Único

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       Anne Shirley-Cuthbert já teve muitas crises de pânico antes. É claro que teve, sendo alguém tão sentimental e sensível como ela é inevitável não passar por esta agonia.           

       A sensação de ter o ar sendo impedido de entrar em seus pulmões por mais que tente puxa-lo, a garganta fechar, os olhos arderem pelas lágrimas não derramadas, do coração bater muito mais rápido que o costume, o corpo todo tremer violentamente e os pensamentos entrarem em uma espiral horrível e autodestrutiva é infelizmente muito familiar à senhorita Shirley, mas nada nunca chegou nem perto do que ela está sentindo agora.

       Agora ela perdeu completamente a noção dos seus sentidos e de espaço, não sente mais seu coração batendo, seus pulmões puxando o ar, seu corpo encolhido no chão frio ou suas silenciosas lágrimas escorrendo sobre seu rosto mais pálido que o comum; ela simplesmente não sente e não quer sentir. A única coisa que ela gostaria de sentir agora é o gosto amargo da morte, da sua morte.

       Ela acabara de sair do funeral de seu ente mais querido, de uma das suas almas irmãs, da pessoa que a acolheu e amou quando nenhum outro o fez; ela acabara de sair do funeral de seu pai. Porque era isso que Matthew Cuthbert era, ele era seu pai.

       "Como se pode continuar vivendo normalmente depois de algo assim? Como o mundo se atreve a continuar a girar mesmo sem ele? Como Deus pode permitir que isso aconteça até com as melhores pessoas?" Eram alguns dos pensamentos que rondavam a cabeça da pequena menina ruiva que estava deitada no chão, abraçando as próprias pernas e olhando para a parede clara, que por sua vez reproduzia a sombra da linda cerejeira do lado de fora do sótão leste.

       Quem olhasse para a garota agora nunca diria que ela era a mesma menina tagarela que chegara a Green Gables com seu vestido curto e feio, sua mala esfarrapada e alegria contagiante na carroça de Matthew um ano e alguns meses antes, mas ela não ligava. Não tinha força pra ligar.

       Anne não tinha energia para fazer mais nada, então ficou ali, apenas encarando a parede e esperando a morte lhe alcançar também, mas antes que isso acontecesse, alguém bateu na porta.

       - Diana, por favor, eu realmente admiro sua preocupação, mas eu já lhe disse, não estou com fome e quero ficar sozinha. – pediu a menina sem nem se dar o trabalho de virar para ver quem era seu convidado.

        - Receio que não seja quem espera que seja, Anne. – respondeu a voz inigualável de Gilbert Blythe.

        A ruiva se levantou as pressas, rapidamente limpando o rosto com as mãos e ajeitando o vestido em seu corpo. Ela preferia morrer a parecer meramente fraca na frente de seu maior rival.

       - Gilbert, o que faz aqui? Se veio se vangloriar por algum grande feito na escola hoje causado pela minha ausência, realmente não é um momento muito apropriado. – respondeu com a voz mais firme que pode, mas ao completar a sentença uma solitária e gorda lágrima escorreu de seus grandes olhos azul acinzentados ao mesmo tempo em que sua voz fraquejou.

       - Oh, Anne. Você não precisa se fazer de forte, não para mim. – ele disse largando a bandeja cheia de comida que trazia na cômoda e se aproximando de braços abertos da menina, que logo desabou em lágrimas novamente e aceitou o toque apenas por estar em um momento de profundo desespero, ela tentou se convencer depois.

        Com toda a calma e gentileza do mundo, Gilbert colocou seu braço sobre os ombros da garota e a guiou em direção da cama, fazendo-a sentar-se ao seu lado. "Você estava no chão esse tempo todo?" ele perguntou e ela apenas acenou com a cabeça, o que o fez apertar ainda mais o abraço lateral.

        - Anne, olhe para mim. Tudo bem você gritar, chorar, ficar com raiva e quebrar coisas, tudo bem sentir como se a felicidade se esvaísse lentamente e nada a fizesse retornar para seu corpo, tudo bem se sentir perdida, depressiva, infeliz, vazia e a ponto de surtar. Está tudo bem em não estar bem. Ninguém vai te julgar ou te chamar de fraca por você precisar do seu tempo para processar tudo, acredite, disso eu entendo.

       - Do que será a minha vida sem Matthew? - ela perguntou baixinho, se encolhendo cada vez mais nos braços de Gilbert - Para quem eu vou contar todos os seus segredos, sonhos, aventuras, devaneios e histórias? Quem será meu eterno tímido favorito e aliado contra a severidade de Marilla? Quem me comprará presentes inesperados apenas para ver meu rosto iluminado e receber, em troca, um abraço muito apertado de uma garota feliz? Eu me sinto tão errada por seguir a vida sem ele, sinto... Sinto como se ele tivesse levado uma parte minha, e eu a quero de volta. Eu faria tudo para tê-la de volta.

       - Eu sei, pequena. Eu sei. – ele abraçou fortemente seu corpo magro, deixando que ela se aconchegasse em seu peito, e não ligou quando as lágrimas encharcaram sua camisa, simplesmente a deixou chorar livremente pelo tempo que quisesse. Quando sentiu os soluços diminuírem, afastou-a levemente e lhe disse – Mas, ei. Pelo pouco que conheço de Matthew Cuthbert, sei que ele não gostaria de ver sua garotinha chorando e sofrendo tanto assim, não é? – Anne negou veementemente com a cabeça, levantando a cabeça do peito de Gilbert e esfregando os olhos, agora mais calma.

       - Isso partiria seu coração. – ela deu um leve sorriso que deixou o moreno satisfeito com seu trabalho (além de com borboletas no estômago por perceber o quão adorável Anne fica ao chorar, é claro), o qual, ele tinha que admitir, foi muito melhor do que a menina tinha feito no ano anterior, na ocasião da morte de seu pai.

       - Então por que não saímos e damos uma volta lá fora? O dia esta perfeitamente agradável, e então você pode me contar outra das histórias da bela princesa Cordélia. O que acha? – ele arqueou a sobrancelha e ela acenou positivamente com a cabeça, dando outro sorrisinho que fez as borboletas dentro do estômago de Gilbert baterem asas.

       Ao voltar para sua cama depois de uma agradável tarde com Gilbert Blythe, Anne constatou que, de fato, o mundo continua a rodar, completamente alheio as pessoas que nele habitam, e tudo bem. Tudo bem seguirmos a vida mesmo sem aqueles que amamos ao nosso lado fisicamente falando, porque eles sempre viverão em nossos corações. Seu legado e a marca que essa pessoa deixou em nós nunca morrerá.

It's okay not to be okayOnde histórias criam vida. Descubra agora