A pequena lanchonete no centro de Santa Lucia começava a encerrar seu expediente. Os poucos clientes que ainda continuavam ali,l terminavam seus lanches e começavam a se retirar. Do lado de fora, um intenso calor predominava a cidade, tão forte que o ar condicionado da lanchonete estava no máximo, proporcionando uma temperatura amena e agradável. Um pouco atrás do balcão, na parede onde se localizava a porta que levava até a cozinha e de lá para os fundos, havia um grande relógio analógico, cujos ponteiros pretos marcavam dez e quarenta e cinco da noite.
Sarah estava sentada em um pequeno banco de madeira atrás do caixa. Seu cabelo escuro se escondia sobre uma pequena rede transparente, que era obrigatório de se usar. Seus olhos, grandes e castanhos, observavam atentamente os dois últimos clientes que ali ainda estavam. A ansiedade fazia seu estômago revirar, e algumas vezes lhe causava tremelhiques. A cada minuto ela desviava o olhar dos clientes e o levava até o relógio, contando os minutos que ainda faltavam.
No exato momento em que o relógio marcou dez e cinquenta, o sino da porta de entrada soou e por ela passou um homem. Seu rosto era sério, rugas profundas surgiam ao redor de seus olhos escuros. O cabelo começava a ganhar fios brancos. Ele vestia roupas normais; calça jeans, camiseta escura e um grosso moletom também escuro. O homem caminhou até uma das várias mesas vazias ao lado das grandes janelas, cuja visão era direcionada para a avenida, e se sentou sem expressar reação nenhuma.
Sarah sentiu a raiva fervilhar dentro de si e se levantou de má vontade, indo até o homem. Durante o percurso, o xingou de vários nomes mentalmente, e amaldiçoou até a quinta geração de sua família, enquanto lançava olhares para o relógio por sobre o ombro. Ela segurou a caneta com força e parou em frente à mesa na qual ele estava sentado.
- Senhor, já estamos fechando. – Disse Sarah, a voz com um leve tom fanhoso.
O homem não respondeu. Tão pouco olhou para Sarah. Seu olhar continuou vago e perdido, olhando apenas para o lado de fora.
- Senhor, você vai querer alguma coisa? – Sarah bateu com a caneta em seu caderno de anotações, impaciente.
Ela cutucou o homem, achando que talvez ele fosse surdo.
Novamente, o homem não a respondeu. Mas dessa vez, seu olhar se voltou para a garota, demorando-se por um bom tempo nela.
Sarah sentiu um leve incomodo ao olhar para aqueles olhos. Algo dentro dela se revirou, fazendo seu coração se inquietar e bater mais forte. Sarah sentiu como se toda a felicidade do mundo estivesse sendo sugada naquele instante, e que sua mente berraria a loucura se continuasse a olhá-lo.
- Senhor, por favor. Eu preciso que você saia. Nós já encerramos por hoje. – Disse, desviando o olhar. E agora percebendo que só haviam eles dois ali.
O homem se levantou, para a surpresa de Sarah, mas não se encaminhou para a porta. Ele caminhou para trás do balcão, com passos largos e desengonçados. O que fez Sarah acreditar que talvez ele estivesse apenas bêbado, ou algo pior.
Sarah acompanhou o homem com o olhar. O viu passar pelo balcão, passar pela porta que levava a cozinha, derrubar algumas panelas, dar meia volta e voltar para trás do balcão. O medo agora crescia em seu peito. Tudo em sua cabeça gritava que aquilo era um assalto, e que ela não teria muito o que fazer. Mas o homem nada fez. Muito pelo contrário. Ele continuou parado atrás do balcão. Seus olhos fixos na garota, sem expressar reação nenhuma.
Os minutos pareciam se arrastar enquanto os dois se encaravam. A atmosfera, antes aconchegante e agradável, agora havia se transformado em tensa e assustadora. Sarah não sabia o que fazer. Suas mãos tremiam e seu coração batia com força dentro do peito. Cada neurônio de seu cérebro parecia gritar para que ela desse meia volta e saísse dali. O tic tac do relógio soava tão alto, que parecia estar dentro de sua cabeça. E então, após um longo segundo reunindo toda a sua coragem, ela disse:
- Senhor, se você não sair agora, eu irei chamar a polícia. – Ela agradeceu em silêncio, a qualquer deus que pudesse estar ouvindo, o fato de sua voz não ter falhado.
E dito isso, o homem se moveu. Primeiro, mudou o peso do corpo de um pé para o outro. Depois, olhou em direção a janela, suspirou alto e caminhou em direção a Sarah, passando por ela e seguindo em direção a porta. E após o sino soar, se virou e seguiu em direção à avenida.
Sarah o acompanhou novamente com o olhar, e suspirou aliviada quando o viu desaparecer em meio a uma das ruas laterais a avenida. Ela caminhou até o balcão, sentindo as pernas trêmulas. Se apoiou sobre ele e riu, de uma forma como nunca havia rido antes.
Ela escutou o sino soar novamente e levantou a cabeça bruscamente. O coração batendo novamente com força.
- Por que você ainda não começou a fechar? – Perguntou outra garota.
Seu nome era Julia, a gerente da lanchonete. Julia não era tão mais velha que Sarah. Possuía longos cabelos loiros e olhos cor de mel.
- Você não viu o cara estranho que tava aqui? – Perguntou Sarah.
- Não, você sabe que não gosto de fumar aqui na frente. – Julia parou atrás do caixa e começou a contar as notas, fazendo o fechamento. – O que aconteceu?
- Sei lá. Ele não falou nada, só ficou me encarando de um jeito estranho. Ai se levantou e andou por aqui, e depois ficou parado bem ai onde você está. E quando disse que ia chamar a polícia, ele foi embora.
- Euem. Essa cidade tem cada maluco. – Julia colocou o dinheiro em um envelope. – Vou ver se os fundos estão trancados e a gente fecha, okay?
- Tá bom. – Sarah tirou a rede que prendia seu cabelo e o deixou cair livremente sobre os ombros.
Sarah tirou a última bandeja deixada pelos dois últimos clientes e a levou para a cozinha. Quando retornou para a frente da loja, sentiu um leve odor podre no ar. Ela olhou ao redor, procurando pela fonte do mau cheiro, mas nada encontrou. Então se dirigiu para as janelas, começando a fechar as persianas. Estava na última quando notou algo que a fez gritar e pular para trás.
O homem estava parado do outro lado da janela. Um enorme sorriso preenchia seu rosto, mas seus olhos continuavam vazios e sem expressão nenhuma. Ele se aproximou do vidro, colando seus lábios nele e em seguida pareceu falar algo sem som algum, fazendo com que seu hálito embaçasse o vidro.
Julia surgiu tão rápido que quase derrubou Sarah.
- Eu vi um cara lá no fundo. – Disse, então seguiu o olhar da amiga e soltou um grito. – É ele.
- Foi esse maluco que entrou aqui. – Gritou Sarah.
O homem andava lentamente para a esquerda, os lábios ainda no vidro, indo em direção a porta. Mas, Sarah foi mais rápida. Ela correu e a trancou, antes mesmo do homem alcança-la.
- Vamos chamar a polícia. – Gritou Julia, tirando o celular do bolso traseiro.
Ela discou o número com dedos trêmulos e levou o aparelho a orelha esquerda. Mas a chamada não foi completada.
O homem agora batia contra a porta. Seus punhos fechados atingiam o vidro com força, fazendo-o vibrar. Estranhos grunhido subiam por sua garganta e se propagavam para fora de sua boca, mesmo com seus lábios abertos naquele estranho sorriso. E então ele se afastou, ainda grunhindo. Agora, aquele estranho som se parecia mais com uma risada.
Sarah e Julia se entreolharam. Ambas expressando o mais puro pavor. Seus olhos continuavam fixos na direção da porta. Tão petrificadas, que nem ousavam piscar.
- Qu-que merda foi essa? – Perguntou Julia, dando um passo em direção a porta.
- Ta loca? – Sarah a segurou pelo pulso.
O som daquela risada estranha ainda se propagava pelo ar. Por várias vezes, parecia estar vindo de todas as direções possíveis.
- Garota, temos facas, frigideiras e um monte de coisa pra dar na cabeça desse idiota. – Disse Sarah a encarando. – Não podemos ficar aqui paradas.
- Verdade, né. – Disse Julia, ainda trêmula.
Sarah se encaminhou para a cozinha, com falsos passos decididos. O medo a consumia de forma avassaladora. Ela jurava para si mesma que a situação não poderia ser pior do que parecia. Seu pé esquerdo tocou o chão da cozinha quando a luz acima de sua cabeça piscou várias vezes e então se apagou com um estalo seco, seguido de um grito agudo. Ela se virou bruscamente, olhando para onde Julia estivera a poucos segundos antes.
- Julia? – Chamou.
As luzes alaranjadas dos postes lá fora projetavam sombras disformes e estranhas para o lado de dentro. Revelando também as formas sombrias das mesas e cadeiras espalhadas pelo local.
O grunhido, ou risada como Sarah continuava a repetir para si mesma, retornou para a porta da frente, seguida de uma silhueta alta. O homem encostou novamente seu rosto na porta. O hálito mais uma vez embaçando o vidro. Mas agora havia algo de diferente nele. Seus olhos brilhavam, como se tivessem sido substituídos por duas pequenas estrelas. Seu rosto estava mais esquelético, e a pele tão esticada que era possível ver o contorno de seu maxilar, e quando ele falou, ao invés de uma voz masculina, Sarah escutou a voz de Julia.
- Está tão frio aqui. – Disse a voz. – Me tira daqui, Sah. Por favor.
Sarah não sabia o que fazer. Seu corpo parecia ter petrificado no lugar onde estava. Tantos pensamentos se formavam em sua cabeça, que todo seu crânio doía. Mas quando falou, sua voz saiu tão firme que ela própria se surpreendeu.
- O que você quer de mim?
Mas o homem não respondeu. Ao invés disso, se afastou, caminhando de volta para o meio da avenida. E ali ele parou embaixo de um poste. O sorriso macabro ainda preenchia-lhe os lábios. Seus olhos brilhavam com mais intensidade.
As horas seguintes se passaram lentamente. Cada minuto se arrastava, como se o próprio tempo estivesse zombando da garota. O tic tac constante a fazia querer gritar, até seus pulmões doerem. Sarah olhava constantemente para o relógio, se questionando como ninguém em sua casa, e até mesmo sua namorada, não haviam sentindo sua falta. As lágrimas vieram, juntamente com o sussurro daquele homem.
- O que você vai querer, senhor? – Disse uma voz igual a de Sarah. – Estamos fechando. O senhor precisa sair.
Ele riu, enquanto Sarah recuava para longe das janelas.
Os ponteiros escuros do relógio deslizavam lentamente acima da superfície branca que continha os números. Sarah estava sentada atrás do balcão. Os braços abraçavam com força os joelhos. Do lado de fora o homem assobiava uma melodia lenta e sinistra. Suas mãos estavam apoiadas no vidro, e seus olhos brilhantes observavam tudo dentro do lugar.
O homem parou de assobiar. O largo sorriso voltou a preencheu-lhe os lábios e ele bateu três vezes no vidro. Seus olhos se dirigiram para o relógio, se certificando que eram 3:15 da manhã.
- Sarah. – Sua voz soou áspera e profunda. – Chegou a minha hora.
O homem se moveu, caminhando em direção a porta da frente. Seus longos dedos tocaram a pequena maçaneta de ferro e ele a forçou, fazendo a porta se abrir com um rangido estridente. O pequeno sino soou duas vezes, fazendo o som se propagar pela lanchonete. O homem se dirigiu para o balcão, com passos lentos. Apoiou suas mãos na borda e se curvou, olhando para baixo.
- Aqui, filho da puta!
Sarah o atingiu na lateral da cabeça com um martelo de amassar carne, fazendo o homem recuar. Ela desferiu outro golpe, agora o atingindo no queixo. Sangue escorria pelo corte que se abrira. Era um sangue escuro, quase como piche.
- Acha que pode entrar no meu trabalho, e me aterrorizar assim? – Sarah avançou, o martelo em punho.
O homem urrou. Seu corpo estremeceu e seus olhos brilharam com muito mais intensidade. Seus braços se alargaram, assim como todo seu troco. Seu rosto se desfigurou, pedaços de pele se desprenderam, deixando a carne escura a mostra.
Ele avançou na direção de Sarah. Seus olho brilhavam tão intensamente que chegavam a cegar a garota, forçando-a recuar cobrindo os próprios olhos. Sua boca se abriu, maior do que deveria. Seus braços se alargaram e seus dedos se fecharam ao redor do pescoço de Sarah, pressionando seu corpo contra o vidro.
Sarah gritou, chutando o ar. O rosto do homem se aproximava do seu lentamente. As luzes do lado de fora piscaram, se apagando logo em seguida. A escuridão caiu sobre o local, deixando apenas os dois pontos brilhantes que se aproximavam cada vez mais. O mundo parecia girar ao seu redor, enquanto sua mente se apagava aos poucos.
- Sarah! – A voz de Julia soou a sua esquerda, fazendo Sarah abrir os olhos. – Você tá dormindo?
Sarah levantou a cabeça. A luz fraca no teto a fez piscar com força, enquanto sua visão desembaçava. Ela moveu os olhos e encarou Julia. Então em um impulso, abriu os braços e abraçou a garota.
- Você tá viva. – Sussurrou, enquanto lágrimas rolavam por seu rosto.
- É claro que eu tô, maluca. – Julia a empurrou. – Por que não estaria?
Sarah olhou ao redor, procurando qualquer sinal do homem de olhos brilhantes. Em seguida olhou para o relógio, notando que não haviam se passado nem dois minutos desde que os últimos clientes saíram. Um misto de felicidade e alívio preencheu seu peito, a fazendo soltar um longo suspiro e começar a rir logo em seguida.
- Você está bem, garota? – Julia a encarava, completamente confusa. O cheiro suave de cigarro emanava de suas roupas.
- Sim. – Sarah respondeu, levando a mão esquerda até o peito. – Acho que só tive um pesadelo.
- Que bonito, em. Dormindo no trabalho. – Julia riu. – Vamos trancar tudo. Esse lugar me dá arrepios de noite.
- Vamos. – Sarah tirou a touca, deixando o cabelo cair sobre as costas. – Essa cidade me dá arrepios durante a noite. Parece que ela está viva, e nos observando em todo canto.
Os minutos seguintes se passaram rápidos. Sarah e Julia trancavam a caixa registradora quando escutaram suaves batidas na porta. As duas levantaram suas cabeças, quase como instintivamente, e ao olharem para a porta Sarah gritou. Parado do outro lado do vidro havia um homem. Os olhos esbugalhados olhavam diretamente para ela. Um largo sorriso estampava seu rosto e em sua mão ele segurava algo metálico, que refletia a luz do poste do outro lado da rua.
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Histórias Assustadoras do Chão
TerrorBem vindo ao Chaoverso. Aqui você encontrará uma série de histórias arrepiantes baseadas em monstros e criaturas que me atormentaram durante anos. Perdoe o jeito cru. Afinal é um tanto quanto pessoal. Não me responsabilizo por pesadelos ou sensaçõe...