Cap. 2 - Uma infância sadia

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Os Rosso faziam questão de oferecer toda a estrutura que fosse possível àquela menina. Não eram de fato ricos, mas não se poderia considerá-los pobres tampouco. Essa divisão maniqueísta que se costuma fazer para classificar as pessoas dentro do nicho de convivência a que elas terão acesso. Ou melhor: ao seu papel dentro de cada nicho de sobrevivência.

Sempre me encontro em questionamentos diante de algumas dessas classificações que a humanidade nos impõe sempre como dois lados diferentes: rico x pobre, gordo x magro, feliz x infeliz, deus x diabo. Costuma parecer a mim como uma tentativa de estar sempre sobre a face certa da moeda, um engodo de autolegitimação.

Em poucas páginas da história da humanidade já se podem perceber que os casos não são sempre assim. Nessas páginas poderemos ver mais alguns casos.

Não se adequavam, portanto a essa divisão os Rosso, mas esforçavam-se por entregar alguns luxos que não eram condizentes com seus rendimentos. Percebia-se que era menos por exibicionismo do que por zelo. E havia preocupações, sobretudo da parte materna, em garantir certos cuidados.

- É uma menina! - Já sei que mesmo o leitor menos atento conseguiu obter essa informação poucas linhas atrás. Mas era uma afirmação tão recorrente que extrapolou o capítulo dedicado a ela.

Justifico a retomada dessa informação pela descrição do quarto que montaram para Mikela.

Todo o ambiente foi baseado sobre o tema sonhos. Era quase uma obsessão de sua mãe. Tons pastéis pelas paredes compondo uma espécie de ambientação onírica. Tudo muito relaxante, contudo com relações de sonhos representadas pelas figuras de anjos, de seres fabulosos de veículos voadores em papéis de parede muito bem coloridos e de um bom gosto irretocável.

A afirmativa, que já não voltarei a repetir a fim de que se esqueça dela o leitor dono de uma memória mais poderosa, se fazia presente quando a mãe justificava alguns gastos mais exorbitantes. O pai se esquece de que é uma menina e compra coisas mais grosseiras, comentava entre as amigas. Sempre destacando que era para o conforto da criança e não para exibições públicas do ambiente.

O pai afirmou certa noite que tivera um sonho curiosamente lindo, no qual a pequena Mikela saía da barriga de sua mãe para deslizar entre os arco-íris das paredes, brincando com os dragõezinhos, com aqueles seres tão lindos que compunham toda a harmonia do quarto no qual passaria certamente muitos anos de sua ainda não iniciada vida.

As pelúcias escolhidas para compor as prateleiras, a ornamentação do berço também parecia terem ganhado vida em seu sonho maravilhoso. Ou a partir dele. Percebeu sua presença em seus sonhos somente após a compra dos objetos. Questionava se a semelhança entre o sonho e os bichinhos não estava sendo sugestionada após sua chegada, ou se os havia visto antes em alguma loja e coincidentemente sua esposa escolhera os mesmos. Afinal, tinham gostos muito parecidos, passava a acreditar.

A cada dia mais perto do grande dia e vontade de ver aquele rostinho e ouvir o choro aumentava. Crises de ansiedade, picos de pressão, incertezas e sonhos, muitos sonhos.

Mas uma coisa era comum: em todos eles, Mikela aprecia com o mesmo rosto, com o mesmo sorriso angelical tão parecido com o da mãe. Parecia predestinada a seguir uma linhagem da mais intrigante beleza.

Seus olhos grandes e curiosos, de um castanho escuro perscrutador, amendoados. As mãos gordinhas, como os pés de dedos longos e agitados. O nariz arredondado, como se tivesse sido esculpido para compor uma obra de arte, afinal o nariz é uma parte importantíssima do rosto, que determina boa parte da harmonia.

Gordinha e curiosa, apesar de quieta. Em seus sonhos, a menininha tinha os traços bastante próximos aos de sua mãe, como se não houvesse existido qualquer participação genética de outro DNA.

...

Dores! Muitas dores! Dores insuportáveis!

- Corre! Vai nascer!

E iniciou-se o espetáculo do nascimento de uma criança.

A mãe solta a voz como em uma ópera despreocupada com compasso ou afinação. Um agudo de lirismo extremo que é respondido pelo balé convulsivo das pernas do pai, carregado como que por uma lufada de vento para recolher os objetos de emergência, braços dançantes enfiando tudo dentro de uma bolsa em que não caberia metade daquilo que está ali dentro.

Mais um agudo! Um grave! Outro agudo! E passos rápidos, saltos e rodopios levam aquele pai por toda a casa recolhendo tudo o que pareça útil.

Uma última olhada no cenário. Sabia ser aquela a derradeira vez em que viria a composição talmente organizada.

Som e caos passariam a fazer parte dos dias vindouros, e uma nova voz passaria a fazer parte dos próximos atos. Sem previsão para um gran finale daquela peça barroca.

Mudança de andamento: ouvia de leve o choro de Mikela. Sua sonhada Mikela, que aparecera a si tantas vezes nas noites de sono. Essas que sabia se tornarem imprevisíveis dali para a frente.

- Quero vê-la! É uma menina! Minha menina!

E viu aquele rosto conhecido. Exatamente como a criança que lhe aparecera em sonhos. Tanto inexplicável, quanto desconfortavelmente igual. Não tinha como entender toda aquela semelhança com o rosto visto ao longo de quase todas as noites.

As semelhanças com a mãe eram reais, mas o mosquito da dúvida acabava de picá-lo desconfortavelmente.

Ah, a dúvida!!! Aquele sentimento que persegue o ser humano desde a sua origem. Afinal, começamos a nos organizar em sociedade pela dúvida a respeito do acesso aos suprimentos vitais de comida, calor e pela divisão de atribuições em um mundo solitário.

Vários autores já escreveram suas linhas a respeito do assunto dentre os quais podemos destacar Capitu e Bento Santiago como ícones desse sentimento nefasto que pode levar à loucura até mesmo o mais frio dos homens.

Uma vez inoculado, o vírus não terá cura definitiva nem mesmo após a vacina aplicada pela realidade. Pode ter recaídas ao mínimo sinal de queda na imunidade. E a cada reinfecção pode voltar pior, trazendo efeitos imprevisíveis. Palavras de um médico certa vez em conversa sobre a presente história.

Mas de resto, foi um nascimento normal como acontecem tantos em tantas partes do mundo. Uma nova vida que terá inúmeros desafios para superar ao longo de seu caminho. Que seja tão longo quanto os cabelos de sua mãe e tenha a mesma beleza.

Criança tranquila, que interagia com todos os agora vários visitantes da casa. Entra um, sai outro, entram dois sai um, chegam amis mais três...

E todos queriam ver aquela belezinha recém chegada e mais uma a ser iluminada pela luz de nosso mundo.

Com o passa dos meses, a pequena Mikela aumentava seu nível de interação e percepção do mundo de maneira extremamente rápida. Interagia cada vez mais com as lembranças de seu pai, que entendia cada vez menos aquela conexão entre os dois. Interessantemente, a mãe aparentava conhecer esse fato, embora nunca o tenha confirmado.

- Amor, parece que tudo o que se relaciona com a Mikela é um eterno Deja vu para mim.

- Normal, meu bem... normal. – E lançava um olhar cúmplice para a criança. Em seguida invariavelmente se seguiam olhares carinhosos disparados pelas belas órbitas marrons e um enorme sorriso desdentado e barulhento.

Realizar algumas vontades estranhas parecia a normalidade de Rosso, talvez mais para concretizar as ideias dos sonhos do que por ter vontade de cumpri-las. E essa vontade começava a diminuir cada dia mais rápido. Estranhamente, porém, não deixava de realizar os desejos sempre recebidos com felicidade por mãe filha.

Definitivamente todos percebiam haver algo de muito especial com aquela criança e talvez com sua mãe. Ninguém conseguia dizer ao certo, mas ainda que ela não fosse capaz de proferir uma palavra sequer, devido a sua idade, todos se sentiam induzidos e conduzidos para a realização de suas vontades mais estranhas.

Ninguém era capaz de comentar isso, mas todas as pessoas próximas à família pensavam igual.

Os sonhos de Mikela (provisório)Onde histórias criam vida. Descubra agora