Cuarto

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Escolha
substantivo feminino.

1. ato ou efeito de escolher.

2. preferência que se dá a alguma coisa que se encontra entre outras; predileção.

3. injustiça, em muitos casos. Linha invisível entre o nosso maior azar e a nossa única sorte.

(...)

Sinto que essa noite renderia tanto para os clientes quando para mim pois é  relevante que as gorjetas que eu receberia seriam tantas que não caberiam no bolso da minha calça jeans. O que já é motivo suficiente para que ao menos o meu estômago desse uma pausa dessas reviradas que dava sempre que eu coloco meus pés na boate.

Entro com os mesmos passos calmos no camarim agitado. Substituo meu vestido florido pela regata prata de stress e a jaqueta de couro, sou lenta em cada movimento pois sei o que me esperava lá embaixo. Mas isso não faz com que eu me importe de ficar seminua na frente das garotas por alguns segundos a mais, afinal, estamos todas no mesmo barco e isso seria a minha última preocupação em meio a bagunça que é a minha vida. Na verdade nada é tão bagunçado quanto parece, mas prefiro não procurar por problemas que com certeza encontraria.

Eu os atraio de uma maneira quem nem a própria ciência conseguiria explicar.
Já vestida, solto meus cabelos pronta para começar meu turno. A porta se abre e Kabila aparece sorridente como sempre, para variar um olhar devastado de segundos intenções. Eu retribuo – o sorriso, não o olhar. Porém o meu rapidamente se desfaz no segundo seguinte que Anabel se destaca por trás de Rizos, com as mãos enfiadas nos bolsos do moletom, a expressão que sempre me dá uma falsa sensação de passividade e logo o desconforto em meu estômago se faz presente em excesso. Seus olhos estão prontamente fixados em mim de tal maneira que creio conseguir senti-los perfurar meus globos.

— Macarena! Que bom que chegou cedo! – Anabel exclamou antes que Kabila pudesse dizer alguma coisa. Paro tudo o que estou fazendo para ao menos tentar prestar atenção, não sei se consigo, de repente fico nervosa imaginando o motivo óbvio para ter que me prestar à sua presença. — Você vai ficar no palco essa noite.

Está ai uma surpresa, ainda que nada animadora. Meus ombros caem e meus músculos descongelam, porém nada que substitua meu mal-estar.

— Mas hoje é domingo, não é o meu dia, eu nem trouxe uma roupa para isso.

— Ordens do chefe – ela sorri. Como uma maníaca, se aproxima se recostando no armário ao lado. — Você não vai querer saber o que acontece quando alguém desobedece uma ordem vinda diretamente lá de cima.

Como se ele fosse um deus, penso reprimindo um suspiro.

— E a roupa?

— Tenho certeza que tem algo por aqui que te sirva.

Engulo seco, mordo lábio, finalmente suspiro. Examino em minha volta todas as peças minúsculas e ousadas que pesam nos cabides da duas araras esquecidas ao lado de manequins empilhados.

— Está bem, não é como se eu tivesse outra escolha.

— Com o tempo você vai perceber que sempre haverá uma escolha. – no momento as suas palavras não me causaram o menor efeito, porquê o meu único foco era fazer com que o tempo passasse o mais rápido possível.

Fico menos contida quando Anabel dá as costas e saí sem se dirigir para mais ninguém. Kabila, que se mantinha quieta, encarando a porta enfim murmura:

— Nunca vou engolir essa mulher, ela é estranha demais! – concordo. Juntas seguimos até as araras e fico na dúvida em qual roupa era a menos chamativa. Pelo menos, nesse caso, eu tinha opções. — Mas na real, loira, nenhuma garota daqui fica mais sexy do que você nessas roupas.

— Você sabe que eu não gosto desses dias, se eu pudesse ficaria só servindo ao invés de me expor para esse bando de velhos sem um pingo de noção.

— Eu queria trocar de lugar com você, se assim te fizesse feliz.

Considero suas palavras, mas preferia não arriscar. Acaricio seu rosto e Kabila sorri de um jeito meigo.

— Ter uma amiga como você aqui dentro já me faz muito feliz. – Ela fica sem graça, abaixa a cabeça, uma cena muito rara de se ver.

— Você é a única que tem o poder de ser mais do que isso. Não precisa ser para sempre, sabe? Eu ficaria muito feliz se fosse por uma única noite.

Eu fecho os olhos e inspiro profundamente, fantasio as sensações que Kabila poderia me proporcionar caso eu cedesse. O quão amada eu poderia ser. Quando encerro esse pequeno vislumbre, percebo que estamos tão perto que sua respiração quente bate contra o meu rosto e a necessidade de me afastar some num só segundo.

— Eu queria. Eu queria que você tivesse alguma ideia do quanto isso é complicado para mim. – murmuro, dando um passo para trás e trago ao meu peito uma roupa qualquer. Agora eu que me sinto desesperadamente sem graça, de uma maneira baixa e sacana. — Te vejo lá embaixo.

(...)

O que eu definitivamente não queria agora era pensar na expressão abalada de Kabila quando a deixei para trás há alguns minutos, então por mais egoísta que isso seja era ainda mais torturante ter que focar no prazer que eu indiretamente devo proporcionar aos clientes da boate. Não havia outra escolha.

Passo pelas mesas, oferecendo o meu melhor sorriso, falso, mas o melhor. Com leveza, dependendo de cada perfil, arranho levemente suas nucas e eles se viram, esbanjando um sorriso lascivo e nojento.
Uma pop espanhol e lento guia meu corpo enquanto eu mesma me guio até o palco maior. Havia outros menores espalhados pelos quatro canto da boate, entre pilastras destacadas em uma luz vermelho neon, o que deixava todo o ambiente escuro e só podia se ver o contorno de nosso corpos se movimentando de um lado para o outro.

Além da roupa, também troquei minhas botas confortáveis por um par de saltos e meia três quartos. Eles machucam meus calcanhares mas nada que me impedia de descer, até ficar poucos centímetros de distância do chão. Abro o pernas  ouço uma chuva de assobios acompanhados de comentários sexualizados.

Fecho os olhos, jogo meus cabelos para cima e uso as mãos para segura-los. Já não consigo mais sentir a insegurança, mas ainda me falta uma leveza que tenho razão de não querer e não conseguir ter. Aqui não é pra mim, esse lugar, esse palco, essas roupas... por mais que caibam e que eu faça parecer que sim, estou bem com isso, minha única vontade era de correr para o mais longe possível.

Quando abro os olhos perco o foco. Não sei para onde olhar, se fixo na plateia ou no bar mais a frente, onde reconheci os grandes cachos de Kabila, seu corpo inclinado para frente do balcão enquanto cantava uma das nossas colegas de trabalho. Resolvo fitar um pouco mais acima, estremeço com que vejo.

Como nunca havia reparado na grande janela sobre todas aquelas holofotes, agora apagados? Mas a luz que saía de lá era suficiente para iluminar a figura assustadora do meu chefe, em um terno cinza e óculos, como na primeira vez que o conheci. Sandoval ergue um copo em minha direção, brindando ao que só ele sabia o quê. Mesmo longe, numa quase escuridão, a imagem dele me fez retorcer por dentro. Talvez pela imponência, ou o fato de que sou, de certa forma, submetida a ele.

Esqueço o que vi, esqueço que algum dia estive diante dele e volto aos meus passos e movimentos lentos. Resolvo encarar as silhuetas do mesmos homens adúlteros distribuídos em mesas à minha frente. Não penso que o contraste seja tão ruim quanto os outros cenários.

É de imediato quando meu olhar aguça num pontinho minúsculo e laranja, uma pequena brasa acessa. Ela ascende e rapidamente apaga. Quando menos espero a música termina, as luzes se apagam completamente e essa é a minha deixa. Porém não me movo até aquela luzinha se ascender e flutuar por entre o breu.

Num segundo a deixo me guiar, desço pela parte da frente do palco e corro distraída. Agradeço por memorizar cada centímetro daquele espaço e quando as luzes voltam ao seu vermelho neon natural, já estou no estreito corredor que leva ao porta de emergência dos fundos.

Como imaginei, não estou sozinha.

Sou prensada contra a parede e ela não me dá nenhum segundo a mais quando encosta a sua boca do meu ouvido. Sua respiração quente bate contra a minha pele e o cheiro do cigarro invade minha consciência.

— Esperei por esse momento, sabia? – sussurrou.

Meu rosto estava virado para o outro lado, porém eu sentia que Zulema estava tão disposta a me tomar que essa possibilidade fez com que os pelos do meu corpo arrepiarem.

— Não deveria.

— Você que quer isso? Não me querer por perto... – seu nariz passa por trás da minha orelha. Suspiro, prendendo meus lábios por conta do medo de acabar expressando mais do que o necessário. — eu não te atraio? Ou você prefere que sejamos como as outras pessoas? Já conversamos sobre isso, acho que já está na hora de me conhecer um pouquinho.

— Eu não posso. – Ela segura minha mandíbula, me virando para encarar seus olhos mas algo há mais me chama a atenção. Ela está... diferente.

Seu cabelo estava curto, repicado para todos os lados e tingido de loiro. Vestia um conjunto rosa chá, saltos e me prendi um mais alguns segundos no decote de seu espartilho.

— O que é isso?

— Não acha que eu não sei quem é o seu chefe? – um sorriso escapa de seus lábios. — Sandoval é um velho conhecido, temos uma história e está longe de ser de amor.

— Então está aqui por causa dele? O que te faz pensar que pode me colocar no meio disso?

— Não estou aqui por causa de ninguém. Digamos que foi um acaso, uma obra do destino. – balanço a cabeça e Zulema com indiferença, não abre nenhum espaço entre nossos corpos. — acredita nisso?

— Eu deveria, acho que assim eu consigo apagar a imagem que me fez ter de você mesma. – confesso, um pouco relutante.
Sei que deveria me calar, mas seus olhos, seus gestos, até mesmo a sua respiração parecia querer me desafiar.

— Creio que estou no direito de saber que imagem é essa. Mas seja qual for, duvido que está completamente errada, não quer sair daqui e provar isso?

Sorri desacreditada.

— Eu não vou pra cama com você.

— Por que não quer ou porque não pode?

— Não sinto desejo em você.

Eu posso ter mentido, mas não voltaria atrás, não daria aquele gosto à Zulema.
Contudo, como não previ, ela se aproxima, mesmo já estando a milímetros de mim. Prendo a minha respiração quando noto o tecido grosso de sua calça roçar contra a parte interna das minhas coxas nuas. Olho para baixo, mordo meu lábio involuntariamente.

Quando subo para o seu rosto, percebo que está séria e tão concentrada em algo exposto em minha expressão que nem eu mesma, se olhasse no espelho, conseguiria decifrar.

— Desejo é só uma palavra boba para quem quer ganhar flores e café da manhã na cama depois de uma fodida. – murmura. Não sinto a minha respiração ou ela está tão mistura à dela que me confundo. — eu posso te foder por horas e horas se isso for o que quer. Posso fazer isso bem aqui, se quiser. Posso ir atrás de qualquer pessoa que queira acabar com a sua vida, e acredite, eu vou, mas nunca irei aparecer na sua porta com um buquê de flores. Isso não faz o meu estilo... Eu Posso fazer as suas vontades, mas nunca vou suprir todas elas.

— Está dizendo isso por...

— É um exemplo, é claro. Você não me dá aberturas para nada.

Um sorriso nada sério substituí o enigmático e tenho vontade de aperta-la com toda a minha força, porém, como não posso – por falta de coragem – apenas invertendo nossas posições.

— Do que você vive? – pergunto. Não é isso o que ela quer? Que eu a conheça. — onde mora? Tem filhos? Tem namorado ou namorada? E casada? Divorciada? Tem família? Quantos anos você...

— Espera um pouco! – Zulema balança a cabeça e ri, pareço ter lhe contado a melhor piada do ano, mas eu estava séria e queria respostas. Agora estou interessada, não vou negar, ainda que o motivo fosse meio obscuro. — vamos com calma, isso não é o encontro mas você pode me encontrar aqui, depois de acabar esse showzinho.

Encaro o teto e suspiro sem escolha, se eu queria, não havia o porquê fugir pela terceira vez. Quando volto a minha atenção para ela, percebo que morde o lábio enquanto analisa todo o meu corpo.

— Maca? – a voz de Kabila nos tira desse momento confuso – ao menos para mim. Rizos se aproxima, um vinco fundo fazia presente entre as suas sobrancelhas e a sua postura muda assim que seus olhos caem sobre Zulema. — Tem alguma coisa acontecendo aqui?

Zulema se vira para ela, sorrindo abertamente, como em nenhuma outra vez.

— Estávamos apenas conversando sobre os nossos planos para essa noite, não é, Maca?

— É... eu... tenho que voltar. – preciso sair, quão iludida eu fui ao pensar que não fugiria dela novamente? — Me deem licença.

/////

Sei que não disse nada da fic aqui nessa plataforma até agora, mas é que não sou muito focada na watt então só entro aqui pra att a fic. Enfim, eu fiquei muito apaixonada pelos comentários de vcs e feliz por estarem gostando. Acho que agora só preciso explicar alguns pontos.

1. O "até enfim, juntas" não vai demorar tanto assim pra acontecer, afinal não imagino uma historinha de amor cheia de frufru e tals entre elas. Na minha concepção, Zurena é uma coisa mais carnal, entendem? Mas com aquela pegada de "eu mataria por você", como a Zulema daqui acabou de dizer. Espero muito que não desistam de ler por causa disso.

2. O motivo de não demorar muito pra q elas fiquem juntas, é que meu objetivo não é prolongar muito a fic. Não tenho um número exato de capítulos, afinal nem eu mesma confio nos meus planos haha mas não prometo ultrapassar 20/30 capítulos.

Enfim, é isso, beijinhos.

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