Acuada

40 1 0
                                    

No ônibus, de volta pra casa, eu estava tão cansada que dormi no banco. Senti algo estranho, uma pressão no meu ombro esquerdo. Acordei assustada e descobri que tinha um homem de pé ao meu lado esfregando sua parte genital no meu ombro. Num impulso, puxei meu braço. Olhei para o homem e percebi que ele estava olhando fixamente para o meu colo. Eu olhei para o meu colo e percebi que um botão à mais da minha camisa havia se soltado, revelando meu decote. Sem saber se o botão se abriu sozinho ou se foi o tarado que abriu pra se excitar, levantei depressa e fui sentar em outro lugar. Sentei atrás do motorista, mas, pelo reflexo do vidro de separação na minha frente, vi que o homem continuava me olhando. Me senti muito incomodada e confusa. Num ímpeto, acabei saltando um ponto antes do meu por medo daquele homem.

Tive que atravessar uma viela, que era o caminho mais curto. Era noite, estava escuro e alguns postes de luz não funcionavam. Se eu tenho medo de andar pelos arredores do meu bairro de dia, imagina à noite? Me arrependi muito de ter saltado um ponto antes, pois percebi que me expus ainda mais ao perigo. Segui a passos largos e tensos, apertando minha correntinha do Espírito Santo como se ele pudesse me proteger, sempre olhando para trás temendo estar sendo perseguida por aquele homem asqueroso ou qualquer outro. Tudo ali me assustava. Qualquer sombra que eu avistava ao longe eu tentava me esquivar, atravessando a rua. Senti muito medo dos homens, muito medo do estupro. 

Quase chegando em casa, pela primeira vez me alegrei ao avistar o bar dos bebuns. Lógico que estavam muito bêbados, lógico que mexeram comigo novamente, mas isso significava que eu já estava perto de casa. Senti um enorme alívio, como se o mais tenebroso filme de terror tivesse chegado ao fim.

Cheguei em casa ofegante e exausta. Passei pela porta da frente e me deparei com a mesma cena de quando saí: meu padrasto dormindo no pequeno sofá, roncando alto, com a TV ligada no 'Programa do Ratinho'. Eu peguei o controle da mão dele e desliguei a televisão. E não é que o infeliz acordou com a ausência da gritaria do programa? Percebi que ele já ia me xingar pensando que eu era a minha mãe, mas, vendo que era eu, ele disfarçou, resmungou e foi se arrastando para o quarto. Por algum motivo que desconheço, pelo menos o Geraldo evita um confronto comigo.

Precisava de um copo d'água e fui buscar na cozinha. Minha mãe ainda estava trabalhando até aquela hora. Mesmo me vendo branca feito um fantasma, não perguntou o que havia acontecido, mas veio até mim para reclamar e cobrar:

-Vana, minha fia, você precisa ajudar mais em casa! De vez em quando chegar, lavar uma louça, lavar o banheiro... Não tá sendo fácil pra mim! Tenho que ir fazer a faxina pras madames, cuidar da sua irmã que acabou de ter neném, ajudar a cuidar da neném, cuidar da casa, da comida, do Geraldo... Não tô nem tendo tempo de ir pro culto, o pastor já tá me cobrando! Tá pesado!

-O quê? Cuidar do Geraldo, mãe?? Bota esse vagabundo pra fazer alguma coisa! Pra mim também tá pesado! Eu trabalho feito doida durante o dia e estudo à noite! Olha a hora que chego em casa! Estou exausta, tive mais um dia puxado! Que horas vou limpar o banheiro? Só se for da meia-noite às cinco... Só que preciso dormir pra enfrentar o outro dia, poxa!

-Não fala assim do seu pai! Você sabe que o pobre do Geraldo é doente, fia, ele não pode fazer esforço!

-ELE NÃO É MEU PAI!!! O MEU PAI MORREU!!! -dei um berro tão alto e estridente que deve ter acordado toda a Vila Dalva.

-Vana, que foi que te deu?! Você nunca gritou assim comigo antes!

-É que eu tô pelas tampas com esse vagabundo e explorador que a senhora botou dentro de casa, mãe! Eu saio às seis da manhã pra trabalhar, ele está dormindo na frente da TV. Eu chego às onze da noite, e adivinha só? O cara está dormindo na frente da TV!

ImpedidaOnde histórias criam vida. Descubra agora