Escrevia qualquer coisa, musicas, piadas, acontecimentos, pensamentos, sonhos, pesadelos, citações ou só rabiscos preenchendo mais de 24 cadernos de diferentes espessuras que, por algum motivo, ainda os deixo empoeirar em cima do meu guarda-roupa. Eu fazia por que gostava, decorava as páginas com rabiscos ou simplesmente acreditava que o que eu fazia era bom e belo e um investimento para uma futura escrita produtiva no futuro. Mas que merda isso é agora, já que nem fanfic básica eu consigo escrever, que dirá redação ou ante projeto de poesia bosta.

Não sou boa nisso. Talvez eu nunca tivesse sido, na verdade, ou talvez eu fosse e, por algum motivo, minha habilidade escorreu pelas minhas mãos como água rasa...

Não sou esquizofrênica. Na verdade, nem sei o que é classificado pela OMS como esquizofrenia, sei apenas que há referências sobre pessoas ouvindo vozes. Quando eu digo que ouço vozes, não são realmente vozes de outras pessoas, é essa voz minha mesmo, a que pensa em português no meu interior mental, a que lê o que eu leio e pensa o que eu penso, a voz que só eu escuto. Ela é má. Amarga e me impede de fazer a maioria das coisas, mas como eu poderia possivelmente discordar? Ela sou eu, é o que eu penso. Ela diz que minha escrita é fraca, amadora e simplória, é a mesma conotação lógica de eu dizer que é o que penso de mim mesma.

"Não seja tão dura consigo mesma", por que não? É o que eu penso, como eu paro de pensar o que eu penso? Alguns dizem que dá pra controlar e eu não entendo. Não entendo como se forçar a pensar alguma coisa, lendo ela repetidamente? É o mesmo que ler um roteiro em vez de falar por si mesmo e, não me entenda mal, há ótimos atores no mundo, mas não é deles que gostamos e sim de suas habilidades, não é mesmo? Ou Johnny Depp não seria recontratado mesmo depois de provas de violência doméstica, porque sendo um bosta ou não, o cara é um ator maravilhoso. E tem também os outros centenas de atores que não fizeram atos tão ruins ou atos tão bons, mas a vida deles não é da nossa conta de qualquer forma.

Eu deixei claro nas minhas últimas sessões de terapia que a minha família é o que há por trás de tanta ansiedade. Não quero culpá-los pelos meus próprios pensamentos, é claro, afinal, também existe o sistema social que nos rodeia, definindo que tipo de pessoa merece prestígio e o que é valorizado no sistema educacional e o que não é.

Eu aprendi a falar antes de completar um ano, a ler antes de completar 4, acabei me ensinando inglês sozinha com 11 anos, desenvolvendo o conhecimento do idioma até atualmente. Com 10 ou 9 anos, no meio do tédio eu criava equações de primeiro e segundo grau para passar o tempo, no primeiro ano, a diretoria tentou convencer minha mãe duas vezes a me diexar pular para o segundo ano. Não vou dizer que eu era um prodígio porque ninguém nunca me disse isso, eu era apenas uma criança que sabia um pouco mais que as crianças a sua volta. Mesmo que eventualmente eu tivesse alguma dificuldade em uma matéria ou outra, meus professores afirmavam, em um consenso mútuo, que eu sabia bastante, que mesmo que eu não soubesse, eu tinha mais que a capacidade de aprender. Isso era refletido nas minhas notas e meus colegas também reconheciam isso vez ou outra. Minha família também... Ninguém nunca disse que notas altas eram equivalentes ao meu valor como pessoa, mas era a única hora em que eu sentia pontadas em orgulho dos professores ou da família. Não da minha mãe específicamente, mas da minha avó ou tios também... Não os culpo, eu mesma sentia uma antecipação pensando... Que futuro de orgulho e prestígio me espera se a minha inteligência vale mesmo tanto quanto eles dizem.

Não vale.

Não é o suficiente.

Mesmo que, com 6 anos eu estivesse a frente de outras crianças de 6 anos, com 16 eu estava no mesmo nível, ou mesmo abaixo de alguns, o que, pelo padrão pré estabelecido, me fazia sentir a baixo de todos.

Foi aí que começou uma espécie de cobrança a qual eu nunca tinha conhecido, uma "você sempre conseguiu atingir o que era esperado e já mostrou ter capacidade, então, por que não consegue? Por que só não vai lá e pede ajuda ou faz o mínimo?". Como você pede ajuda quando você nunca precisou e isso significaria admitir que você não é tão boa, tão importante ou valiosa quanto antes.

Tanto quanto há 200 anos atrás era certo e esperado que qualquer jovem renomado se casasse para manter uma linhagem legítima, sempre foi certo e esperado a minha graduação, formatura. Mesmo que eu completasse uma faculdade, a verdade é que não seria nada além do esperado. Haveria uma comemoração, é claro, porque é um costume comemorar formaturas, mas não seria realmente algo importante, incomum ou particularmente valioso, seria tão importante como uma formatura de ensino fundamental. O que eu fizesse a partir do meu diploma é o que importaria.

Depois de semestres completados, o que importaria é o que eu faria a partir disso. Conseguiria um emprego? Seria um bom? Se não, o que eu faria para me manifestar?

É... É lógico.

Só que... Minha própria mãe me disse uma vez que não acreditava que eu terminaria o ensino médio tão fácilmente e ela estava certa. Pois então, se eu serei essa falha que nem fez o esperado e talvez termine o ensino médio com mais de 20 anos, quais minhas esperanças para faculdade?

Não sou mais apaixonada por estudo nenhum e sei muito bem que qualquer dificuldade ou nota baixa poderia me fazer deitar no chão do campus, chorando sobre a inutilidade da minha existência. Porque eu não tenho essa resiliência básica que todo mundo já desenvolveu. Eu seria um atraso na minha própria turma mais uma vez por mais semestres, seria uma extensão do que acontece agora e, além do mais... E se eu nunca conseguisse terminar o curso? Quanto dinheiro, expectativa, investimento não teria sido gasto? E eles diriam que me amam porque é o que a nossa sociedade latino-americana diz que famílias devem fazer, mas eu não traria nenhum orgulho, nada especial, nenhum acréscimo, apenas decepções, investimentos ruins e... Nada.

Acordar todo dia e saber que eu não sei e não consigo fazer nada é... Bom, é um saco.

Saber que já fazem cinco anos de terapia e medicação e que mesmo assim essa é a condição que eu me encontro é desesperador.

Honestamente, a vida não me atrai mais, mesmo que os pingos de esperança ou autopreservação me impeçam de realmente me matar. Porque eu não quero continuar aqui sendo isso, eu não quero o que foi escrito pra mim, eu não quero ter esse cérebro falho, eu não quero meus próprios pensamentos e emoções e atos. 

Eu não quero odiar minha própria consciência.

E eu não sei quando isso para.



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