Cap. 1 - O alfa, ou "É uma menina!"

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Enquanto o Sr. Rosso tomava o último gole de sua cerveja no bar da esquina a fim de se sentir um pouco menos ansioso, sua esposa sentia as últimas dores antes da grande dor do parto.

- É uma menina! - Foi a única frase que ele conseguiu dizer naquele dia. E a repetiu por, pelo menos 138 vezes, segundo estimativas de alguns parentes próximos, que já não sentiam muita necessidade de estar por perto dele àquela altura.

É curioso ver o modo como morrem os filhos para nascerem os pais no momento da vinda de uma criança ao mundo. Chega-se quase a um padrão de reações humanas, mudando-se eventualmente a frase, ou o ato que é repetido, as reações de passagem são basicamente as mesmas. E não seria muito diferente com nosso personagem.

As mãos suavam, enquanto ele fingia que não estava preocupado com talvez o evento mais aguardado e, ao mesmo tempo, evitado de sua vida. A cerveja era somente uma desculpa para duas coisas ao mesmo tempo: explicar as mãos geladas e as frases desconexas. Ou a frase desconectada de contextos repetida inúmeras vezes.

Todo nascimento traz em si, necessariamente, a união de duas pessoas, ainda que temporária, ou acidental. Isso significa uma fusão de genes, de histórias, de mentalidades muito mais do que a união entre dois corpos desejosos um pelo outro. Por esse motivo, faz-se importante que se trate um pouco da história pregressa àquele nascimento que se aproximava e já espiava pelo buraco da fechadura. Por isso deve-se passar rápido por essa história, sob o risco de, quando voltarmos ao nascimento, a criança já se encontre a pronunciar suas primeiras palavras e este narrador tenha perdido o grande momento que é o primeiro contato com a luz deste mundo que promete inúmeros sucessos em troca de um sem número de decepções.

- É uma menina! – Foi também a frase do pai de Angelina, a mãe do rebento do casal enquanto tomava sua cerveja no bar da esquina. Mas com uma distância de quase quinze anos entre o nascimento da moça e o conhecimento de sua existência. Ela já era nascida de um romance fortuito do homem de uma casa, que não poderia ter recebido a notícia em pior momento do que aquele, quando esperava pelo nascimento de seu outro filho, um homem proveniente de sua união oficial.

- Cara, como que eu pude dar esse mole? E como que essa garota conseguiu chegar até mim? Porra, quinze anos depois!!!

Comentava com seu comensal já com a voz embargada pelo álcool, e marcada pela raiva de si mesmo por permitir que aquilo acontecesse. Logo ele, homem de tantas mulheres, que nunca havia deixado brecha para esse tipo de infortúnio... mas lembrava da noite exata em que a concepção havia sido consumada.

- Mas cara... se tu visse aquela mulher... até você... Não dava para ficar pensando muito. Só dei azar.

Naquele momento, já não tinha certeza se o azar havia sido de ter engravidado aquela mulher lindíssima em uma relação de loucura que nunca voltou a se repetir, ou por ter perdido os quatorze anos que antecederam aquela mensagem de áudio tão impessoal que recebera no fim daquela manhã. Os primeiros choros, os olhares perdidos, os passos, o período em que a menina iniciou a se comunicar em sua língua própria... Enfim, era mais fácil seguir reclamando que definir aquilo ali, naquele momento de iminente encontro com uma inteira desconhecida, que nascia já grande e com uma autonomia invejável, ou reprovável, de acordo com o ponto de vista de quem a visse sobre as mulheres. O caso dele era mais este do que aquele.

Nascia o pai prematuramente ali, sentado em uma mesa de bar com um copo americano de cerveja entre os dedos e um cigarro fedorento entre os lábios então relaxados pela bebida. Como seria encontrar pela primeira vez com ela?

Dedicaremos um momento nesta narrativa para destrinchar momentos desse encontro e comentar algumas situações decorrentes dele, bem como tecer alguns comentários a respeito do relacionamento entre o pai e a filha. Ou talvez não seja necessário um capítulo para tratar disso. A necessidade e vida das próximas linhas guiarão a pena do narrador pelo melhor caminho. Ou pelo pior, caso o leitor tenha interesse nos pormenores da vida das pessoas antes mesmo de que as possa conhecer minimamente.

O que importa agora é dizer que seu lugar na relação com o pai acabou por ocupar um espaço maior do que aquele desejado tanto por sua esposa, quanto pelo então futuro filho. E que isso foi um bem tão inoportuno quanto um convite para uma viagem num momento de doença.

Não daria para dizer que Angelina não houvesse conquistado seu pai com toda aquela força que faltava em seu filho legítimo e com um humor sempre tão agradável de uma mentalidade sonhadora e realizadora. E desde tão nova.

Essa relação de identificação entre os dois tornou os encontros com Angelina quase um crime a ser escondido por seu pai de qualquer pessoa que pudesse sonhar em conhecer sua esposa.

Essa parte da história, porém só é importante para chegarmos até o dia em que Angelina conhece o pai de sua filha, o Sr. Rosso.

Os dois se conheceram em uma dessas fugas de Angelina para encontrar o pai. Giuliano Rosso era estagiário na empresa em que seu pai trabalhava e um dos únicos a conhecer o motivo das fugas do homem no meio do expediente.

Giuliano era então um moleque de seus dezessete anos, de bom porte e com a pele de um branco avermelhado, que combinava em muito com o tom mais para o escuro da pele de Angelina. Formavam uma visão bem harmoniosa àqueles que os vissem juntos. Mas voltemos ao dia em que se conheceram.

O rapaz apareceu no ponto de encontro combinado entre pai e filha a fim de passar um recado de última hora do homem, que ficara preso até mais tarde no trabalho. Como era caminho para a casa dele, Giuliano ficou encarregado de transmitir o recado.

A simples transmissão do recado rendeu quase duas horas de conversa, que só precisou ser interrompida quando o celular da menina tocou com cobranças de sua mãe ao perceber a demora da filha. Nascia ai mais uma história de encontros fortuitos. Afinal, o pai da moça não poderia sequer imaginar que o garoto em quem ele confiou sua história estivesse com outras intenções para cima de sua pequena. Ainda que ela já não fosse tão pequena assim.

O amor explode mesmo onde menos se espera. É quase um campo minado. E resolveu fazer-se provar naquela combinação pouco imaginada, que só era previsível mesmo a quem olhasse de longe a dupla. De perto, era uma menina extremamente independente e crítica se relacionando com um moleque submisso aos pais e depois a ela, que deixou como grande herança para a filha a capacidade de sonhar e viajar por mundos inimagináveis apenas ao terminar de fechar os olhos.

Isso era fruto dos anos de leituras e estudos feitos pelo rapaz, mas parecia ter sido passado pelo DNA a sua pequena filha.

- É uma menina! – Era tudo o que importava naquele momento.

E a frase tornou-se de uma expressão de angústia em um grito de alegria quando os primeiros focos de luz tocaram o corpo da pequena Mikela.

Seu choro invadiu o ambiente enquanto os médicos tiravam aquela massa branca arroxeada de cima do corpo da nova criança. Morria o filho e nascia o pai naquele exato momento.

Mas, aqui devemos abandonar por alguns momentos a progênie de Mikela para focar em sua infância e encaminhar o leitor para aquilo que realmente interessa no entendimento do inacreditável destino de nossa personagem e dos inegáveis impactos que esse destino teve sobre a vida de seus pais e daqueles que a cercavam.

Prometo aos leitores mais apressados por conhecer os fatos de forma mais objetiva que não perderei tempo em muitas digressões e só mudarei o núcleo de ações da história quando isso se fizer extremamente necessário. Dessa forma, pretendo não entendia-lo até que a tão esperada ação principal comece a ocorrer.

Mas preciso, contudo, dizer que nem sempre evitar as digressões será possível, visto que delas dependem algumas interpretações daquilo que virá a acontecer na vida dessa família.

Pronto! Já andava eu a me perder em uma reflexão por demais extensa. Escuso-me por essa falha e por outras que venham a acontecer.

Os sonhos de Mikela (provisório)Onde histórias criam vida. Descubra agora