Parte 2 - Futuro Imperfeito

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O ruído das sirenes encontra Rute Zaraña em mais uma noite de vigília silenciosa. Ela abandona o leito onde rolara nas últimas horas, assim como o tem feito há quase três décadas, dirigindo-se ao banheiro do cubículo que chama de lar.

Olhos mortos fitam os pedaços de espelho, apresentando o semblante castigado da velhice. As pílulas haviam acabado. O dinheiro havia acabado. Ainda não havia completado cinquenta anos e seu corpo doía como se houvesse comemorado setenta na semana anterior.

O casal Mendez (os vizinhos do apartamento ao lado) discute, aos gritos, sobre quem havia devorado a última porção de carne sintética na geladeira. O jovem do andar de cima urrava sob efeito do céu púrpura ou de qualquer outra que seja a droga do momento.

“Bom rapaz”, ela pensa. “Uma pena que desperdice seu tempo com tão más companhias. Conheci seus pais. Boa gente. Tementes a Deus.” – e assim, a solitária ocupante do lugar arrasta-se em direção à cama. A luz dos neons fere seus olhos. No beco, três prostitutas xingam um transeunte que não quis utilizar seus “serviços profissionais”.

Rute se indaga em como a humanidade pode descer a um nível tão degradante. Ela imagina como eram as cidades na época em que a água abundava e as árvores não eram apenas figuras em livros de história. Ela imagina como seria poder tomar banho todos os dias e sentar-se à sombra de uma mangueira. Infelizmente, sua geração vive o horror profetizado pelos ecologistas no início do século.

“Minha avó contava como os... Como era mesmo o nome deles? Ah, Green Peace... Como os Green Peace lutavam para preservar o mundo às pessoas do amanhã. Que piada! Se ele vissem como estamos hoje... Nos arrastamos na sujeira; somos coisas miseráveis que foram reprovadas no julgamento do Senhor.”

Ela estala os dedos e a TIV (Televisão/Interface/Vídeo) liga-se. A programação sofreu uma drástica mudança desde a época na qual os avós de Rute eram jovens. Não haviam mais programas de auditório, desenhos animados ou novelas. Tudo resumia-se a filmes e telejornais encenados e apresentados por rostos sem alma gerados em computadores.

“... Informes de nossos correspondentes no oriente confirmam as mortes e os danos materiais previstos nas simulações de nossos especialistas para a passagem do furacão Khali na região. A Assessoria de Imprensa da Ásia Unida reporta prejuízos na faixa dos trilhões de MCMs nos países afetados...”

“... As tensões entre os Confederados e a União atingiram um novo pico em sua recente escalada. O presidente Josh-Lutrèc declarou, em entrevista recente concedida no último ESA (Encontro para Soluções Ambientais) que “as cobras traiçoeiras do norte não irão espoliar nosso mundo mais do que suas gerações anteriores fizeram.” Em resposta, o Primeiro Secretário e Porta-Voz da União ordenou a movimentação de tropas para reforçar as já estacionadas nos limites entre as duas nações, bem como declarou os EUA em estado DEFCON-3. Será que estamos testemunhando uma nova tensão nuclear, como a ocorrida entre os antigos EUA e a extinta URSS? Acompanhe conosco os próximos lances do...”

“... A fome ceifa duas mil vidas a cada minuto na União Tolteca. Crianças abaixo dos sete anos, idosos e deficientes são os mais afetados. Nestas imagens, vemos garotos disputando restos com cães e abutres...”

- Meu Deus... Como este mundo ficou desse jeito? Seu filho morreu naquela cruz para que pudéssemos fazer da Terra o inferno? Ela deve estar num lugar melhor. Bem alimentada e segura nas torres de vidro dos ricos. Como uma princesa... Ela vai entender. O que fiz foi para o seu bem. Não queria minha lindinha aqui, nessa imundície, chorando sem poder derramar uma lágrima sequer por estar tão seca quanto aquelas passas dos filmes.

“... Com vocês, Lindon Dmitrovich-Bernstein, e seus comentários sobre ciência e tecnologia:” – a TIV silencia. Rute não agüentava a realidade por um período superior a dez minutos.

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