- Mãe, sonhei com você e o papai! – Mikela acordou com um sorriso brilhante como um dia de sol à beira mar.
- Conta para o pai! – gritava Paolo Rosso do seu sofá.
- Eu dormia numa cama que saía voando pela janela de manhã cedo. Acordei com aquele ventinho gostoso da manhã na cara. Parecia que mamãe tinha "abrido" a janela no domingo. Senti cheiro de domingo, pai. Aí acordei.
- Tava lá no alto! Não dava para ver nada daqui de baixo. Via a rua pequeninha, do tamanho de uma formiguinha.
- Vinham uns passarinhos para conversar comigo na língua deles.
- E você entendia, minha filha?
- Ué ... Você não, pai? Sempre converso com eles. De dia eles não me respondem, não. De noite eles vêm na minha cama para falar comigo.
O pai ria alto do sofá. A mãe abaixava a cabeça enrustindo um sorriso leve de canto de boca, quase uma marca sua. Era claro que ambos tinha visões diferentes daquele relato.
- E achei que cama fosse igual a um carro. Mas no sonho não tem buraco no chão. Voei leve. E aquele vento no rosto, pai, o senhor tinha que ver...
- Mas onde a gente entrava no sonho, se nem eu nem sua mãe voamos, filha?
- Ah, pai... Em sonho a gente pode tudo! – E mostrava uma maturidade até aquele momento inimaginável para aquele homem de escritório, pouco afeito aos caprichos de uma realidade incontrolável e devastadora.
- Voei, me misturei no céu cor de rosa e azul, vocês vinham atrás de mim, me seguindo pra todo lugar aonde eu ia. – continuava – Eu gostava daquilo e queria voar cada vez mais rápido, girava, subia até o céu, descia até quase bater a cabeça no chão. Entre por dentro de uma árvore e saído outro lado...
Descrevia as cenas de seu sonho com uma vivacidade que constrangia seu pai a fingir que entedia exatamente do que ela estava falando. Ela e a mãe, porém, sabiam que ele nunca seria capaz de atingir o nível de abstração do sonho de uma criança, que ainda não conhece os limites impostos por uma realidade em preto e branco e por isso tem sonhos super coloridos, que vão se descolorando juntamente com o aumento do peso que lhe depositam sobre os ombros, trazendo-as para o peso que a terra leva consigo.
Outro dia, contava à mãe sobre o seu vestido que havia crescido durante a noite:
- E cresceu quanto, minha filha?
- Ah, ficou grandão, mãe! Do tamanho do dia. Aqui – apontava para a região do colarinho do vestido – ficou cor de noite e aqui com cor de lua – enquanto apontava para os ombros.
- Esse pedaço até o fim do dia – continuava – ficou quase da cor da tarde. Misturava um monte de coisa, mãe. Tinha um cheiro tão forte de riso. Que eu só percebi a manhã no fim do vestido quando ele veio me cobrir.
- Ele quem, filha? – Novamente perguntava o pai. Aqui cabe destacar algo que o arguto leitor pode ter percebido. O pai entrava na história somente como coadjuvante nos momentos em que se oferecia para isso.
Via a filha como um ponto de fuga de sua vida cor de cinza. Principalmente quando ela entrava a descrever as cores que faziam parte de sua imaginação de criança. As associações já não eram tão diretas assim, afinal as cores da noite, da tarde da manhã para si já haviam desbotado e chapado sobre um fundo descolorante e sem textura.
- O moço, pai! Um moço com olho de multidão. Conseguia me olhar de qualquer lugar para onde eu voava. E nem virava a cabeça. Não gosto dele, não.
Desde que se começou a estudar sobre sonhos, sempre vem se afirmando que eles são uma espécie de resumo dos nossos dias. No caso de uma criança, parece um resumo de uma pré-existência, que se inicia lá onde não podemos contar o tempo e vem até depois de onde os olhos já não conseguem alcançar.
Já se passavam cinco anos do nascimento daquela figura peculiar tão pequena em tamanho e experiência, mas tão profunda em suas percepções sobre os assuntos mais diversos.
E os olhares trocados com a mãe se tornavam cada vez mais comuns, demorados e intercomunicantes.
- Precisamos levar essa garota num psicólogo, ela tem uns pensamentos esquisitos! – Comentava o pai eventualmente. As pressentia que poderia estar interpretando mal o excesso de criatividade de uma criança.
Aqui começo a sentir certa necessidade de fazer um salto no tempo e partir para algum ponto menos romântico da história. Tenho a quase certeza de que deveria fazer isso, mas ainda faltam alguns fatos relevantes para que se entenda m todas as motivações que levaram aos fatos que serão contados pelas próximas linhas.
O excesso de zelo é típico dos que possuem um espírito controlador, pois não desejam nada fora do controle de suas mãos, ou do alcance de suas vistas. Mas pode também indicar certa dose de insegurança. Talvez este narrador não deseje perder o controle sobre vossa leitura exatamente por apresentar dose considerável de insegurança. Sobretudo no referente à credibilidade dos fatos, que não deveriam aparecer soltos dentro do universo de uma criança tão caótica.
Não há cosmos que sempre dure e nem caos que nunca chegue. Dizia algum filósofo da antiguidade. Talvez ninguém o tenha dito e eu esteja formulando tais palavras agora, como o que fez Cláudio ao contar para a mãe o que sentira no dia em que Mikela havia entrado na sua cabeça para fazê-lo arremessar uma bola de borracha em um transeunte.
- Meu filho, como que você vai me inventar um negócio desses?
- Mãe, ela chegou pela janela com um vestido todo colorido de sol e estrelas, parecia que tinha todos os dias colorindo aquilo ali. Tinha um cara atrás dela e ela parecia que falava com a voz dele. Ela disse que era para eu levantar e pegar a bola. Depois disse que o moço tava passando aqui na frente para invadir a casa e me levar embora. Eu juro, mãe!
- Meu filho, ficar com essas coisas na cabeça não está te fazendo bem! - Comentou a mãe.
- Precisamos levar esse garoto num psicólogo, ele tem uns pensamentos esquisitos! – Falou o pai à mãe, cuidando para que seu querido filho não ouvisse.
- Meu filho não é doido, não! Ele só é muito pequeno para perceber diferença do sonho para a realidade. Aí fica inventando essas coisas de criança.
Quando contaram a história na casa dos Rosso - afinal passavam tanto tempo lá, que a falta de assunto levava à troca de assuntos confidenciais de família – houve uma gargalhada geral, ridicularizando o pequeno Cláudio, com os costumeiros tapinhas nas costas e soquinhos no ombro, seguidos de um "coisa de garoto arteiro!" de algum dos adultos.
Mikela, sentada a um canto, cercada pelas não poucas bonecas, deitava todas sobre uma manta de estrelinhas enquanto ria alegremente alheia a toda aquela conversa em seu nome, fazendo voltas no ar com seus brinquedos, que ganhavam vida em sua imaginação.
No fim do dia, quando chegaram a casa, Cláudio e os pais preparavam as coisas para dormir e já discutiam o horário no qual chegariam à casa dos Rosso no dia seguinte:
- Vamos depois do almoço, ou antes? Não estou a fim de fazer comida amanhã, não. – Comentou Amora Soares.
- Será que eles não tão ficando cansados da gente lá todo dia, não? – perguntou o pai.
- Ah, já temos um motivo para ir até lá amanhã. – Disse ela caminhando até filho que brincava com a cabeça de uma das bonecas de Mika.
- Meu filho, para que você trouxe essa cabeça de boneca? E toda pintada assim? Coisa horrível, meu filho!
- Mas eu não peguei, não, mãe.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Os sonhos de Mikela (provisório)
General FictionTudo sempre pareceu tão normal na vida do casal Sr. Rosso e Angelina, um casal formado por meios um tanto questionáveis e misteriosos, cujo entendimento revelará alguns segredos sobre Mikela, a filha do casal. Uma história com bastantes reviravoltas...