Era uma tarde chuvosa como outra qualquer, durante um dia cansativo na universidade, quando resolvi fazer uma pausa na biblioteca, para tentar relaxar e aliviar a mente.
Vaguei por entre as estantes por alguns minutos, sem ter muita ideia de o que pegar para ler, até enfim me deparar com um grande livro de contos. O tomo era velho, pesado e estava muito empoeirado, então bati em sua capa e soprei sobre as páginas, para me livrar de ao menos uma parte da sujeira e assim poder começar a ler.
Estava sendo uma boa leitura e os títulos chamativos capturavam facilmente a minha atenção, mas infelizmente eu estava muito cansada e já comecei a ficar com sono ainda entre o quarto e o quinto conto. Por isso acabei desistindo daquele velho livro de contos e logo retornei aos meus afazeres, fechando o dia da mesma forma de sempre, em meu quarto no alojamento do campus.
Peguei no sono rapidamente e assim mais uma noite foi se passando...
Senti um pouco de sede no meio da madrugada, então me levantei, saí do quarto e fui até um bebedouro que ficava no fim do corredor. E minutos depois, quando já havia retornado ao quarto, ouvi batidas em minha porta.
- Quem será? Acho que não vi ninguém lá fora...
Embora hesitante, me aproximei da porta e olhei através do olho mágico, mas não consegui ver ninguém do outro lado, então dei de ombros e voltei para a cama.
Mais alguns minutos se passaram e, quando eu já estava quase pegando no sono novamente, as batidas retornaram. Tive um pressentimento estranho quanto àquilo, ainda assim acabei concluindo que deveria ser apenas uma brincadeira de mau gosto, feita por algum dos rapazes da universidade, então abrir a porta para tentar descobrir quem poderia ser o engraçadinho, mas de fato não havia ninguém lá, nenhuma alma viva.
- O sono deve estar afetando meu cérebro.
Antes de fechar a porta, enquanto falava comigo mesma, um vento gélido soprou pelo corredor e me fez ter um forte arrepio por todo o corpo, uma sensação terrivelmente ruim e apavorante, como se algo realmente me ameaçasse, então fechei e tranquei a porta às pressas, antes de correr de volta para a cama. (...)
No dia seguinte, acordei cedo e saí para me exercitar. Gostava de correr por todo o bairro, mas como ainda estava me sentindo estranha, voltei para o alojamento após dar apenas uma volta no campus. Infelizmente a sensação ruim só fez piorar, pois assim que cheguei, vi que a minha porta estava aberta.
Desesperada, entrei correndo para ver o que estava acontecendo. Tentei ligar as luzes, mas não havia energia e, ao olhar através da penumbra, acabei notando que todos os móveis estavam fora do lugar. Tratei de verificar o quarto inteiro o mais rapidamente possível, para saber se algo havia sido roubado, mas estranhamente estava tudo em seu devido lugar, apenas os móveis haviam sido mexidos, então acionei as autoridades do campus e expliquei o ocorrido.
Horas depois, me certifiquei duas vezes de que a porta estava devidamente trancada, para só então ir ao auditório assistir às aulas. O caminho mais curto até lá passava por dentro do campo de futebol, que naquele momento deveria estar praticamente deserto, pois não mais que meia-dúzia de pessoas costumava seguir por ali durante o horário de aula. No entanto, um desconhecido veio na direção oposta à minha, justamente quando comecei a cruzar o gramado.
Era um homem muito esquisito, alto como os rapazes da equipe de basquete, com longos e desgrenhados cabelos loiros, que lhe cobriam boa parte do rosto, enquanto que o resto do corpo era recoberto por um sobretudo preto que lhe descia até os pés, quase como a batina de um padre, o que me deixou muito apreensiva. Ainda assim eu não recuei, sabia que haviam câmeras nos arredores, sem mencionar os demais alunos e professores que transitavam ao largo do campo de futebol, testemunhas que me davam a confiança necessária para prosseguir, apesar da presença intimidadora que aquele homem emanava.
Quando os nossos caminhos por fim se cruzaram, o escutei sussurrar algo que arrepiou todos os pelos do meu corpo, algo como "Não deveria ter aberto a porta!", mas não tive certeza se era exatamente isso, pois, como eu disse, foi apenas um sussurro. O fato é que, ao ouvir aquilo eu imediatamente me virei, tentando olhar diretamente para o homem de sobretudo, mas ao fazê-lo vi que o mesmo já não estava mais lá. Como em um passe de mágica, aquele homenzarrão havia simplesmente desaparecido.
- É... Definitivamente, eu estou ficando maluca.
Uma risada nervosa tomou conta de mim por alguns instantes, mas consegui me recompor e dar seguimento ao meu dia, como se nada tivesse acontecido. O estresse diário acabou me afastando daqueles pensamentos sombrios, de modo que, até o fim da tarde, eu já estava completamente alheia a tudo aquilo, como se tais eventos agora fizessem parte de um passado distante. (...)
À noite, quando enfim retornei ao meu quarto, a primeira coisa que fiz após trancar a porta, foi tentar ligar as luzes novamente, mas ainda não havia energia, então acendi a lanterna do meu celular para ir iluminando o caminho, infelizmente o que acabei vendo poderia muito bem se resumir a absolutamente tudo o que eu não queria ver ou mesmo acreditar...
Aquele mesmo homem estranho de sobretudo preto estava bem na minha frente, olhando diretamente para mim, porém não haviam olhos em sua face, apenas dois buracos vazios que se mantinham profundamente escuros, mesmo quando a luz da lanterna os atingia diretamente, como se a sua escuridão fosse tão absoluta que até a própria luz acabava sendo consumida por ela.
Naquele momento eu quis recuar, queria gritar, me virar e fugir daquele lugar, mas não podia, eu já não era capaz de me mover...
Meu medo era tão incapacitante, que a única coisa que eu conseguia fazer era continuar olhando para o homem. Não pude desviar o olhar quando ele removeu o sobretudo, revelando seu corpo assustadoramente magro, pálido e repleto de feridas abertas de onde brotavam larvas e vermes. Ou quando o seu cheiro pútrido, tal qual o de um cadáver parcialmente decomposto, subiu e tomou as minhas narinas. Não pude desviar o olhar nem mesmo quando aquele homem se aproximou de mim, expondo as laterais descarnadas de seu rosto, antes ocultas por sua longa cabeleira.
Olhar para aquilo e ver seus dentes apodrecidos e pontiagudos, através dos buracos em suas bochechas, era algo tão perturbador que me fez perder o pouco de controle que me restava, o que só notei ao sentir o calor da minha própria urina, enquanto esta já me descia pelos joelhos.
Ainda sem reação e com os olhos fixos nos olhos obscuros daquele homem, eu o senti tocar em meu ombro, antes que o mesmo enfim repetisse a frase de horas atrás.
- NÃO DEVERIA TER ABERTO A PORTA!
***
Acordei no meio da tarde, suando frio e com o coração acelerado. E ao olhar em volta, percebi que ainda estava na biblioteca e que aquele velho livro de contos ainda estava bem na minha frente, aberto na metade de um conto chamado "A Estação", o que me tranquilizou rapidamente. Bom, ao menos até que eu começasse a ouvir alguém batendo com força na porta da biblioteca.
FIM...
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Contos de Coriander
Historia CortaSINOPSE: Uma pequena coleção de contos, totalmente voltada à expandir o universo de Sob o Olhar da Noite.