O que você falou, pirralho?

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Acordo animada, hoje é o dia em que vou tirar a foto para o passaporte, aproveito também para treinar um pouco mais da língua de sinais americana, eu estava um pouco enferrujada

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Acordo animada, hoje é o dia em que vou tirar a foto para o passaporte, aproveito também para treinar um pouco mais da língua de sinais americana, eu estava um pouco enferrujada. Lilian me passou o contato de uma colega americana que é surda para que eu conversasse com ela via Skype durante a semana. Não esperava que sua amiga seria uma doce senhorinha, chamada Laura. Passo também na escola para deixar algumas questões resolvidas com Flávia. Meu coração estava triste em deixar meus alunos, vou sentir tanta saudade que nem sei dizer, espero que no final tudo se resolva.

— Bom dia, feiosa — meu irmão diz ao procurar os sucrilhos na prateleira.

Ele disse? Espero ter escutado certo.

— O que você falou, pirralho? — faço questão de falar lentamente para que entenda.

Ele simplesmente ri, que saudade de sua risada, parece que faz anos que não a escuto. Sem saber o motivo, caio na gargalhada junto dele.

— Qual o motivo de tanta felicidade a essa hora da manhã — meu pai pergunta ao me dar um beijo na testa.

— Só estávamos conversando — digo, em um sorriso malicioso para meu irmão.

Apesar da animação que acordei pela manhã, o dia não saiu como esperava, primeiro a foto do passaporte ficou horrível, minhas orelhas ficaram maiores do que parece, meu cabelo armado estava dividido ao meio, e parece que meu rosto era feito de sardas e eu nem tenho tantas sardas assim. Ah e tinha algo preso em meu dente, deu para ver de longe na foto. Aff, eu nunca saio legal nessas fotos. Quando minha mãe me levou para fazer a foto da minha identidade, eu tinha quatorze anos e usava um aparelho freio de burro. Agora vocês já imaginam como a foto saiu. Toda vez que preciso entregar a identidade a alguém eu fico roxa. Minha mãe não podia pelo menos esperar eu tirar o aparelho para fazer a identidade?

Depois de ir a policia para tirar a foto do passaporte, passo na escola para resolver algumas questões com Flávia. O dia estava frio e chuvoso, ainda bem que fui com minhas galochas pink para me proteger da chuva. Mas não adiantou nada quando um filho da mãe passou correndo de carro em uma poça de água e me encharcou inteira. E o dia estava apenas começando.

Flávia não estava muito contente com minha saída da escola, mas fiz questão de tranquiliza-la ao contar meu plano com as estagiárias. Depois de escutar o choramingo de Flávia sobre não saber o que fazer com a escola, vou para a sala de aula me despedir de meus alunos, chorei, chorei igual um bebezinho quando nasce, chorei igual ao dia que descobri que Luna gostava do mesmo garoto que eu na quinta série. Sempre fui muito emotiva e era difícil esconder quando eu chorava, pois eu ficava com o rosto enorme e vermelho. 

Depois de resolver todas as questões na escola e de dizer aos meus alunos que eu voltaria para abraça-los, dirijo para casa aos prantos, não sabia que iria ser tão difícil assim deixar minha vida aqui no Brasil, eu espero me adaptar lá fora. Tenho alguns dias ainda para me organizar e organizar minhas malas. Ao invés de levar algumas coisas daqui, como roupas de frio, decido guardar um dinheiro para comprar por lá, ainda mais que lá é bem mais gelado e neva. E eu não possuo tanta roupa quente assim.

Ah a neve, não vejo a hora de conhecer a neve.

Chego em casa e tiro as roupas ensopadas e resolvo tomar um banho quente, deixo a água escorrer pelo meu corpo enquanto penso na viagem. Lilian não me deu muitas informações da empresa, nem sobre onde eu vou ficar. Sei que é uma firma de advogados e que é familiar. Mas a pergunta que ecoa em minha mente é sobre quem eu vou assessorar, isso ainda é uma incógnita, toda vez que converso com Lili sobre isso, ela contorna o assunto. Espero que seja um senhorzinho de meia idade fofo igual Laura ou será que é melhor imaginar um bonitão? Ou talvez uma mocinha, iniciante no trabalho. Penso em milhares de possibilidades, é interessante uma empresa contratar uma professora para auxiliar na interpretação da fala, muitas empresas ignoram as pessoas surdas e nem mesmo as contratam, nem imaginam que elas possuem uma vida normal e que são pessoas normais. Fico feliz com a visibilidade do assunto, pena que não posso falar o mesmo sobre a escola.

Quando Flavia me convidou para trabalhar com ela, eu nem pensei a respeito, aceitei na hora, iria fazer o que amo e com crianças ainda. Mas a realidade era outra, crianças da periferia que não tinham acesso à escola e muito menos a uma fonoaudióloga. Elas não tinham interesse em aprender a se comunicar e sim em aprender a não morrer de fome. Mas eu insisti, dei o melhor de mim por essas crianças, cada dia que passava eu levava coisas novas e atrativas para que começassem a se interessar, e no início deu certo, a escola teve visibilidade e ajuda, mas depois se tornou esquecida, os pais perderam o interesse, cada vez menos crianças apareciam, os recursos ficaram escassos, mas eu não desisti e não vou desistir dessa crianças.

Tudo isso vai valer a pena.

Enquanto a água quente escorre por meus cabelos encaracolados, lembro que tenho uma vídeo chamada com dona Laura às 18:00, a senhora que perdeu a audição. Saio do banho e enrolo uma toalha em meus cabelos antes de enche-los de creme. Coloco meu pijama do Harry Potter e resolvo pesquisar um pouco mais sobre a empresa antes de ligar para dona Laura. A firma de advocacia chama Millers & Millers e trabalha com várias casos grandes como fusões de empresas e processos. Resolvo não pesquisar muito a fundo pois pretendo ser surpreendida. 

Ligo para dona Laura que me atende logo em seguida, ela é uma senhorinha bem conservada, seus cabelos são curtos e ela usa um penteado estilo anos 90. Gesticulo um boa noite para ela que alegremente responde de volta. Laura perdeu a audição quando teve uma febre alta, estava sozinha e não tinha ninguém em casa para socorrê-la. Mas aprendeu a conviver bem com isso, seus dois filhos já são casados e seu marido morreu a anos na guerra. Seus netos estão aprendendo a se comunicar com ela por meio dos sinais e ela está frequentando um grupo de apoio para pessoas surdas e me contou que conheceu um senhor, muito gato — palavras dela — para lhe fazer companhia. Que fofa. Quando digo a ela que daqui duas semanas irei para Nova York à trabalho, sua reação é de felicidade, gesticula apressadamente que devo ir visitá-la. 

Com certeza irei. 

 

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Só Queria Escutar as Batidas de Seu CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora