Um carro de som, tão colorido quanto um arco-íris e adornado com uma infinidade de adereços chamativos, anunciava a chegada do circo, através de um par de alto-falantes velhos e estourados. Shows daquele tipo eram uma forma de entretenimento bastante atípica para os moradores de Coriander, de modo que, até então, sequer se imaginava que algo tão alegre e de natureza tão inocente, poderia atrair uma escuridão tão grande quanto a que estava para se abater sobre a pequena cidade.
Em Coriander o dia a dia costuma ser bem diferentes do da Capital, já que ainda é comum ver as crianças brincando e correndo pelas ruas, empinando pipas e apostando bolinhas de gude, sem qualquer preocupação com os perigos inerentes à sociedade urbana. Lá, a violência ainda se esconde em locais específicos, geralmente oculta pelas sombras cabalísticas dos antigos casarões coloniais ou pela opressora obscuridade da mata fechada que circunda boa parte da rodovia. (...)
Quando o Cirque Deux Collines chegou ao centro da cidade, todas as crianças do bairro estavam lá para acompanhar a chegada dos carros que traziam as atrações. Todas, exceto apenas por Amélia, a filha do delegado.
Dona de cachinhos loiros, da cor do nascer do sol, e de olhos castanhos como as folhas secas do outono, a garotinha de apenas 7 anos de idade levaria uma vida calma e plena, não fosse pelo fato de uma meningite tê-la atacado ainda em sua primeira infância. Como resultado, a pobrezinha logo se viu vítima da afasia e agora se mostrava incapaz não apenas de falar, como também de se expressar de quase todas as formas, o que a obrigava a passar a maior parte do tempo reclusa e isolada em seu próprio mundo de sonhos. Um mundo triste e sombrio, mas certamente não tanto quanto o de seu pai, o sempre sério e recatado Argento Vaz.
Sua esposa, Cristina, havia tirado a própria vida ainda no início daquele mesmo mês, enforcando-se com um cinto, logo após ter deixado uma carta, relatando que já não podia continuar com a existência miserável que vinha levando desde o início do casamento.
Na carta, ela também culpava o marido por absolutamente tudo o que dera de errado entre eles, o culpava inclusive pela doença da filha, o que por sinal deixou Argento completamente destruído por dentro, de modo que ele mal pôde lidar consigo mesmo desde então, quanto mais permanecer na presença de Amélia. E como sua mente estava atormentada demais para que pudesse encontrar uma saída, ele agora se forçava a trabalhar de maneira quase ininterrupta, certo de que enlouqueceria caso permanecesse em sua própria residência por um único minuto além do necessário.
- Tá tudo bem por aí? - Ao telefone, ele indagava Carmen, sua irmã caçula, que vinha servindo de babá para Amélia nos últimos dias.
- Sim, a Amelinha é um anjo. Mas o que tá achando desse novo circo, hem!? Certeza que ela iria adorar ver o mágico e as dançarinas. - Sugeriu a jovem.
- Você tá certa, mas hoje não. Tá tumultuado demais... - Ele observou, enquanto acompanhava a movimentação nas ruas através de uma das janelas da delegacia - Deixa passar uns dias e aí sim a gente vai.
Argento era um policial experiente, com aproximadamente 15 anos de profissão, tempo mais que o suficiente para entender que a chegada do circo talvez fosse o prelúdio de uma nova tragédia e naquele momento, manter a filha segura até que encontrasse uma maneira de lidar com seus próprios problemas, era a sua única prioridade. Por isso resolveu seguir junto a uma patrulha assim que desligou o telefone, a fim de conhecer um pouco mais acerca dos artistas que, desde já, tratavam de conquistar os corações e mentes dos moradores de Coriander. (...)
O calor que fazia naquela tarde era escaldante, ainda assim o primeiro show acontecera ao ar livre e de forma totalmente gratuita, planejado para chamar atenção e despertar o interesse do público, especialmente o das crianças. Todos os artistas acabaram ficando com as maquiagens borradas e as roupas ensopadas de tanto suor, mas graças à magia do circo, ninguém pareceu se importar com tais detalhes.

VOCÊ ESTÁ LENDO
Contos de Coriander
Short StorySINOPSE: Uma pequena coleção de contos, totalmente voltada à expandir o universo de Sob o Olhar da Noite.