Cap. 3 -As primeiras travessuras

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Atire a primeira pedra aquele leitor que durante a infância não tenha aprontado alguma arte de deixar quem estivesse à volta simplesmente amaldiçoando seu nascimento. Naturalmente, essas travessuras foram realizadas mais por inocência do que por maldade, até onde se entenda o funcionamento psicológico de uma criança.

Mikela não foi em nada diferente desses que não me apedrejaram, ainda que eu tenha percebido alguns objetos voando em minha direção. Certamente são pessoas vaidosas, arrogantes, ou simplesmente esquecidos incautos. É da natureza humana experimentar e, mesmo entre nós, adultos de condutas irretocáveis, acontece de, por vezes, algum laboratório se perder em explosões causadas por experiências mal conduzidas. Essa metáfora pode ser entendida também em seu sentido literal, desde já adianto.

Ninguém conhecia os meios pelos quais a pequena Mikela conseguia chegar aos pontos mais altos da casa. Mas isso é normal em quase qualquer criança. Antes mesmo dos primeiros passos.

Certa vez, porém, já por volta de seus dois anos, enquanto seu pai consertava um problema na cozinha de casa, quase causou a morte de seu progenitor, que deve agradecer a deus todos os dias por ainda permanecer neste plano de existência.

Vendo que seu pai, com frequência, acionava o interruptor de uma lâmpada para poder enxergar o espaço sob a pia, a pequena, aprendendo seus primeiros passos e a realizar tarefas simples, como a de beber água sozinha em um copo, descuidou-se e derrubou água aos pés de Rosso. Vendo o mecanismo de acionamento daquele brinquedo que brilha, a menina sem observar a ausência da lâmpada – o pai dizia ao médico não se lembrar de tê-la retirado em momento algum da atividade – levou o dispositivo até onde o serviço era realizado, largando-o em seguida sobre a poça de água que, descuidadamente, chegou à mão de seu pai, num momento em que ele se apoiava para mudar de posição.

Foi um choque tão intenso, visto que o homem desequilibrou-se com o susto e caiu deitado sobre a área molhada, que até hoje ainda são vistas marcas de queimaduras em seu corpo. E em suas convicções.

Rosso livrou-se da situação devido ao acaso de sua esposa estar passando por perto da tomada no momento exato em que a história acontecia. Isso facilitou a ação, ainda que ela tenha demorado bastante, devido à dificuldade de compreensão do significado dos gritos daquele homem deitado no chão da cozinha.

Quando não estava envolvida com alguma atividade estranha, estava dormindo. E dormia... Não tanto quanto se botava em risco e aos que a cercavam , mas dormia muito.

Ninguém entendia como conseguia dormir tanto, tampouco suas falas durante esses sonos. Os ruídos que emitia assemelhavam-se bastante a sons organizados, com alguma lógica, porém ininteligíveis. A mãe não se preocupava com isso, mas o pai se intrigava.

Seu primo por parte de mãe era a maior vítima de suas travessuras, uma vez que regulava com ela em idade e era uma visita permanente na casa da família.

Por falar em seu primo Cláudio, vale a pena introduzir a história da família neste momento da narrativa, uma vez que será bastante importante em um outro momento.

Cláudio era o braço voluntarioso daquela família. Filho único do casal Joaquim e Adília, recebia todos os mimos possíveis e imagináveis a um garoto de cerca de dois anos. Era um projeto tirânico dentro de casa, como já seria possível imaginar.

Não havia opinião sua que não fosse levada a sério com lei por seus pais. Sobretudo pela mãe, pois haviam perdido outros dois rebentos e aquele lhes parecia a última solução de uma vida feliz em família. Isso porque os pais precisavam de algo que os fizesse conviver afastados um do outro – papel perfeito para um filho.

Por isso era ele que mandava em tudo. Quebrava as coisas em casa e os pais, prontamente, repunham. Cometia as maiores faltas de educação e estavam lá os pais para contemporizar e amenizar os atos:

- Poxa... é uma criança! Não leve tão a ferro e fogo.

- Com o tempo ele se ajeita!

- Ele não sabe o que diz. Só está tentando interagir com o mundo!

E, a cada passo mal dado, surgia uma nova desculpa para o comportamento do garoto.

- Eu vou casar com a Mika! – Repetia sempre que chegava à casa do Rosso. – Todos riam, menos mãe e filha.

Agarrava a mão da menina e saia passeando com ela, arrastando como um cobertor velho pelo meio da casa. Parecia ter todo o controle sobre a menina.

- Cláudio, pega a bolinha que caiu ali? – Dizia a menina em tom dengoso.

O pequeno abaixava e, na primeira oportunidade Mika pulava sobre suas costas e o fazia de cavalo. Os pais do menino olhavam para os pais da outra com olhar de reprovação.

- Ela é só uma criança. Já, já se ajeita. – soltava uma longa gargalhada. Angelina adorava esses momentos de revanche. Mascava-os com um silêncio delicioso, ao ver engolir em seco o outro casal.

Mas Cláudio fazia de tudo para obter a atenção de Mikela. Não digo que haja paixão entre crianças, mas identificação. O garoto se identificava com a menina de um modo tão intenso quanto a falta de reciprocidade daquilo. Os anos passaram e aquilo não mudou.

O ser humano sempre foi e nunca deixará de ser um curioso objeto de estudo. Isso explica tantas ciências que tentam explica-lo e nunhuma chega perto de um consenso absoluto. Mas um fato parece aparecer sempre como uma regra: a rejeição motiva mais do que a devoção.

Um deus que não rejeitasse aqueles que erram não teria feito o mesmo sucesso desse julgador, sempre pronto a jogar ao inferno um devoto diante de sua primeira falha. Isso o mantém no topo das preferências humanas há tantos séculos, de onde não parece ter vontade de sair tão cedo.

Deus criou o homem a sua imagem e semelhança, e o homem pagou com a mesma moeda, como já foi dito alhures.

***

Os primeiros anos de escola foram um prenúncio do que viria pela frente. Fazendo parte da mesma classe, Cláudio e Mika andavam sempre grudados.

- Nossa, que amor de primos! Vão se casar um dia!

Um sorriso pouco amistoso surgia na garota, mas nada era dito, afinal ele era útil. Principalmente para satisfazer suas vontades.

A família de Cláudio começava a demonstrar-se preocupada com o comportamento do garoto. Sempre fazendo os maiores absurdos com os colegas de classe, simplesmente para ver a prima sorrir. Escondia o objetivo de suas travessuras de qualquer pessoa, até mesmo do alvo de sua busca por destaque. Porém, sempre que a percebia se distanciar para brincar com outros grupos, fazia algo para obter aquele sorrisinho de canto de boca tão precioso.

- Cê tá tiste? Vamo bincar! Cê é minha, Mika!

Um silêncio se instaurava, e já ia ela para o grupo das outras meninas. Sempre com um rabo de olho deixado para derrubar seu admirador incondicional.

- Gosto da caneta da Dora! Meu pai não quer me dar uma. – E saía para pular corda.

No fim do mesmo dia, estava o garoto na sala da diretora, após as câmeras da sala de aula o flagrarem em delito.

Objetivo alcançado: estava lá o sorriso no rosto de Mika.

Os sonhos de Mikela (provisório)Onde histórias criam vida. Descubra agora