Zel (-/-/-)

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Obviamente, Zel não é o nome que seu pai e sua mãe registraram no nascimento. Seu nome de nascimento pouco importava. Não gostava dele. Detestava. Mais um ano e poderia finalmente trocar de nome.

Se tem uma coisa que não fazia sentido para Zel era gênero. Sim, gênero. A ideia de gêneros e separações para eles (roupas, pronomes, nomes, cores etc etc etc) nunca lhe fez sentido. E quanto mais Zel pesquisava, mais e mais confirmava o quanto gênero não tem sentido.

Claro que isso não lhe dava o direito de querer proibir o gênero e sair por aí gritando aos quatro ventos que homem cis não faz sentido, mulher cis não faz sentido, homem trans e mulher trans não fazem sentido, e os muitos gêneros criados pela comunidade não-binária virtual também não fazem sentido.

Dizer para pessoas que o gênero delas não existe é uma atitude muito desnecessária, ainda mais se tratando de mulheres e toda pessoa fora da cisnorma. Ao menos Zel tinha consciência disso. Estudava o assunto e acompanhava discussões na Internet. Fez questão de moldar uma consciência política, por mais que não levantasse uma bandeira ou fosse ativista.

Zel tinha uma impulsividade perigosa. Devia ser culpa do signo, seja lá qual fosse. Falava o que pensava; e logo descobriu que falar tudo que pensa afasta as pessoas. A sociedade não estava pronta para a sinceridade, pensava.

Sua aparência não lhe incomodava, embora fosse considerada como típica de seu gênero designado. Procurava usar roupas simples, sem estampas ou muita decoração. Vestia coisas mais pela praticidade. Seu armário era quase todo de camisetas e calças, e quase tudo era uma paleta de cores brancas e pretas.

— Aqui está seu café.

— Agradeço.

Mais uma tarde na mesma cafeteria no centro da cidade. Um daqueles poucos momentos diários de plena paz.

Sentou-se numa cadeira em frente à bancada mais próxima. Esperou uns cinco minutos para o café esfriar. Ficou contemplando a rua e as pessoas pela grande janela do lugar. Preparou-se para beber o primeiro gole, quando uma pessoa se aproximou e disse:

— Oi. Tudo bem?

Virou-se. A pessoa tinha cabelo escuro, barba, e usava roupas casuais. Tinha um sorriso irritante.

— Tudo.

— Ah... que bom. Então, meu amigo ali ficou afim de você e...

— Não tenho interesse — e virou-se de volta para a janela.

— Ah... okay. — A pessoa foi embora.

Havia algo, um sentimento muito forte, que impulsionava Zel. Uma coisa ainda mal compreendida, ainda muito julgada. O nome disso era ódio. Sim, ódio. Ódio mesmo.

Ódio de quem? De sua pessoa? Da família? Da humanidade? Do planeta Terra? Do Universo?

Não. Ódio ao sistema. Ódio ao gênero... Não. Não, isso não seria justo. Ódio à imposição de gênero, isso sim. Ódio de não poder ir numa droga de uma cafeteria sem inúmeras pessoas desconhecidas lhe atribuindo um gênero que acham certo, e ainda vir alguém te incomodar porque o amiguinho ficou afim do que provavelmente deduziu ser seu gênero.

Por isso não fazia questão de ser tão agradável assim. Claro que Zel não era do tipo que saía por aí dando patadas, ou que vivia afastando as pessoas, ou que ofendia gratuitamente. Mantinha uma cordialidade fria com todo mundo, num geral. Inclusive com o pai e a mãe, a quem chamava pelos nomes e jamais por títulos. Até mesmo com as pessoas as quais podiam ser definidas como amizades.

*Seis Pessoinhas*Onde histórias criam vida. Descubra agora