Num instante lá estava eu, presa naquele olhar cheio de incógnitas – por mais que eu tenha poucas vezes me colocado à frente dele. É estranho dizer que era quente? ou talvez essa sensação bizarra que me toma quando estou sob aquelas íris escuras e provocantes seja nada mais que um delírio. Na verdade, tudo era um delírio. Em que momento pretendo deixar de me enganar?
Sua mão se levanta em direção a mim, mas recua, ela ri e sopra a fumaça do cigarro. Meu ventre incinera com o calor, mesmo somente face a face, o que me fazia perguntar o quê mais Zulema Zahir poderia me oferecer fora deste sonho estupido.
Caso haja alguma possibilidade, é claro.
Segundos se passaram como as horas, mas eu não queria me desaprender do rosto dela, porém fui, quando a minha — nada discreta — melhor amiga pulou sobre mim como se eu fosse a porra de uma cama elástica.
— Maldita seja o dia em que te dei a cópia das chaves da minha casa. – grunhi, me cobrindo completamente. Ouvi o riso característico de Yolanda, sentindo-a me descobrindo novamente.
— Deixa de ser chata, Maca, você me deu com o propósito de eu vir aqui te atormentar. – a encarei séria, pedindo por uma explicação plausível. — Tá, droga! Não é como se fosse a primeira vez.
— Eu deveria me sentir feliz por ser acordada por um búfalo saltitando sobre mim?
— Desde que esse búfalo seja a sua melhor amiga, sim.
Me levantei indo em direção ao banheiro, Yolanda cobriu os olhos e gritou algo como ser cedo demais para me ver nua.
Nos conhecemos na faculdade, – na verdade uma noite antes– ambas no mesmo período de administração e bêbadas demais para contar quantas horas dançamos na pista de uma balada pop do centro de Valência. Mesmo sendo a mais inconsequente e menos centralizada, diferente de mim, Yolanda felizmente conseguiu manter ao menos o foco na sua carreira profissional. Imagino que se pela a sua criação, seus pais são pessoas sérias e duras, donos de uma das maiores vinícolas de Florença.
— A gente poderia dá uma volta, queria tomar um sorvete ou uma bebida bem gelada. – ela falava, jogada no meu sofá, balançando a perna. — nossos empregos nos obriga a nos encontrar uma vez a cada mil anos.
— Não exagera. – reviro os olhos, ainda bebendo o meu café. Puro e doce, não há outro melhor. — Só porque hoje é a sua folga, não significa que amanhã não podemos nos encontrar.
— Vamos ter uma noitada? Como nos velhos tempos? – ela me olha esperançosa. — Amiga, faz quanto tempo que você não prova uma...
— Ah, não, não, nem complete esse frase.
Seu sorriso de canto e muito sugestivo quase me fez engasgar.
— O que pensa que eu sou? Uma safada? Eu só ia dizer que parece que faz muito tempo que você não leva homem algum para sua cama. – deu de ombros.
Joguei o resto do café dentro da pia, perdendo totalmente o meu apetite. Yolanda se levanta e me seguiu até o quarto, me observando trocar de roupa. Coloquei um vestido leve, de cor salmão e calcei um par de sandálias, totalmente diferente da mulher que ocupa a minha penteadeira.
— Não preciso de "calmantes" para dormir. – amarrei meus cabelos, guardei a minha carteira e o celular na bolsa de Yolanda para finalmente saímos. — mas você só fala de mim quando entramos nesse assunto. Como está a sua vida sexual e amorosa? Ou vai me dizer que não está acontecendo mais nada entre você e o galinha do seu chefe?
— Não, estou com o filho dele. – disse naturalmente.
Andávamos lado a lado, o sol batia forte contra os nossos rostos e Yolanda fazia uma careta todas as vezes que saímos da sombra, então tira da bolsa seu óculos escuro e o leva até o rosto. Realmente o clima era favorável para um final de semana, mas a quantidade de turistas nessa época é tenebrosa.
— Tá brincando?!
— Não mesmo. O Fernando é um velho babão, me levou para um restaurante e encontrou o filho lá, entende? Ele encontrou o filho no restaurante enquanto jantava com a "amante", que nível de bizarrice isso pode alcançar?! — reviramos os olhos em sincronia. No quesito racional romântico Yolanda sempre carregou o título de louca imprudente ‐ o que é contraditório. Ela nunca levou nenhum de seus romances a sério e quase sempre está metida em casos extremamente complicados. A "amante", que dizia ser, não era nada mais do que a mulher que transa com o chefe, um homem arrogante e carente, cujo a esposa o abandonou para viajar pela América. — A reação dele não foi tão chocante quanto pensei, mas o Fernando me surpreendeu bastante quando me chamou de promíscua barata. Enfim, o filho dele me deu uma carona quando saí de lá morta de vergonha e de raiva, fomos xingando o pai dele pelo o caminho até o hotel mais próximo.
— Alguém no mundo deve ter inveja da sua vida, eu com certeza admiro a sua coragem mas se uma coisa dessas acontecesse comigo...
Yolanda usa um tom de brincadeira e ri ao afirmar com exagerada certeza.
— Macarena, somos de mundos diferentes mas você não pode dizer que nada de extraordinário vai acontecer na sua vida amorosa e sexual. – desdenho, mas me mantenho calada observando as vitrines das lojas que começaram a fazer parte do cenário do centro de Valência. — Não determinamos esse tipo de coisa, ela apenas acontece. E quando você menos espera está transando com o seu chefe na mesa de reuniões em uma manhã de quarta-feira.
Rapidamente apaguei da minha cabeça a lembrança do rosto do Dr. Sandoval, vulgo o meu chefe.
— Isso eu afirmo ser impossível. Acho bem mais fácil eu me iludir achando que não, eu nunca vou viver esse tipo de loucura.
Mas mal imaginei que o destino, rápido como uma chita, me pregaria uma grande e fodida peça.
Entramos na sorveteria, um ponto tradicional para quem mora na cidade há mais de quinze anos e também um ponto predominado por turistas.
— Eu nunca vou me acostumar com essas filas. – reclama Yolanda, concordo e suspiramos. — esses filhas de uma mãe, vem para a nossa cidade e destr...
Com os braços cruzados observo sem interesse a praça, os prédios e as pessoas, contando silenciosamente o tempo que faltava para sermos atendidas. Quando mirei os bancos de concreto, ao acaso, em frente ao chafariz, me deparo com o diabo em sua melhor forma. Zulema parecia distraída, ou o óculos escuro que cobria aqueles malditos olhos camuflavam muito bem a sua atenção.
Eu queria me desviar, prender o meu próprio olhar em qualquer outra coisa porém estava sendo impossível. Ainda mais quando uma outra mulher pulou ao seu lado, sentando-se: cabelos longos e negros, uma beleza tão chamativa quanto a de qualquer outra que passava por ali. A mulher tinha um sorriso alegre e uma postura divertida, quem sabe fosse a namorada dela, no mínimo pareciam muito íntimas.
— Maca?! – Yolanda estala os dedos em frente ao meu rosto e só ai recobro meu real motivo à estar aqui. — loira, tô te chamando faz horas, vai querer qual sabor?
— Foi mal, eu só estava...
Balancei a cabeça, me dando conta de que Yolanda estava atenta demais na escolha da cobertura de sua casquinha do que em mim. Deixei de lado o que acontecia do lado de fora da sorveteria e me pus a pedir um gelado de palito. Me debruço sobre a freezer, procurando pela infinidade de sabores algum que me agradasse. De repente sinto um toque em volta da minha cintura que me faz pular para trás e me encolher. Ouço uma risada áspera ao meu lado e encaro Zulema com toda a minha descrença.
— Você é louca! – franzo o cenho, deixo claro que estou zangada.
— É o que muitos dizem – ela dá de ombros e encara o freezer à nossa frente. — mas você se acostuma com o passar to tempo, aposto que seja capaz de gostar.
— Isso faz parte da sua personalidade esquizofrênica?
— O quê?
— Ter certeza das coisas que nunca irão acontecer. – abro o freezer e finalmente pego um sorvete, sem nem mesmo escolher o sabor, a presença dela não me deixava raciocinar, ainda mais quando me peguei lembrando do sonho que tive hoje de manhã. O sonho que ela protagonizava. O porquê, não é uma pergunta que se faça no momento. — Como por exemplo, você achar que pode se aproximar de mim contra a minha vontade.
Pago o sorvete e saio dalí, sendo seguida por Zulema que parecia totalmente alheia do que acontecia a nossa volta.
— Não ouvi nenhuma reclamação grave até agora. – discorda. Procuro por Yolanda, mas parece que ela não está em lugar algum.
— Acho que já deixei suficientemente claro, não tem medo que eu possa levantar um B.O contra você para a polícia?
— A polícia não me preocupa. O que me preocupa é você não querer mais a minha companhia.
Sorrio descrente, ela não poderia estar falando sério, não quando carrega uma expressão tão falsa e ingênua.
— Então se preocupe, não quero a companhia de uma estranha que...
— Que?
Que, de acordo com o meu chefe, é uma assassina – quis acrescentar.
— Que não sabe se por no seu lugar.
— Está errada – eu deveria estar mesmo, dando atenção à ela como se fosse o meu dever. — mas me fala uma coisa... você poderia me apresentar Valência.
— E porquê eu faria isso?
— Desmanchando essa posse de mulher difícil e aceitando que eu sou extremamente atraente.
Joguei a embalagem do sorvete na lixeira mais próxima, rindo em seguida. Zulema se apoiou em um poste de luz e cruzou os braços, acredito que esperando a resposta que circulava tentadoramente em meu pensamento, pronta para ser dita.
— Eu posso te dar um tempinho se você quiser... – continua. Ela se aproxima e pela primeira vez sinto que não estou relaxada o suficiente para sentir de novo sua respiração contra o meu rosto, principalmente por estarmos na mira de centenas de olhos. Meu estômago gela tanto quanto o picolé se derretendo entre os meus dedos. — te vejo hoje a noite?
— Na-a não podemos. – murmuro, apavorada com a sua pergunta, principalmente quando ‐ não se se vou conseguir me acostumar com isso ‐ a lembrança do Dr. Sandoval povoa a minha mente.
— Podemos. Basta você querer, Macarena.
— Maca!!! – grita Yolanda, fecho os olhos e um segundo só basta para Zulema se afastar o suficiente para não haver suspeitas. Mas que suspeitas? Me pergunto. — Desculpa, Maca!
Minha amiga se materializa ao meu lado e noto um homem moreno e alto segurando a sua mão, talvez fosse o tão falado filho de seu chefe ou quem sabe qualquer outro caso que Yolanda tenha.
— Esse é o filho do Fer... você sabe. Desculpa ter sumido, esbarrei com ele assim que saí da sorveteria para te esperar. – ela sorri e eu forço meus lábios a abrirem um sorriso ao menos convincente, porém Zulema ainda me encara como se estivesse prestes a me devorar, o que só contribuía para o meu nervosismo.
— Eu vou indo. – finalmente ela diz, suspiro aliviada. — até mais tarde, loirinha.
Eu queria xinga-la, dizer para que não se aproximasse pois sua invasão estava estimulando os meus pensamentos mais incoerentes e mais indiscretos, mas no momento em que ela piscou antes de sair, foi como se toda a minha indignação se dissolvesse como lama molhada.
Yolanda arqueou as duas sobrancelhas quando a fitei, neguei com a cabeça e passei a minha mão pelos cabelos.
— Você vai me contar tudo!
[...]
Depois do filho do chefe da minha amiga ter feito o grande favor de nos deixar no meu apartamento depois de uma tarde favorável no shopping, fui direto para o banheiro, não poderia demorar muito pois para a minha desgraça pessoal, ainda há mesas e drinks para serem servidos essa noite. Yolanda se ofereceu para fazer um jantar rápido e eu não poderia ser tão grata por ter ela por perto, mas sabia que tudo isso era apenas uma de suas formas para arrancar de mim qualquer informação que seja relevante.
Saio do banheiro secando os meus cabelos na toalha, já vestida com uma calça jeans e uma blusa de alças branca, ainda descalça vou em direção a cozinha, encontro Yolanda sentada em um dos bancos altos da bancada.
— A comida tá pronta, agora senta aqui e me conta quem era aquela mulher conversando com você. – disse eufórica. Revirei os olhos mas fiz o que ela pediu.
— Eu realmente não sei direito, ela apenas apareceu lá na boate, trocamos algumas palavras e depois ela apareceu de novo lá na praça e me acompanhou até lá embaixo. – dei de ombros, tentando passar a ideia de que aquilo não era nada demais ‐ porém, de alguma forma, era.
— Só isso? Não vai me dizer que é só isso!?
Encarei o chão, presa no receio de encontrar Zulema pelos arredores da boate ou até mesmo na boate. O que seria do meu emprego? O que seria da minha sanidade?
— O nome dela é Zulema Zahir e acho que ela está tentando ter algo comigo?
— Isso é uma pergunta?
— Eu não sei dizer, mas quando descobrir você será a primeira a saber.

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Unravel
Fiksi PenggemarPassar anos presa a uma boate nunca foi o sonho de Macarena Ferreiro, logo ela já não suporta mais a vida que leva e por si só tenta refazer os passos abandonados de quando era apenas uma garota que buscava alcançar suas metas. Porém, a suspeita de...