O Monstro

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Outra noite eu vi algo um tanto peculiar e assustador. Sua cabeça surgiu por sobre o muro do cemitério. A pouca luz de um poste no fim do beco pelo qual eu passava, revelava uma pelagem marrom escura, quase preta. Seus olhos, amarelos e com riscos marrons perto da pupila, me acompanhavam de forma preguiçosa. Sua respiração, tão alta, quebrava o silencio angustiante que o local produzia. A coisa não expressou qualquer reação de que me atacaria. Mas com toda certeza me deixou incomodado. Seu rosto possuía traços tão humanos que era como estar olhando para uma pessoa fantasiada. Ele me encarava como se pudesse ler minha alma, saber cada um dos meus piores medos e usar isso contra mim. Talvez até estivesse me desafiando a fazer qualquer movimento que o fizesse atacar.

Abaixei a cabeça, tentando evitar o olhar daquela coisa, mas quanto mais eu me afastava, mais sentia seu olhar sobre mim. Era como se ela pudesse sentir o medo que exalava por meus poros. Como se suas orelhas pontiagudas pudessem ouvir o som do meu coração batendo mais rápido. E mesmo ao longe, com meus pelos se arrepiando, eu podia sentir seu olhar sobre mim.

Afastei-me a passos rápidos do cemitério, jurando que nunca mais passaria por ali. E assim fiz. Os dias se seguiram e por mais que eu desejasse chegar rápido em casa depois da aula, preferia tomar a distância mais longa a cortar caminho por aquele estranho beco. Mas a sensação de conforto e segurança não durou muito. Afinal, nada de bom dura por muito tempo, não é?

Na noite anterior a essa, enquanto voltava do colégio ouvindo música em meu celular, senti uma leve sensação de estar sendo observado. Como havia certo movimento na rua, devido ao fato de ser sexta feira, pensei que talvez alguém que me conhecesse estivesse olhando para mim e tentando chamar minha atenção.

Nunca estive tão enganado.

Ao me virar para olhar para a pessoa, me deparei com aqueles enormes olhos amarelos me encarando do alto do muro de uma casa. A coisa ofegava, enquanto uma fina linha de saliva escorria pelo canto esquerdo de seus lábios. Mas como da outra vez, ela nada fez, seus olhos estavam fixos em mim a ponto de nem ao menos piscas, e me seguiram. Sem mesmo virar a cabeça.

Nesta mesma noite, muito mais tarde, sonhei com a criatura. Estávamos em uma rua deserta, um pouco abaixo da minha. Lugarzinho mal iluminado, onde várias casas estavam em construção. Uma estranha neblina pairava sobre o lugar e o vento chiava baixinho, passando por entre as pilastras das construções. E ali, em um ponto escuro surgia ele. Seu corpo, tão grande quanto o de um porco, sacolejava enquanto a coisa andava. Suas orelhas pontudas pareciam captar ruídos que nenhum ser humano seria capaz de escutar. Seus olhos amarelos fixamente para mim, como se lessem medos que eu nem sabia da existência. A coisa se sentou, pareceu estufar o peito e nada fez. Eu tentava correr, gritar e fazer outras coisas, mas para todos os lados que eu olhasse, lá estavam eles. Aqueles malditos olhos amarelos naquela face quase humana. Em certos momentos, era quase possível ver um deleite de puro prazer naquela criatura. Como se ela estivesse se divertindo com meu tormento.

Acordei assustado, sentindo uma atmosfera pesada no ar. Olhei para os cantos escuros do quarto, onde uma massa muito mais escura que o próprio breu se encontrava abaixada. Recuei para o canto da cama, enquanto meu coração batia com força. Por mais que eu soubesse que não havia nada ali, minha mente gritava que aquela coisa logo apareceria, que seus olhos brilhariam no escuro e logo em seguida ela saltaria sobre mim, dilaceraria minha garganta e me deixaria sangrando até a morte. Mas como das outras vezes, isto não aconteceu. O resto da noite se arrastou de maneira penosa. O sono havia simplesmente desaparecido e todas as vezes em que eu piscava, lá estavam aqueles malditos olhos, me encarando de dentro da escuridão de minha mente.

Com a chegada do dia resolvi que encararia meu medo. Que encontraria aquela coisa e daria um fim definitivo a tudo isso. Por mais que meus pensamentos gritassem que era a pior ideia que já tive na vida.

No fim da tarde fui até a praça da cidade encontrar com alguns amigos do colégio. Sentamos nos bancos e jogamos conversa fora até altas horas da noite, enquanto enchíamos a cara. Afinal eu precisava de estimulo para encarar meu pior pesadelo. Por fim, quando cada um seguiu o seu rumo para casa, reuni toda a coragem que uma pessoa bêbada tem e segui para aquele beco ao lado do cemitério. Então segurei com força a garrafa de cerveja e respirei fundo. Antes mesmo de dar o primeiro passo já soube que ele estava lá. Sua enorme cabeça surgiu de trás do muro, me olhando de dentro do cemitério. Seus olhos pareciam maiores e mais amarelos esta noite. Suas enormes garras agarravam com força o concreto branco. O odor adocicado das damas da meia noite preenchia o ar ao nosso redor. Enquanto me aproximava, a coisa se ergueu, como que ficando apenas sobre duas patas e revelou seu tórax largo, soltando um grave rosnado logo em seguida. E em um só movimento, a coisa saltou por cima do muro, caindo a poucos centímetros de mim.

Segurei a garrafa com mais força, a ponto dos nós de meus dedos ficarem brancos. Eu tremia dos pés à cabeça. Meu coração batia forte e rápido, ecoando em minhas têmporas. Engoli em seco, olhando diretamente para os olhos daquela criatura. Toda minha vida passava diante de mim, cada um dos melhores momentos que já tive até aquele momento. Pensei em gritar, mas minha voz simplesmente não saia.

A coisa mostrou seus dentes, revelando presas pontiagudas que estavam prontas para rasgar e arrancar grandes pedaços de minha pobre carne. O rosnado subia por sua garganta, enquanto baba escorria de sua boca. E foi ai que aconteceu.

Suas patas bateram pesadamente contra o chão, levantando um pouco de poeira. Seus passos pesados soavam altos enquanto ela corria em minha direção. Seus olhos estavam fixos em mim, até o momento em que fechei meus olhos e me preparei para morrer. Um leve vento passou por sobre minha cabeça e logo em seguida um grito angustiante cortou a noite.

Se eu estava morto, nada sentia.

Abri os olhos e me vi parado no mesmo lugar, algo quente escorria por minhas pernas, encharcando meus tênis. Olhei para meu próprio corpo me certificando de que tudo estava no lugar. A garrafa agora se encontrava no chão, quebrada em vários pedaços e atrás de mim alguém gemia. Me virei e me deparei com uma das cenas mais estranhas de minha vida.

Ele estava sobre o corpo de uma pessoa, cujo rosto estava escondido por uma máscara escura. Seus dentes se fechavam ao redor do braço da pessoa, que gritava por ajuda. Ao seu lado se encontrava uma faca de cozinha, agora manchada com o seu próprio sangue. Senti uma enorme vontade de rir, chorar e correr, tudo ao mesmo tempo. O monstro que eu tanto temia, na verdade era um enorme Pastor Alemão.

Veja bem. Por todos esses dias a coisa que mais me aterrorizava acabou por salvar minha vida. E depois daquela noite, aqueles enormes olhos amarelos passaram a me dar segurança sempre que voltava da escola. Era quase como se ele fosse meu guardião. Bem, até aquele certo dia, em que não eram mais aqueles olhos amarelos que me encaravam de cima do muro...

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